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Petrobras, 50 anos


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Criada em 1953, gigante do petróleo esbanja poder e polêmica

OSWALDO RIBAS

A Petrobras, a maior empresa brasileira, chega ao seu cinqüentenário exibindo exuberante musculatura patrimonial, bem refletida em ganhos anuais bilionários, taxas de crescimento superiores a 10% e um emergente destaque no supercompetitivo mercado global de petróleo e gás. Ao mesmo tempo, contudo, a companhia, que por mais de quatro décadas deteve o monopólio desse setor no país, também mostra uma face vulnerável, na qual se observa uma desgastante crise de identidade. Embora seus últimos balanços tenham registrado sucessivos recordes históricos de expansão – em 2002 a produção média de petróleo bruto e gás natural aumentou 11% em relação a 2001–, a Petrobras ainda enfrenta problemas estruturais de ordem corporativa, sem paralelo na maioria das empresas de seu porte.

Criada no governo de Getúlio Vargas em 1953 com a missão estratégica de tornar viável o grande projeto de industrialização nacional (ver texto abaixo), a Petrobras, da incipiente produção de 2,7 mil barris diários de 50 anos atrás, chega a 2003 ostentando uma formidável extração de 1,65 milhão de barris por dia, cerca de 85% do consumo nacional; um parque de quase 10 mil poços produtores de petróleo e gás espalhados por vários países; 11 refinarias no Brasil e três no exterior; reservas comprovadas de 10,5 bilhões de barris, o que a inclui no seleto grupo das 12 maiores empresas petrolíferas do planeta, e um lucro consolidado em 2002 de R$ 9,804 bilhões. Embora a lucratividade líquida tenha recuado em comparação com o recorde histórico de 2001, quando o lucro foi de R$ 10,294 bilhões, ainda assim, na avaliação de analistas do setor, a empresa vem obtendo um desempenho sólido o bastante para manter intacto seu megaprograma de investimentos estratégicos.

Até 2006, consta dos planos da Petrobras investir US$ 31,2 bilhões, dos quais 47%, ou US$ 15 bilhões, em exploração e produção, sua principal atividade e, portanto, a prioridade número um. A meta da companhia é manter o ritmo de 400 a 500 poços perfurados por ano, em terra e mar, especialmente nas bacias de Campos (RJ) e de Santos (SP), onde, recentemente, foram encontradas jazidas de óleo de alta qualidade. A de número dois é consolidar sua presença no exterior, a exemplo do que fez em 2002, quando comprou a Pérez Companc (Pecom), tornando-se a segunda maior empresa petrolífera da Argentina e, de quebra, instalando-se na Venezuela com as subsidiárias da Pecom. Para isso, mobilizará 24% de todo o capital disponível, ou seja, cerca de US$ 7,5 bilhões. A de número três, com 19% do bolo, é o segmento de refino, abastecimento e petroquímica, que deve consumir algo próximo de US$ 6 bilhões, com o objetivo de evitar que, até 2010, esse setor chamado tecnicamente de downstream venha a se transformar no calcanhar-de-aquiles da companhia e do mercado de derivados de petróleo no país.

Apesar desses potentes cifrões, a Petrobras, na visão dos analistas do mercado financeiro e dos estudiosos do setor petrolífero, é ainda uma empresa que patina numa questão básica que, eventualmente, pode acabar comprometendo seu futuro: a quem, afinal, ela deve prestar contas, ao setor público ou ao privado? Quando, por exemplo, a empresa avalia se vai ou não elevar os preços dos derivados nas refinarias, antes de serem repassados pelas distribuidoras nas bombas dos postos de serviço, ela deve levar em conta o impacto desse reajuste no bolso do consumidor e nas metas de inflação do governo, ou nas pressões que a desvalorização do real e a alta das cotações internacionais do petróleo exercem sobre seu caixa?

