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Foto: Gabriel Cabral

Construindo um arcabouço para o crescimento

BERNARD APPY

No dia 14 de março de 2003 o economista Bernard Appy, secretário executivo do Ministério da Fazenda, esteve presente no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde fez uma palestra, seguida de debate, sobre o projeto de desenvolvimento do governo Lula. Publicamos abaixo a íntegra da palestra. O debate pode ser lido na edição impressa da revista.

Para entender o contexto da política econômica hoje no Brasil, temos de analisar a situação que este governo encontrou. Herdamos uma inflação bastante forte, alcançando o maior nível desde o início do Plano Real, uma dívida pública também em valores extremamente elevados, os mais altos desde a época do Plano Collor – 56% do PIB no final de 2002. E uma situação em que o risco Brasil estava excessivamente elevado, em parte devido a uma conjuntura internacional adversa, em parte pela falta de confiança na política econômica da nova administração. O que este governo está mostrando é uma atuação extremamente sólida e que está gerando bases para um desenvolvimento não conhecido na história do país. Sou professor de economia brasileira, e pelo menos desde 1930 não creio que se tenha construído um arcabouço macro e microeconômico voltado para o crescimento como o que pretendemos fazer.

A política econômica do governo tem três pilares principais. Um deles é o que podemos chamar de consistência macroeconômica. É compromisso mantê-la ao longo de toda a gestão. Quando falamos em consistência macroeconômica, referimo-nos a três fatores. Primeiro, consistência fiscal, que significa que a trajetória da dívida pública está sob controle. Mais especificamente, que o governo tem o compromisso de, num momento inicial, estabilizar essa dívida e durante o resto do mandato reduzi-la, exatamente o contrário do que ocorreu nos oito anos anteriores. Em segundo lugar, estamos falando de consistência da política monetária, o que equivale a dizer que o governo tem o compromisso claro e explícito de reduzir o atual patamar inflacionário e manter a inflação em níveis baixos também ao longo de todo o mandato. Um terceiro elemento é a consistência nas contas externas, que significa ter um déficit em conta corrente suficientemente baixo para tornar o país pouco exposto a mudanças no cenário internacional. Uma das principais fraquezas da gestão da política econômica no governo Fernando Henrique Cardoso foi que não houve consistência na administração das contas externas, pois permitiu-se que o país mantivesse déficits em conta corrente extremamente elevados. Em 2002 foi feito um ajuste pesado, mas a leniência com relação à fragilidade das contas externas do Brasil teve um custo muito alto nos últimos anos e, sem dúvida alguma, foi o fator principal que levou Fernando Henrique a manter elevadas as taxas de juros reais ao longo de seu mandato.

Para compatibilizar esses três objetivos, o governo, além de uma política fiscal austera, se comprometeu a utilizar dois instrumentos: o câmbio flutuante e a política de metas inflacionárias. Com o primeiro, garante-se a correção necessária para manter a consistência nas contas externas. Com a segunda, assegura-se que esse ou qualquer ajuste não será feito à custa de aumento da taxa de inflação.

Obviamente, estamos agora em fase de transição, mas esses elementos, consistência fiscal e monetária nas contas externas, mais câmbio flutuante e metas de inflação, garantem um regime macroeconômico consistente que o governo tem o compromisso de manter ao longo dos próximos anos.

O segundo pilar da política econômica é a construção de um arcabouço institucional que favoreça o crescimento. Estamos falando de reformas que visam pelo menos três objetivos. Primeiro, a redução do custo do capital, não apenas da taxa básica de juros, mas também do spread bancário e da taxa de risco implícita nos títulos. Segundo, mudanças que estimulem o aumento da produtividade e eficiência. O terceiro é um arcabouço institucional mais favorável à competitividade do país, que evite que os produtos brasileiros sejam prejudicados vis-à-vis os estrangeiros, seja no mercado doméstico, seja no internacional. É disso que se trata quando falamos em competitividade.

