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Ary do Brasil


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"Eu não fui espectador da história do samba. Fui protagonista!"

CECÍLIA PRADA

Impossível dissociar o nome de Ary Barroso de sua composição mais famosa, considerada "o nosso Hino Nacional alternativo": Aquarela do Brasil. Assim como é impossível ouvir essa música sem mergulhar na atmosfera verde-amarela do "Brasil brasileiro" que ela recria, sensual como a malemolência da mulata baiana, luminosa como manhã de verão, altaneira como adjetivo desfraldado ao vento do mundo pela ditadura do Estado Novo – é o protótipo do "samba-exaltação" – e eterna por figurar, juntamente com Na Baixa do Sapateiro, também de Ary, entre as 20 músicas mais gravadas do planeta.

Usando uma grande variedade de ritmos, do samba (em seus vários tipos) à marcha carnavalesca, valsas, toadas e canções, batuques e cateretês, e com aproveitamento de cadências estrangeiras como tangos, foxtrotes e até uma mazurca, Ary Barroso se inclui ainda hoje entre os dez maiores compositores da MPB e um de seus melhores intérpretes como pianista. E nos deixou um repertório rico, variado, com uma discografia que abrange um período de 34 anos: da primeira gravação, o samba Vou à Penha, na voz de Mário Reis em 1928, ao samba-canção Em Noite de Luar, feito em parceria com Vinícius de Morais e interpretado por Ângela Maria em 1962 – dois anos antes da morte do compositor, aos 60 anos, devida a cirrose hepática.

Foi Ary Barroso a figura dominante da nossa "Era do Rádio" – as décadas de 1930 a 50 –, mas sua imensa versatilidade extravasou o domínio da criação musical para levá-lo também ao jornalismo, ao humorismo, ao teatro, à crônica esportiva e ao exercício político. Criou para si próprio um personagem original, dotado de grande humor e presente no cotidiano do país. Sua paixão, além da música, foi o futebol – era fanático pelo Flamengo. E se como locutor esportivo mudou completamente as transmissões radiofônicas, sublinhando os gols com uma indefectível gaitinha e introduzindo técnicas que perduram até hoje, a adoração por seu clube empolgou-o sempre, impedindo a adoção de uma atitude imparcial.

Eleito vereador pela União Democrática Nacional (UDN) em 1947, destacou-se pela participação na vida pública do Rio de Janeiro – entre muitos outros projetos que defendeu, foi um dos principais responsáveis pela construção do Estádio do Maracanã. Desenvolveu também um trabalho incessante em defesa dos direitos autorais de compositores e artistas, tendo sido fundador e presidente da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Editores de Música (Sbacem).

Órfão – pobre e rico

Não foi fácil a infância de Ary Evangelista Barroso, nascido em Ubá (MG) no dia 7 de novembro de 1903. Órfão de pai e mãe aos sete anos e meio – vitimados, ambos, pela tuberculose –, ele foi criado pela avó materna e por uma tia viúva. Muito amada pelo sobrinho, tia Ritinha teria uma grande influência em sua carreira, mas foi responsável pelas "piores horas da minha vida" – diria mais tarde o compositor –, pois obrigava-o a estudar piano três horas a fio, diariamente, com a técnica de que dispunha: colocava um pires nas costas da mão do garoto, que tinha de fazer escalas sem derrubá-lo. Em uma entrevista de 1961, Ary contava: "Ela me castigava com vara de marmelo. Eu odiava aquilo. Nunca imaginei que aquele martírio acabasse me dando os meios para ganhar a vida". Pois aos 12 anos já se revezava com tia Ritinha no piano do Cine Ideal, acompanhando a ação dos filmes mudos.

O adolescente "peralta" teve muita dificuldade para concluir os estudos secundários. Passou por vários colégios, foi expulso de alguns, até ir parar no de Cataguases, "onde Antônio Amaro, o mestre inesquecível, conseguiu dominar um pouco meus exageros e minhas doideiras". Na memória da cidadezinha de Ubá, uma dessas "doideiras" foi narrada por Sérgio Cabral, em No Tempo de Ari Barroso (Lumiar Editora): saindo de casa escondido, durante a noite, Ary juntou-se a um amigo e rumaram para as ruínas da Igreja de São José, consideradas mal-assombradas, e onde ficava pastando um cavalo usado durante o dia na coleta do lixo. Amarrando o rabo do animal à corda do sino da igreja, espalharam pânico na cidade, pois as badaladas se sucediam a cada movimento do cavalo. Quando um cidadão mais corajoso resolveu enfrentar os fantasmas, quem acabou preso foi o pobre Zé do Chinelo, dono do animal e da carroça de lixo. Mas foi liberado algumas horas depois, quando Ary resolveu contar tudo. Ficou vários dias de castigo, sem sair de casa.

Aos 17 anos, um golpe de fortuna: com a morte de um tio, o adolescente herdava uma quantia considerada "fabulosa" para a época, 40 contos de réis. Na opinião da família, seria suficiente para mantê-lo até o fim do curso de direito, no Rio de Janeiro. Ledo engano: os hábitos boêmios e as noitadas elegantes consumiram no decurso de três anos a pequena fortuna.

Foi então que as vergastadas pedagógicas de tia Ritinha lhe valeram mais do que nunca. Ary usou o imenso talento e sua técnica apurada de pianista para trabalhar em boates, no teatro de revista, nos cinemas, e assim poder concluir o curso de direito. Mas a música já se transformara em carreira: "Quem nasceu para padre já traz do berço a coroa. Parece que a música impregnou-se em mim, desde o dia que dei o primeiro berro. E nunca mais me largou".