O controle da Petrobras pelo poder público é um dilema permanente para a empresa, afirma Ozires Silva, ex-presidente da companhia e atual vice-presidente da Academia Brasileira de Estudos Avançados, instituto dedicado a fomentar o desenvolvimento de pesquisas científicas, bem como projetos culturais e sociais. "De um lado a Petrobras tem uma vocação claramente aceita e entusiasticamente perseguida por uma imensa maioria de seus técnicos, de operar como empresa ligada ao desenvolvimento nacional e como instrumento efetivo de políticas públicas", mas, completa ele, "por outro, é uma companhia de capital aberto, com um portfólio de ações – sobretudo preferenciais – amplamente negociadas no mercado de capitais, e, nesse aspecto, vinculada às regras específicas desse tipo de negociação." Ozires diz não ter receio de afirmar que vê a empresa como uma entidade profundamente ligada aos interesses nacionais. "Eu diria que a Petrobras funciona com uma razoável dose de patriotismo e dedicada ao desenvolvimento do país, ao mesmo tempo que procura ser competitiva."

Na avaliação de considerável parcela da opinião pública nacional, ainda acostumada a ver a Petrobras como a maior estatal do país, seu principal compromisso, como a única grande produtora de insumos básicos para a economia – os combustíveis –, é com uma política de desenvolvimento industrial e social brasileiro. Assim, é inadmissível que a empresa repasse para o consumidor, na bomba de gasolina, as pressões cambiais, por exemplo. Já para a nova categoria dos seus investidores, nacionais e internacionais, que detêm 44% do capital social da empresa, quase empatando em força com o sócio majoritário, a União, o principal objetivo em jogo são as metas crescentes de lucro a ser distribuído entre seus acionistas sob a forma de dividendos. Como pano de fundo, está a subseqüente valorização dos papéis negociados nas bolsas de valores de São Paulo, Nova York e Madri. Para esse grupo de pressão, não é correto que a empresa subsidie, com recursos próprios, a estabilidade de preços dos combustíveis.

Essas duas concepções divergentes sintetizam o dilema que vem castigando os quadros de comando da companhia e dificultando uma série de decisões de ordem administrativa: como é controlada pela União, ela deve ser instrumento de políticas públicas voltadas ao bem-estar social e garantidoras de metas macroeconômicas do governo, ou, como defende a corrente liberal, deve cortar todas as amarras com o poder estatal em prol do lucro, como qualquer outra empresa capitalista? A dúvida, aparentemente simples, tem trazido enormes transtornos e consumido preciosa energia da direção da Petrobras, a ponto de, com a mudança de comando na companhia, desencadeada pela posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em janeiro, a empresa ter sido forçada a praticamente paralisar as atividades em áreas fundamentais à sua expansão.

Para Shigeaki Ueki, ex-ministro de Energia e presidente da Petrobras de 1979 a 1984, a missão da companhia deveria continuar a ser aquela definida pelo ex-presidente da República, Ernesto Geisel, ainda nos anos 70, ou seja, abastecer todo o território nacional com derivados de petróleo, mesmo em condições adversas, ao menor custo possível, e remunerar adequadamente o capital público e privado investido na atividade. Segundo ele, "tem de haver um limite na busca do lucro, e a empresa deve manter seu papel de agente do desenvolvimento nacional". Ueki também destaca que a Petrobras tem a obrigação de ser o principal executor da política de álcool carburante, anidro e hidratado, "pois esses setores são essenciais para o desenvolvimento social e econômico do país". Ele lembra que as estatais brasileiras foram criadas como sociedades anônimas que buscam resultados econômicos – e, ao mesmo tempo, financeiros – para cumprir a missão pública de serem agentes do progresso nacional. "Acho que esse equilíbrio é fundamental", diz ele.

Nacionalismo

Confrontada com a necessidade de encomendar duas plataformas de exploração de petróleo em águas profundas para ampliar sua produção na bacia de Campos, a P-51 e a P-52, a Petrobras foi, recentemente, obrigada a fazer sucessivos adiamentos dos editais de licitação, com prejuízos para seu cronograma de atingir a meta da auto-suficiência nacional até 2005, numa perversa conseqüência desencadeada, principalmente, pelo crônico dilema do "público versus privado".

Um ato corriqueiro de gestão, como o de escolher o estaleiro que poderia tocar as obras, estimadas em US$ 1 bilhão, acabou se transformando em centro de grande polêmica nacional. De um lado, os defensores da Petrobras como instrumento de políticas públicas pediam que as obras fossem realizadas por estaleiros instalados no Brasil, utilizando, portanto, mão-de-obra nacional; de outro, vozes do mercado financeiro, que exerceram pressão derrubando o valor dos papéis da companhia nas bolsas, exigiam que o critério de escolha fosse preço, pontualidade e qualidade, o que, certamente, levaria as encomendas para estaleiros instalados na Coréia do Sul ou em Cingapura.