O terceiro pilar é a redução das desigualdades sociais. Ao contrário do que ocorreu em governos anteriores, esse compromisso é elemento central da política econômica. Não é acessório, nem adicional, mas constituinte dessa política, e todas as ações, na medida do possível, devem estar voltadas para a redução de nossa excessiva desigualdade. Pelas estatísticas oficiais, os 50% mais pobres da população brasileira têm pouco mais de 10% da renda nacional e o 1% mais rico da população tem uma participação semelhante a essa. E são estatísticas que certamente subestimam a presença dos ricos na renda do país. O grau de desigualdade é historicamente muito elevado e vem se mantendo constante ao longo das últimas décadas. Isso tem de ser revertido urgentemente, pois queremos um país de cidadãos, não de castas. Pessoas que possam se beneficiar do fato de ser cidadãs.

Tendo em vista o perfil do que se pretende para a política econômica brasileira, as ações do governo neste início de mandato foram a confirmação do compromisso, assumido na campanha, de uma política fiscal sustentável. A elevação da meta do superávit primário de 3,75% para 4,25% do PIB mostrou que o governo está disposto a fazer o que for necessário para estabilizar a relação dívida-PIB. É um ajuste extremamente pesado e difícil, se levarmos em conta que no ano passado o Executivo teve receitas extraordinárias, que não se repetirão em 2003. Os números variam muito, mas as receitas que valem mesmo são da ordem de R$ 15 bilhões, obtidas em 2002 principalmente pela antecipação do recebimento de ações judiciais, de empresas que desistiam delas em troca de pagamento com desconto, sem multas e com juros favorecidos. Everardo Maciel, infelizmente, sacou o grosso do que tinha. É óbvio que vamos buscar o que for possível de receitas extraordinárias, mas dificilmente conseguiremos obter um valor semelhante ao do ano passado, o que significa que o ajuste em 2003 será feito essencialmente por meio de contenção de despesas. É duro fazê-lo, mas isso tem a vantagem de começarmos com uma gestão mais consistente das contas externas. Fernando Henrique fez um ajuste fiscal forte de 1999 a 2002, mas baseado muito em receitas de má qualidade, CPMF e PIS-Cofins, além de receitas extraordinárias temporárias, que não se repetem. Este governo pretende fazer um ajuste sem recorrer aos mesmos instrumentos que distorcem a atividade econômica ou são limitados no tempo. Neste ano será mais difícil, mas a partir dos próximos caminharemos de uma base muito mais sólida. A qualidade do ajuste fiscal atual é superior à dos anos anteriores. Isso não se vê na imprensa, mas é fato, e faz diferença quando pensamos no futuro, pois fica mais fácil sua manutenção.

A segunda ação foi a confirmação do compromisso com a estabilidade dos preços. O governo mostrou que o Banco Central (BC) tem a autonomia necessária para gerir a política monetária de forma a garantir a diminuição dos efeitos da alta inflacionária que estamos vivendo desde o final do ano passado. Já tivemos duas elevações da taxa básica de juros e um aumento do compulsório sobre depósitos à vista, e isso foi feito para indicar que a gestão da política monetária é de competência do BC, que a vem exercendo com a autonomia que lhe é devida. Mas o objetivo do banco e do governo é deixar claro que será feito o que for necessário para garantir que a taxa de inflação volte para patamares aceitáveis, compatíveis com um país estável. Não de imediato, porque o choque de custos de 2002 foi muito forte, mas certamente nos próximos anos.