No meio desse debate, que coincidiu com a transição política no Brasil e chegou a ser bandeira do então candidato Lula durante a campanha, acabou saindo vitoriosa a corrente nacionalista. O novo presidente da Petrobras, José Eduardo Dutra, no cargo desde janeiro, após ter cumprido mandato pelo Partido dos Trabalhadores (PT) como senador por Sergipe, decidiu, depois de várias marchas e contramarchas, que o edital de contratação das empresas que tocariam a obra da P-51 e da P-52 incluiria a cláusula de componente nacional. Ou seja, passou a ser obrigatório que a companhia vitoriosa na concorrência, além de satisfazer os quesitos preço e qualidade, reservasse um mínimo de 60% do empreendimento para a indústria nacional. Nos bastidores da Petrobras correu a informação de que, por conta dessa obrigatoriedade, que muitos críticos viram como o ressurgimento da reserva de mercado no Brasil, chegaram a ocorrer indisposições do comando da empresa com a ministra de Minas e Energia, Dilma Roussef, também presidente do Conselho de Administração da Petrobras. Adepta confessa do retorno do Estado a certas áreas estratégicas da economia, ela estaria, na visão dessas fontes, procurando costurar, com a Petrobras como linha e agulha, uma nova política industrial para o Brasil, sem levar muito em consideração os ganhos ou prejuízos dos acionistas.

"A iniciativa de entregar as plataformas a um estaleiro nacional certamente vai gerar milhares de empregos no país e dar um incentivo à combalida indústria naval brasileira, mas isso significa também um retrocesso na política de abertura do mercado petrolífero interno e dos seus princípios de atração do capital estrangeiro para aumentar a concorrência e ampliar as vantagens, em termos de preço, para o consumidor interno", declara o professor Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura (CBIE), uma das maiores autoridades em indústria petrolífera no país. "Se a Petrobras se deixar levar por interesses políticos e demagógicos em detrimento de gestões profissionais que visem proporcionar maior eficiência da companhia, temo que, no final, a empresa possa ficar às voltas com um nível tal de endividamento que comprometa até sua sobrevivência e, com ela, o sonho brasileiro de se tornar auto-suficiente no campo energético."

Outra interferência política na gestão da Petrobras, segundo Pires, pôde ainda ser sentida quando a direção da empresa aventou a possibilidade de comprar uma unidade de refino nos Estados Unidos para processar o óleo pesado extraído no Brasil. Segundo estudos da diretoria de Abastecimento e Refino da companhia, a curva custo-benefício revelava ser mais producente adquirir maior capacidade de refino nos EUA, a um custo menor e, ainda por cima, com a vantagem de gerar receita em dólar, do que construir uma nova refinaria no Brasil. Para os críticos, antes de tudo, o que deveria ser levado em conta era o mercado de trabalho nacional e a geração de riqueza que a cadeia do refino poderia proporcionar para determinado estado ou região do país. Em março foi anunciada a desistência dessa incursão no exterior, mas os motivos alegados foram outros: dificuldades na captação de recursos, principalmente pelo risco de guerra.

Pires também critica a decisão do governo de evitar que a Petrobras repasse mensalmente, como determina a política de preços da empresa, os reajustes dos combustíveis. O tema, aliás, chegou a provocar extenuante debate político durante a campanha presidencial, com o candidato do governo, José Serra, atribuindo a fraca receptividade popular de sua candidatura às sucessivas elevações de preço de gasolina, diesel e gás de cozinha. A crítica ganhou tal densidade que o então presidente da empresa, Francisco Gros, realizou na mídia um debate com Serra, expondo as razões da companhia, "não mais a estatal de outrora e, agora, responsável pelos seus acionistas".

Desregulamentação

As advertências de Pires e a própria raiz da questão estrutural que envolve a natureza da gestão da Petrobras, se pública ou privada, remetem, de fato, à Lei do Petróleo, de 1997, que estabeleceu um cronograma de desregulamentação do setor, abrindo o território nacional para a concorrência externa nas áreas de exploração e produção. A idéia que norteou o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso, totalmente envolvido num programa de desestatização, era criar um cenário semelhante ao da distribuição de combustíveis, que no mercado interno assiste à vigorosa concorrência de gigantes multinacionais, como Shell, Esso, Texaco, Agip e Castrol, com a comercializadora da Petrobras, a BR Distribuidora.

"Atribuo o dilema da Petrobras à novidade representada em território nacional pelo fim do monopólio da exploração petrolífera, que se tornou total no início do ano passado, e pela transformação da empresa de estatal em uma companhia de capital misto, agora atuando como parceira ou concorrente de novos players", acrescenta Pires. Segundo ele, com dados na mão da Agência Nacional do Petróleo (ANP), o órgão regulador da indústria petrolífera nacional após 1997, com a abertura do setor, nada menos do que 37 novas concessionárias privadas começaram a operar no Brasil. "As atividades dessas empresas e o impacto no desempenho da própria Petrobras podem ser medidos por estes números: foram fechados, desde então, 199 contratos de exploração e 307 de produção."

Por força da lei e de cláusulas contratuais da Primeira Rodada de Licitação de Áreas de Exploração, realizada em meados de 1997, as companhias, de forma autônoma ou em parceria com a Petrobras, têm prazo até agosto deste ano para comunicar suas descobertas. Caso contrário, as áreas serão devolvidas à União, que, por sua vez, poderá ou não realizar outras licitações desses campos prospectados, chamados tecnicamente de "maduros". Esse fato, na opinião de especialistas como Pires, deverá levar não só a Petrobras, mas várias empresas petrolíferas privadas, nacionais e internacionais, como a Devon Energy, a Shell, a Queiroz Galvão Perfurações, a Starfish Oil & Gas, a El Paso e a Maersk Olie OG, a divulgar novos achados em solo brasileiro nos próximos meses.

A anglo-holandesa Shell anunciou, recentemente, que iniciará uma etapa de exploração de petróleo no litoral do estado do Rio de Janeiro, próximo ao município de Macaé, já a partir de julho. A Shell, assim, se tornará a primeira operadora estrangeira a produzir em larga escala no Brasil, desde a abertura do mercado. A companhia informa em comunicado oficial que começará produzindo 70 mil barris diários de óleo leve no campo Bijupirá-Salema, com investimento de US$ 1 bilhão. Ao todo está prevista a produção em nove poços e, além da Shell, o consórcio controlador do empreendimento conta com uma participação minoritária da própria Petrobras.

Segundo levantamentos realizados pelo Ministério de Minas e Energia, essa situação deverá levar o país a contar com vários projetos de exploração e produção que, no final, auxiliarão a meta da Petrobras de obter, internamente, a auto-suficiência do consumo, um tema que ganha relevância cada vez mais estratégica com a turbulência dos mercados internacionais, por força da crise no Oriente Médio e das intensas oscilações no preço do barril nas bolsas de commodities em Londres e Nova York. Para o governo, o maior resultado dessas mudanças é que a indústria do petróleo cresceu e está gerando negócios no Brasil. Até 1997, a Petrobras havia feito sozinha, em mais de quatro décadas, 1,11 milhão de quilômetros quadrados de pesquisa sísmica (atividade preliminar para indicar se a área pode vir a ser explorada comercialmente). Em apenas cinco anos desde o início da desregulamentação do setor, a empresa, sozinha ou em parceria, realizou quase 500 mil quilômetros quadrados de mapeamento de bacias sedimentares em condições de abrigar novas jazidas, ou seja, quase a metade de todo o trabalho acumulado antes da abertura e a custos bem menores.

Novo ciclo

De acordo com o estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro "Perspectivas para o Setor de Exploração e Produção", assinado pelo economista Edmar de Almeida, o setor brasileiro de petróleo vai viver, nos próximos dois anos, uma nova fase de investimentos. Sem considerar eventuais interferências conjunturais externas, como o efeito negativo de uma guerra na economia mundial, o estudo prevê que no biênio 2004/2005 aportarão no país grandes empresas internacionais, como a Saudi Aramco, da Arábia Saudita, e a Petroleos de Venezuela (PDVSA), ainda ausentes da indústria petrolífera nacional, que poderão criar um clima de euforia e sedimentar, definitivamente, a abertura do mercado.