Um terceiro grupo de medidas foi a formulação e o início da discussão das reformas previdenciária e tributária. Para ambas o governo já fixou diretrizes básicas, e colocou-as em debate com a sociedade. Muitas vezes se questiona o ritmo de tramitação das reformas, e se esquece que estamos trabalhando de forma diferente das administrações anteriores. Não estamos elaborando uma proposta de reforma no Executivo e enviando-a para o Legislativo sem prévia discussão com a sociedade. Ao contrário, o que este governo fez, e é uma inovação, foi chamar os governadores para debater o conteúdo das reformas tributária e previdenciária. Essa reunião, que resultou na Carta de Brasília, é um avanço significativo em termos de construção de consenso em torno de propostas. É um progresso reunir 27 governadores e fazê-los assinar uma carta se comprometendo com as diretrizes básicas dessas duas reformas, uma das quais pelo menos, a tributária, tem efeitos diferenciados sobre os estados. Alguns ganham, outros perdem, mas todos sabem que, em perspectiva futura, todos são favorecidos.

Então, quando se pergunta sobre o ritmo de tramitação das reformas, digo que o presidente Lula, com seu carisma, e o ministro Antonio Palocci têm um mérito muito grande na construção do consenso, o que vai facilitar muito a passagem pelo Congresso. Obviamente, o Legislativo tem autonomia, certamente vai mudar alguma coisa, mas pelo menos as diretrizes gerais estão sendo consensuais, tenho certeza de que serão mantidas e já estão basicamente definidas.

Vejamos os resultados da política econômica que vem sendo adotada no começo de governo, num contexto internacional extremamente desfavorável. Primeiro, estamos vivendo uma redução acentuada e acelerada do risco Brasil, que depois de atingir 2.400 pontos no auge da crise no ano passado está se aproximando rapidamente dos mil pontos. No final de 2002, George Soros declarou que, apesar da melhora do ajuste nas contas externas, o Brasil quebraria, porque era impossível o país continuar solvente com uma taxa de risco acima de 2 mil pontos. Ele mesmo afirmou: "Se o risco Brasil cair para mil pontos, tenho certeza de que o país é solvente. Mas duvido que os mercados lhe concedam o benefício da dúvida". Os mercados já concederam esse benefício, e tenho certeza de que nos próximos meses vão chegar à extrema confiança e vamos ter uma redução ainda muito mais acentuada do risco. Quem apostou contra o Brasil se deu mal, e isso é um bom exemplo de que não vale a pena apostar contra nosso país e contra os compromissos assumidos por este governo.

Segundo, pari passu com a melhora do risco Brasil, tivemos uma estabilização da taxa de câmbio e agora estamos com uma tendência de valorização. De fato, esta se manifestou no começo do governo, mas rapidamente se reverteu com a perspectiva de guerra e agora está voltando a acontecer. Portanto, também do ponto de vista do câmbio, estamos passando por uma fase de superação dos excessos observados desde o final de 2002.

Outro ponto favorável e importante é que observamos uma continuidade no ajuste das contas externas, já iniciado no fim do ano passado. A única herança positiva, eu poderia dizer, de 2002, foi esse ajuste. Tivemos uma redução da ordem de 3% do PIB no déficit em conta corrente, em decorrência da desvalorização cambial e da contração da demanda doméstica, ou seja, foi um ajuste traumático. Estamos pagando seu custo através de uma inflação ainda elevada, mas ele reduziu em muito nossa fragilidade externa, a exposição às mudanças de humor no mercado internacional. Não é por acaso que estamos conseguindo melhorar a percepção de risco em relação ao país.

O déficit em conta corrente é perfeitamente financiável, inferior ao fluxo esperado de investimentos diretos estrangeiros. A manutenção e a consolidação de um déficit muito baixo, objetivo deste governo, vão dar muito mais estabilidade à gestão da política econômica. Esse é um avanço, e continuaremos consolidando essa melhora. A diferença é que vamos avançar não através da contenção da demanda doméstica e da desvalorização cambial, mas por meio de mecanismos virtuosos de melhora da competitividade e de um posicionamento muito mais ativo de defesa de nossos interesses nos fóruns internacionais.

Num prazo mais longo, o objetivo é ampliar o fluxo de comércio, ou seja, aumentar o volume de exportações e importações, de modo que o país sofra menos as mudanças no mercado internacional. Nosso objetivo é ampliar a integração comercial do Brasil com o resto do mundo.

A questão que ainda preocupa certamente é a inflação, que está num nível elevado. A origem disso é a desvalorização cambial, que afetou os preços tanto de produtos que têm insumos importados como daqueles cujo custo é referenciado em dólar, embora sejam produzidos no país. Esse surto inflacionário tem efeitos que se prorrogam, em parte em função da indexação de contratos de tarifas públicas – algo que infelizmente foi herdado do período anterior – e, em parte, devido à existência de uma inércia inflacionária. Em outras palavras, o aumento de custos na economia leva a um movimento de recuperação de margens por parte das empresas, uma procura de recomposição salarial pelos trabalhadores, e isso certamente conduz a algum impacto inercial. O governo está mostrando claramente que vai fazer o que for necessário para impedir que o choque de custos se prolongue e se perpetue na economia. Vai gerir a política monetária da forma que for preciso não só para impedir a indexação, mas também para viabilizar a diluição ao longo do tempo do impacto dos custos, bem como da inércia inflacionária. Isso significa que o governo vai gerir a política monetária de modo a garantir a convergência da taxa de inflação para o nível que for necessário.

As condições de consistência econômica estão dadas e, a partir do momento em que a bolha inflacionária for diluída, o crescimento será acionado, pois o potencial de expansão da demanda e da produção do país é muito grande.

Voltemos às reformas. A previdenciária tem na verdade dois objetivos. Um é social, porque a reforma de que estamos falando hoje se refere basicamente à aposentadoria dos servidores públicos. Essa é uma das formas pelas quais a ação do governo na economia ratifica e de certa maneira reproduz a má distribuição de renda. Em comparação com países desenvolvidos, por exemplo, verifica-se que no Brasil as transferências previdenciárias do governo crescem junto com a renda das pessoas. Em outras palavras, transfere-se para pessoas de alta renda, através da previdência do setor público, valores extremamente elevados. Então, estamos falando de uma reforma que no longo prazo deve reduzir as transferências para a população mais rica. Portanto, ela tem um impacto social, abrindo espaço para que se destinem recursos para investimentos ou para os menos favorecidos. Obviamente, direitos adquiridos têm de ser respeitados, mas a função do governo deve ser redistributiva, pela gestão dos instrumentos de política social de que dispõe. A previdência social é um deles.

O segundo objetivo da reforma previdenciária obviamente é fiscal, de longo prazo: a garantia e consistência das contas públicas, ou seja, impedir que um aumento do déficit da previdência inviabilize outras ações futuras do setor público. Obviamente, toda reforma previdenciária, em qualquer país do mundo, é voltada para o equilíbrio fiscal de longo prazo. No caso do Brasil, ela tem também um objetivo social, e estamos tentando construir um modelo que não apresente custos fiscais de curto prazo. É muito comum a reforma previdenciária ter benefícios fiscais de longo prazo, mas um custo fiscal de curto prazo. O exemplo da Argentina é típico. Não fosse a reforma previdenciária realizada em 1994, as contas públicas do país não teriam chegado ao nível de desequilíbrio que alcançaram no final dos anos 90 e começo dos 2000. Estamos tomando cuidado com isso, porque nossa situação fiscal não permite uma reforma irresponsável do ponto de vista das contas públicas no curto prazo. Ela será feita de várias formas: postergação da idade de aposentadoria dos servidores, eventualmente a taxação dos inativos, para compensar o efeito negativo da adoção do regime de previdência complementar previsto, por exemplo, no projeto de lei número 9. Esse projeto, que está no Congresso, tem um impacto fiscal negativo no curto prazo. As outras medidas, além de socialmente justas, têm o efeito de compensar esse efeito. Isso não será feito com o aumento da tributação, mas com relocação de recursos, mudanças nos critérios de concessão de aposentadoria para servidores e eventualmente cobrança de uma contribuição dos próprios servidores para financiar seus colegas aposentados, que é o financiamento da previdência social.