Já nesta Quinta Rodada de Licitação, que será definida em agosto, a ANP tem previsões de que o setor possa atrair mais US$ 1 bilhão apenas em estudos geofísicos e perfurações de poços nos próximos nove anos. Num efeito multiplicador dos negócios para a cadeia de empreendimentos petrolíferos e de gás, as empresas que venceram concorrências anteriores ou que estão se propondo a ganhar nesta rodada terão de se comprometer a comprar no Brasil 60% do total de bens e serviços nas fases de exploração e de produção, outro efeito da política industrial do governo iniciada com as licitações de plataformas da Petrobras.

No novo cenário favorável, fabricantes de suprimentos e empresas de serviços já começaram a fechar contratos. Dados também da ANP mostram que a abertura do setor de petróleo e gás natural a companhias privadas e os investimentos da Petrobras em parcerias para exploração e produção já renderam ao mercado interno de fornecedores cerca de US$ 1 bilhão. Segundo informações da Organização Nacional da Indústria do Petróleo (Onip), a cada US$ 1 bilhão aplicado nessa área, outros US$ 200 milhões são gerados na economia. Ao final de um ano, a soma desses recursos provoca um impacto direto de US$ 590 milhões no PIB e a criação de 37 mil postos de trabalho.

Com toda essa efervescência, já é possível identificar que a indústria nacional de petróleo e gás tem sido extraordinariamente beneficiada com a abertura do mercado. Em cinco anos, o setor dobrou sua participação no Produto Interno Bruto. De acordo com dados da ANP, a fatia de petróleo e gás no PIB saltou de 2,4% para 5,4%, superando a atividade da indústria automobilística e siderúrgica, respectivamente de 4,1% e 2,5%.

"Em 2002, a Petrobras se tornou a maior exportadora brasileira, e o déficit em sua balança de trocas com o exterior vem sendo progressivamente reduzido: de US$ 3,88 bilhões em 2001, o saldo negativo na comercialização de petróleo e derivados ficou em US$ 554 milhões em 2002", diz o presidente da companhia, José Eduardo Dutra, ao mostrar números consolidados do balanço. Para ele, esse desempenho positivo traz cada vez mais consistência à meta da auto-suficiência e, em última análise, acaba derrubando, com dados concretos, as críticas dos detratores, especialmente de quadros políticos, em torno das operações da empresa.

"Ao expandir suas atividades com recursos domésticos e externos, a Petrobras vem contribuindo para reduzir o risco Brasil no mercado global e, de uma só tacada, beneficiando não apenas seu próprio desempenho, mas o conjunto da economia e da sociedade brasileira", afirma Dutra. Segundo ele, a contribuição econômica da companhia ao país fala por si só. Em 2002, por meio de impostos, taxas, contribuições sociais e royalties, a empresa pagou R$ 39,87 bilhões às esferas federal, estadual e municipal. "Um capital", segundo ele, "revertido em melhoria da infra-estrutura básica de estados e municípios."

Responsabilidade social

Conforme destaca Dutra, a Petrobras é, acima de tudo, "uma construção da inteligência brasileira". Além de suas reservas de petróleo e ativos industriais, o principal executivo afirma que seu valor emana da força de trabalho, que sempre soube responder aos desafios. Para ele, a empresa é das que mais contribuem para o aprimoramento da sociedade brasileira e é, hoje, a que mais emprega no país.

"Isso tudo é verdade", endossa Antonio Carrara, coordenador nacional da Federação Única dos Petroleiros (FUP), que reúne 20 sindicatos espalhados pelo Brasil, com cerca de 100 mil integrantes, incluindo aposentados e pensionistas, "mas a Petrobras está se esquecendo de declarar que boa parte do óleo extraído veio misturado com o sangue dos trabalhadores."

Como exemplo, Carrara menciona o caso da plataforma marítima P-36, na bacia de Campos – a imagem da gigantesca estrutura de aço naufragando no mar deu a volta ao mundo em abril de 2001, em manchetes de jornal e reportagens em redes internacionais de TV. O episódio tornou-se emblema do pior desastre da história (muitas vezes conturbada) da Petrobras. Além do prejuízo com um equipamento de US$ 1 bilhão, que acabou interrompendo por mais de um ano a extração de 140 mil barris diários, a empresa teve de anunciar a morte de 11 trabalhadores, num revés que acabou ampliando sua imagem negativa na opinião pública.