A reforma tributária, por sua vez, é relativamente enxuta e despretensiosa. Mas tem uma grande vantagem: permite consensos no curto prazo e tem impactos que não são desprezíveis. São quatro componentes principais. Um é a reformulação do ICMS, transformando as 27 legislações estaduais diferentes em uma única lei federal, com vistas à unificação das alíquotas. Essa mudança do ICMS tem alguns objetivos. Um deles é racionalizar o tributo. Quando se reduz a multiplicidade de alíquotas e de legislações, simplificam-se o cálculo e a arrecadação, facilitando a vida das empresas. Várias delas têm departamentos inteiros voltados somente para a gestão do ICMS, porque são obrigadas a conhecer a legislação dos 26 estados e do distrito federal. Em cada um deles o manual do ICMS é um catatau impressionante. Então há um ganho de eficiência.

Segundo objetivo da mudança do ICMS: redução da sonegação. A multiplicidade de impostos e as diferenças de alíquotas, inclusive nas transferências interestaduais, acabam abrindo espaço para os sonegadores. Diminuindo esse espaço, aumenta-se a arrecadação, o que permitiria inclusive, em setores específicos, reduzir as alíquotas.

O terceiro objetivo é acabar com a guerra fiscal entre estados. Muitas vezes uma empresa hesita em investir num estado, porque tem dúvidas se o vizinho vai oferecer incentivos fiscais para um concorrente, o que inviabilizaria o negócio. A guerra dificulta o processo de investimento. Todas essas mudanças têm impactos que parecem pequenos, mas no longo prazo são relevantes.

O segundo componente da reforma tributária é avançar na redução da cumulatividade dos tributos federais. Estamos falando em adotar, principalmente para a Cofins, um sistema semelhante ao que foi usado no caso do PIS, em 2002. Estamos avaliando os impactos da mudança no PIS, custos e benefícios, e a idéia é reduzir a cumulatividade. Ganha-se em competitividade externa e em racionalidade. Os tributos em cascata da estrutura atual induzem as empresas a se verticalizarem, pois assim pagam menos impostos.

Terceiro componente: deslocar pelo menos parte da contribuição social da folha de pagamento para outra base de cálculo, que pode ser o valor agregado ou o faturamento. Os empresários tendem a resistir à utilização do faturamento, e estamos estudando a possibilidade de adotar o valor agregado, mas aqui também é preciso analisar a relação custo-benefício, como na Cofins. Creio, no entanto, que a tendência é pelo valor agregado, e aí está subentendido o objetivo de desonerar a folha de salários, estimulando a contratação formal de trabalhadores. No Brasil de hoje, menos de metade dos que trabalham são contratados formalmente, com carteira assinada. Essa distorção tem de ser eliminada. A causa não é só a contribuição sobre a folha, mas esse é um elemento que precisa ser atacado.

Finalmente, o último componente da reforma tributária diz respeito à CPMF. O governo deixou claro que esse é um objetivo de longo prazo, isto é, mantém-se essa contribuição com alíquota baixa como instrumento de controle, não de arrecadação, viabilizando uma transição, que pode ter a forma de um deslocamento da carga da CPMF para outros tributos.

O problema é que neste momento é impossível compatibilizar, infelizmente, o ajuste fiscal com redução da carga tributária. O governo não quer elevá-la, mas também sabe que, pelo menos nos próximos anos, não teremos condições de reduzir a arrecadação total sobre o PIB. O que se pode fazer é racionalizar as coisas, reduzir a sonegação, cobrar daqueles que não pagam e assim abrir espaço para a redução dos tributos.