"Esse acidente também é fruto de uma política que, na ânsia de cortar custos com a folha de pagamentos, levou à utilização de mão-de-obra terceirizada, nem sempre suficientemente treinada, para ocupar posições importantes na manutenção e continuidade operacional das unidades de produção e refino da Petrobras", queixa-se Carrara. Para ele, contudo, a nova administração da empresa, que tem em Dutra uma pessoa que também militou pelos Sindipetros (sindicatos dos trabalhadores da indústria do petróleo), aparentemente está demonstrando a intenção de pagar aos petroleiros débitos sociais acumulados nos últimos anos. Para ilustrar, ele cita a quitação das indenizações das 11 viúvas de trabalhadores mortos na P-36, realizada dois anos após o acidente.

Além das críticas aos serviços terceirizados, responsabilizados ainda por dois outros desastres em 2000, como o vazamento de 1,3 milhão de litros de óleo na baía de Guanabara e o acidente ecológico na Refinaria de Araucária, no Paraná, quando mais de 4 milhões de litros de óleo foram derramados, contaminando rios e lençóis freáticos da região, os sindicalistas queixam-se da estranha prática da empresa de realizar concursos periódicos para preenchimento de vagas e, efetivamente, não admitir ninguém. Sob a alegação de que a falta de verbas está impedindo novas contratações, a companhia deixa milhares de concursados, em todo o Brasil, de engenheiros a comerciários, na fila de espera por um chamado. "Além do fato de a realização desses concursos, em escala nacional, ter alto custo financeiro, a Petrobras fica em situação desvantajosa ao ser recorrentemente criticada na grande imprensa por uma legião de concursados", afirma Carrara.

Para dar ainda mais sustentação às queixas da FUP, o dirigente sindical aponta um dado indefensável para a empresa. Com a justificativa do corte de despesas, a terceirização, de fato, acabou resultando em prejuízo. Carrara cita números do próprio balanço anual da companhia, que separa R$ 400 milhões para cobrir custos extraordinários com pessoal terceirizado. Segundo apurou a FUP, esse montante se refere, na maioria das vezes, a obrigações das empresas contratadas, que deixam de honrar compromissos trabalhistas com seus funcionários, com os quais a Petrobras acaba arcando. "Ou seja", arremata Carrara, "ao terceirizar em massa, a companhia tem apenas uma ilusão de estar reduzindo despesas, quando, na verdade, está acumulando gastos muito maiores do que com funcionários regularmente contratados."

Citando posição oficial da FUP, que não condena o fato de a Petrobras estar em busca de maior lucratividade, mas que acha que "a fome por ganhos não deve matar os trabalhadores", Carrara afirma, contudo, que a empresa, em vez de investir em infra-estrutura para atuar após a ocorrência dos desastres, deveria mudar de postura e "agir preventivamente, corrigindo as causas comuns da maioria dos acidentes, que, segundo as investigações, sempre apontam falhas humanas".

Resultado ou não das críticas, o fato é que a companhia vem se esforçando para conter os desastres ambientais. Além, é claro, do prejuízo em si causado pelos vazamentos de óleo, o impacto ecológico desses acidentes acaba tendo hoje tamanha repercussão na mídia que a empresa descobriu uma conseqüência ainda mais nefasta para suas atividades: no momento em que conceitos como transparência e visibilidade administrativa são cada vez mais apreciados no mundo corporativo, acidentes na Petrobras, com sua atividade principal, acabam afastando investidores, aumentando sua taxa de risco e, na ponta final, tornando mais caras as captações de recursos no mercado financeiro interno e externo.

"A Petrobras, atualmente, detém uma taxa de risco menor que a do governo brasileiro e pode, portanto, buscar capitais no exterior em condições mais favoráveis do que as do mercado interno, o que contribui para viabilizar seu programa estratégico de investimentos", afirma Simone Escudero, analista da empresa de consultoria Austin Asis. "Quando acontece qualquer percepção do mercado de aumento de risco da empresa, como ocorreu no final do ano passado com as especulações de maciça ingerência política no comando da companhia, as ações desabam e os custos de captação disparam", complementa a especialista. Em 2002, a Petrobras realizou várias operações no mercado, como a emissão de debêntures e o fechamento do capital da BR Distribuidora, e várias outras estão sendo articuladas em 2003.

Segundo Simone, a preocupação da Petrobras com o corolário da governança corporativa, princípios éticos nas relações da empresa com clientes, fornecedores e funcionários, está ligada à sua disposição de obter vaga no nível 2 da Bovespa, destinado apenas a companhias com comprovado histórico de bom relacionamento com seus diversos públicos, "status que, até agora, não conseguiu".