Além disso, o governo vem avançando em outras reformas. Uma delas diz respeito à autonomia operacional do BC. O objetivo não é dar mais nem menos liberdade para o BC, porque as metas a serem cumpridas serão fixadas pelo governo, e o banco será punido no caso de não acatá-las. Portanto, está-se dando na verdade menor e não maior autonomia para a instituição, relativamente à que existe hoje.

Temos também as reformas microeconômicas, voltadas para a redução do custo de capital, aumento da produtividade e competitividade. Um exemplo é a Lei de Falências, que deve ter um avanço num período não muito longo. O objetivo é impedir que o capital físico da empresa e a capacidade produtiva dos empregados sejam sucateados. A idéia é poder mantê-la em funcionamento durante o processo de falência e leiloar rapidamente seus ativos, em vez de simplesmente fechá-la e deixar que se decomponha aos poucos. Com isso, haverá mais garantia e segurança jurídica para contratos de crédito, estimulando-se a redução do spread bancário e do custo dos financiamentos. Outras medidas, também voltadas à diminuição do spread, serão apresentadas num futuro próximo, e o governo vem discutindo, ainda internamente, o aprimoramento dos instrumentos de acesso dos pequenos empreendedores ao crédito, seja por meio do microcrédito, seja por cooperativas. Essa mudança é extremamente importante, porque o acesso ao capital é uma das formas de superar a má distribuição de renda.

Temos algumas experiências exitosas de cooperativas de crédito de pequenos agricultores no Brasil, que devem ser ampliadas. Há boas iniciativas de microcrédito para pequenos empreendedores, principalmente através de ONGs, em grande medida com recursos públicos, mas que podem ser mais difundidas, pois ainda são muito tímidas em relação ao potencial do país. Isso terá efeitos sobre a qualidade de vida da população praticamente marginalizada do sistema produtivo.

Para os grandes empresários, essas medidas podem parecer irrelevantes, mas para a população significam uma mudança de qualidade de vida absolutamente brutal. Um ou dois mil reais de crédito podem mudar a vida de uma pessoa, desde que, é claro, venham acompanhados de capacitação produtiva.

O Brasil tem uma história de crescimento com sucessão de crises. A característica delas vai mudando porque a institucionalidade também muda, a forma de relação com o mercado internacional se altera, a organização do sistema financeiro e de financiamento oficial se modifica. Até 1960, o governo financiava basicamente a emissão de moeda. De lá para cá criou-se um mercado de títulos de dívida pública, e isso alterou um pouco a forma como o governo se financia. Mas o crescimento econômico sempre foi desbalanceado, em momento nenhum se conseguiu compatibilizar desenvolvimento, consistência fiscal, inflação baixa e equilíbrio nas contas externas. O que tivemos ao longo de muito tempo foi uma política que privilegiava o crescimento em detrimento de outros objetivos, e isso sempre acabava cobrando um preço através das crises. O ajuste por meio de crises fortes tem seu custo, e todas as vezes isso ocorre em detrimento dos mais pobres. Nos anos 80, a política econômica preferiu ajustar as contas externas em prejuízo do crescimento econômico e do controle da inflação. No primeiro governo Fernando Henrique Cardoso, privilegiou-se a queda da inflação em detrimento da solidez nas contas externas e inclusive da consistência nas contas fiscais. O segundo governo FHC já teve avanços institucionais com o regime de metas de inflação e câmbio flutuante, mas ainda assim não deu a atenção devida ao desequilíbrio das contas externas. Hoje, estamos numa fase em que o ajuste das contas externas já avançou. A política fiscal está consolidada de forma consistente. Temos de superar esta fase de inflação alta, e creio que vamos conseguir isso logo.