Dados da Petrobras mostram que, graças à excelência administrativa, foi registrado, em 2002, um dos menores volumes de vazamento de óleo da sua história recente: 197 metros cúbicos, comparados com 3.018 metros cúbicos em 2001 e quase 6 mil metros cúbicos em 2000. Também no decorrer do ano passado e primeiros meses de 2003, houve forte redução do número de acidentes. A companhia atribui em parte esses ganhos de qualidade a importantes avanços no setor de dutos. Atualmente, 75% de seus dutos prioritários, cerca de 7 mil quilômetros, operam com supervisão automatizada, o que situa a empresa nos padrões das concorrentes internacionais de maior porte.

"A área de segurança e meio ambiente, sem dúvida, será um foco de atenção na minha gestão", diz Dutra, acrescentando que, apesar da redução do índice de acidentes com afastamento do trabalho, e da diminuição em 93% do volume de vazamentos, a companhia carrega o pesar de 21 vítimas fatais em 2002 dentre os 100 mil trabalhadores do Sistema Petrobras e das empresas contratadas e reforça o compromisso de atingir uma política sustentável que reduza esse índice a zero. Nas projeções de Dutra, esse esforço será ponto de honra de sua administração, assim como a eliminação do passivo ambiental.

Energia do gás

Um dos projetos mais ambiciosos da Petrobras para o futuro é deixar de ser uma companhia predominantemente petrolífera para se transformar numa empresa de energia no sentido mais amplo. "Manter o petróleo como a principal atividade, quando todos sabemos que as reservas naturais são finitas, é o mesmo que estabelecer a morte da companhia a longo prazo, o que, certamente, não é uma perspectiva alentadora", declara uma fonte da divisão de Gás e Energia da Petrobras, procurando mostrar as vantagens da diversificação de negócios.

Na base dessa mudança de rumo está a premissa de que o gás natural é a energia do futuro e, até 2005, ele ocupará uma fatia de 10% da matriz energética nacional. Atualmente, o petróleo é responsável por 36% de toda a energia que move o país. A geração hidráulica é a maior fonte, com 39%. Ambas, com a evolução do gás natural, deverão retroceder alguns pontos percentuais em mais dois anos, de acordo com as previsões do Ministério de Minas e Energia. À medida que o gás natural ocupar atividades antes exclusivas das hidrelétricas e dos motores movidos a derivados de petróleo, a demanda interna poderá atingir 75 milhões de metros cúbicos diários (atualmente são 22 milhões de metros cúbicos). Desse total, 50% serão consumidos pelas usinas termelétricas, consideradas a melhor alternativa para que o Brasil não volte a passar pelo constrangimento de não ter energia suficiente para abastecer seu próprio desenvolvimento, como ocorreu com o racionamento nacional de 2001 e, segundo previsões de entidades meteorológicas, poderá tornar a acontecer nos anos de 2007 e 2008, devido à seca.

Apesar da exuberante estação chuvosa que entre 2002 e 2003 fez recuar o Programa Prioritário de Termeletricidade (PPT), do Ministério das Minas e Energia, que previa a construção de 11 termelétricas até 2005 – agora, tudo indica que se contentará com possivelmente a metade –, o gás natural deve manter seu caminho ascendente como fonte alternativa de energia farta, limpa e menos dispendiosa que o petróleo ou a hidráulica. A expectativa é que, além de alimentar as usinas, o gás natural abasteça em quantidade cada vez maior a frota nacional de veículos, sirva de insumo básico para a indústria e desbanque a hegemonia do gás liqüefeito de petróleo (GLP) nos domicílios brasileiros.

Antecipando-se à demanda do futuro e tendo em vista a possibilidade de vir a se transformar numa autêntica empresa de energia, a Petrobras saiu na frente e prevê investir US$ 4 bilhões, até 2006, em projetos de exploração, produção e distribuição de gás natural. Nas áreas de exploração e produção, serão aplicados US$ 1,7 bilhão. Na instalação de novos dutos e expansão da malha do nordeste, serão gastos mais US$ 2 bilhões, e à distribuição, em parceria com outras empresas, a companhia deverá destinar recursos da ordem de US$ 300 milhões.