Estamos assim à beira de um período de crescimento econômico com consistência macroeconômica, que é compromisso do governo e demanda da sociedade. A sociedade, aliás, não é mais leniente, não aceita mais inflação elevada, sabe assumir custos de um crescimento um pouco mais lento nos períodos em que for necessário para os ajustes, porque conhece os benefícios da inflação mais baixa. Desse ponto de vista, a capacidade de negociação do consumidor com as empresas é muito maior quando se tem inflação baixa e preços estáveis. A população também reconhece a importância do ajuste fiscal. Isso é coisa recente, as urnas mostraram que ela preza governadores que gerem as contas públicas de forma eficiente.

O ritmo de crescimento não depende da macroeconomia, mas da microeconomia, do ritmo de aumento da produtividade, da competitividade do país, e no longo prazo certamente de avanços na política educacional. Portanto, não podemos afirmar que vamos passar a crescer 10% ao ano logo que superarmos os desequilíbrios macroeconômicos. Fazer isso seria voltar a eles logo em seguida. Temos de crescer aquilo que nossa estrutura permite em termos de produtividade ao longo dos anos. O nível de educação é condição indispensável.

É importante que se diga que, nesse processo, a redução das desigualdades é foco central. E isso tem de ser feito na gestão da política social do governo.

A crise, numa economia capitalista, é um ajuste que aumenta a remuneração do capital em detrimento do trabalho, portanto, sempre acontece em prejuízo dos mais pobres. Por isso mesmo, o ideal é manter uma política econômica que crie condições de crescer sem provocar crises constantemente. Isso terá efeitos positivos sobre a distribuição de renda. Esta é uma análise de esquerda, não de direita. O governo dispõe hoje de instrumentos de incentivo ao setor empresarial que devem ser reavaliados e mais bem focalizados. É preciso criar um continuum entre o mercado e a administração federal, de forma que esta possa gerir melhor os subsídios de que dispõe, a favor dos que mais precisam. É necessário fazer com que o mercado financie mais as atividades produtivas do país. Isso nós não temos.

A estabilidade é um objetivo de médio prazo, e o governo está mostrando condições de crescimento com baixa instabilidade. Instabilidade nula não existe, mas se ela for reduzida, com pouca inflação, viabiliza-se o desenvolvimento de mecanismos de financiamento para as empresas por meio do mercado, inclusive de longo prazo, o que hoje não existe no Brasil.

O problema do mercado de capitais não é a falta de recursos. É que muitas empresas não querem captar no mercado, e as que têm recursos não querem aplicar nele. Por quê? Em parte por causa da instabilidade e porque, em função dela, a remuneração da dívida pública é muito alta. Assim, poucos vão procurar outras fontes de valorização de suas disponibilidades financeiras. Quando se criarem condições para reduzir o custo da dívida pública, automaticamente haverá incentivos para que sejam alocados recursos das empresas que têm rentabilidade mais elevada.

Espero que essa inversão de prioridades que houve no passado seja revertida nos próximos anos. Isso não se consegue de uma hora para outra, mas se faz com estabilidade e reformas microeconômicas, e na gestão dos instrumentos de financiamento do setor público.

O governo vive uma fase difícil, de digestão dos desequilíbrios herdados da administração anterior, principalmente a baixa confiança no país e a alta da inflação. Estamos fazendo um aperto fiscal duro, mais nas despesas do que aumentando as receitas de má qualidade, como aconteceu no passado. Mas, superada essa fase, tenho certeza de que estaremos criando condições para um ciclo de crescimento sustentado. Vamos crescer o máximo que for possível sem produzir desequilíbrios macroeconômicos. É isso o que queremos viabilizar. É muito mais do que foi feito nos últimos anos, e nesse processo é importante dizer que a fase de ajuste será tão mais longa quanto mais trabalhadores e empresários insistirem em fazer num prazo muito curto a correção das perdas que tiveram. Quanto mais trabalhadores e empresários reconhecerem que terão de ceder um pouco nesse processo e que essa cessão vai gerar condições não só de crescimento como de ganhos no futuro, mais rapidamente vamos superar a transição e entrar num ciclo de desenvolvimento, que será uma novidade na história econômica do Brasil.

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