Essas estimativas estão baseadas em dados cuja referência é a entrada em operação do Gasoduto Bolívia-Brasil (Gasbol), a viga mestra de todo o projeto para os maiores centros consumidores do sul e sudeste brasileiros. Desde que os dutos do Gasbol começaram a abastecer o mercado nacional, o consumo de gás natural na indústria tem dado saltos expressivos de 30% ao ano.

Diante da potencialidade do mercado brasileiro de gás natural, agora aberto à concorrência internacional, vem ocorrendo significativa movimentação de empresas multinacionais. A BG (ex-British Gas), por exemplo, tornou-se sócia da Petrobras no Gasbol, ao passo que a anglo-holandesa Shell associou-se à Comgás.

Ainda que chegue à meta de 10% da matriz energética nacional, o gás natural terá participação modesta, e o Brasil se manterá distante do perfil de outros países consumidores. Entre os principais parceiros brasileiros, a Argentina é o que mais consome gás natural. Essa fonte representa 48% da matriz energética do país vizinho. No Canadá, essa participação é de 28%, no Reino Unido de 27%, enquanto nos Estados Unidos ocupa faixa de 24%.

"O perfil da matriz energética também está mudando em função de questões ambientais", complementa o professor Adriano Pires, do CBIE. Mais realista, contudo, ele adverte que o avanço do mercado de gás natural no Brasil estará muito condicionado às regras que serão definidas pelo governo.


Projeto vitorioso

A Petrobras surgiu na vida nacional, em meados do século 20, como uma resposta do governo à necessidade brasileira de obter infra-estrutura energética que tornasse viável o então incipiente projeto de desenvolvimento industrial. Bastante atrasado em relação à Argentina e parceiros norte-americanos e europeus, que já dispunham de uma indústria petrolífera consolidada e lucrativa, o Brasil, num decreto do segundo mandato de Getúlio Vargas na presidência da República, criava, em 3 de outubro de 1953, a Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras). "Constituída com capital, técnica e trabalho exclusivamente brasileiros, a Petrobras resulta de uma firme política nacionalista no terreno econômico", declarava o então presidente Vargas, em rede de rádio, ao comunicar o nascimento da empresa.

Já ao ser criada, a companhia foi alvo de intensa batalha política, entre nacionalistas e liberais, travada nos bastidores do Palácio do Catete, a sede do governo federal no Rio de Janeiro, nas forças armadas e no Congresso Nacional. De um lado, a corrente liderada pelo general Horta Barbosa propunha que a Petrobras detivesse o monopólio estatal na exploração, produção e distribuição de derivados no país; de outro, o grupo encabeçado pelo general Juarez Távora defendia a participação da iniciativa privada, inclusive estrangeira, no projeto brasileiro de desenvolvimento petrolífero. O voto de Getúlio, a essa altura já considerado um ultranacionalista, definiu a contenda, e, de acordo com resolução do Conselho Nacional do Petróleo (CNP), a empresa deteria o monopólio de todos os recursos petrolíferos em solo brasileiro.

Mas, sem tecnologia para prospecção e produção, com escassa mão-de-obra qualificada e sem recursos para importar equipamentos, a Petrobras surgia minúscula diante de sua gigantesca missão: tornar o país auto-suficiente em petróleo. De concreto, a empresa detinha apenas alguns poços no Recôncavo Baiano, um terminal e duas refinarias na Bahia. Sua produção, em 1954, era de 2,7 mil barris diários, e o consumo nacional, naquela época, já alcançava 137 mil barris por dia. Ou seja, o país importava 97% do que consumia. É claro que, também em meados dos anos 50, o petróleo era uma commodity barata, o que de certa forma contribuiu para retardar o desenvolvimento da companhia.

A real importância do setor e a consciência de que o país não poderia continuar dependendo das importações iriam surgir apenas nos anos 70, com os dois choques do petróleo desencadeados pelos países produtores árabes e, nos anos 90, com o conflito no Golfo. Hoje, após a trajetória extraordinária da empresa, que acabou se tornando líder mundial em tecnologia de exploração em plataformas marítimas, os conflitos internacionais já não assustam tanto. Em mais dois anos, a Petrobras poderá cumprir a promessa de tornar o Brasil auto-suficiente e, mais além, levar o país a integrar o seleto grupo de nações exportadoras, a Opep.

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