O compositor

A primeira música de Ary foi feita ainda em Ubá, em 1918 – o cateretê De Longe, gravado por Carmen Miranda em ritmo de samba, em 1932. De 1924 a 1928, enquanto excursionava com orquestras, ia enchendo seus cadernos de música com sambas dos mais variados tipos. Ao regressar ao Rio de Janeiro, em 1927, procurou os irmãos Vitale, mas estes "não tinham recursos" – uma desculpa meio esfarrapada, bem conhecida de todos os jovens compositores ou escritores, mas que sedimentou uma amizade que, pouco mais tarde, faria afluir para editora e editado um caudaloso rio de dinheiro.

Nos dois anos seguintes o "bacharelando" Ary batalha com fervor renovado para firmar uma posição financeira. Motivo: apaixonara-se perdidamente e queria casar com Ivone Arantes – Ivoninha –, que conhecera quando ela tinha 13 anos e ele 22, a filha mais nova dos donos da pensão em que Ary morava e que se tornaria sua companheira de vida.

Sempre envolvido em turnês e compromissos musicais, começa a ter nome. Em uma entrevista ao "Diário da Noite", na véspera de completar 26 anos, dizia: "Vim dar com os costados no teatro, onde debutei na revista Laranja da China, de Olegário Mariano". Mas anunciava: "Tenciono abandonar essa agridoce profissão. Vou cultivar em outra seara. Se é para o bem ou para o mal, Deus é quem sabe".

Mas Deus não quis. A "outra seara" era a advocacia, mas o doutor Ary Barroso, depois de usar pistolões para obter um cargo de promotor público em uma cidadezinha perdida de Minas Gerais, pôde no início de 1930 dependurar seu diploma e dar mais uma guinada em sua existência, a definitiva – sua marchinha Dá Nela, inscrita às pressas, cinco minutos antes da meia-noite de 30 de dezembro de 1929, término do prazo, no concurso de músicas carnavalescas promovido pela Casa Édison, obtivera o primeiro lugar, com um prêmio régio: 5 contos de réis. Em uma entrevista de 1956 ele descreveria esse momento: "Quando o veredicto foi anunciado, estrugiram aplausos de todos os lados. Meus nervos laceraram. Carregaram-me. Consagraram-me. Recebi 5 contos de réis de prêmio!... ali, no velho Teatro Lírico, naquela noite de 1930, ganhei coragem e meti os peitos na vida... Com o dinheiro do prêmio, casei-me".

E também não largou o teatro. Até os últimos anos da vida consagraria muito tempo às revistas musicais, escrevendo partituras e espetáculos inteiros, e até mesmo atuando como músico. Em 1957, o produtor Walter Machado o homenagearia com um brilhante show biográfico, Mr. Samba.

Versatilidade

Ary foi levado para o rádio por Renato Murce, em 1933. Fazia pequenas pontas em alguns programas e participou de uma famosa polêmica contra Henrique Pongetti, na Rádio Philips. Pongetti defendia como "espetacular" um maxixe fake, Carioca, que a produtora RKO criara para o filme Voando para o Rio. Para Ary e Murce, o filme não passava de "um amontoado de sandices filmadas em estúdio".

Mas o turning point de sua carreira não se daria no Rio de Janeiro, mas em São Paulo, para onde veio quando seu grande amigo e parceiro de músicas Luís Peixoto foi convidado a dirigir a paulistana Rádio Cosmos, em setembro de 1935. Juntos criaram um programa de variedades e humorismo de enorme repercussão, "Hora H". Quatro meses mais tarde, Ary escrevia a Renato Murce proclamando o sucesso que haviam alcançado. Mas pedia-lhe, pelo amor de Deus, que o chamasse de volta ao Rio, pois morria de saudades do mar.

Murce convidou-o a trabalhar com ele em "Hora só...Rindo", na Rádio Transmissora. Mas Ary Barroso não hesitou em abandonar o amigo, bem no dia da estréia – acertara um contrato muito mais vantajoso com a Rádio Cruzeiro do Sul, onde teria, desde o início, várias funções. Substituindo Paulo Roberto e Edmundo Maia, firmou-se como apresentador do programa de auditório "Calouros em Desfile", que logo se tornaria um dos mais populares do país.

O personagem

Ninguém melhor para definir a personalidade de Ary Barroso do que sua filha Mariúza: "Irrequieto, falastrão, arrebatado, boêmio, apaixonado, irônico, engraçado, cáustico, amoroso, personalidade carismática, marcante e controvertida". Adorava que falassem dele, bem ou mal, e considerava "um dia triste" aqueles raros em que não era mencionado, na imprensa ou em outros meios de comunicação. Nas polêmicas, usava todo o seu humor mordaz para liquidar "o adversário" – no mais das vezes fingido, fabricado e conivente. Esse foi o caso do "inimigo" Antônio Maria – cronista, radialista e compositor renomado. Diziam horrores um do outro, mantinham polêmicas pelos jornais, mas na verdade eram grandes amigos. Só uma vez haviam ficado uns tempos sem se falar. Em 1949 Ary convidou-o para narrarem juntos jogos de futebol – estiveram de acordo, em geral. Mas em dias de Vasco x Flamengo, Antônio Maria só entrava para narrar enquanto a bola estava com o Vasco, e Ary, com o Flamengo, para gáudio dos ouvintes.

Pelo lendário programa "Calouros em Desfile", radiofônico até 1951 e dali por diante televisivo, muitos estreantes que enfrentaram seu gongo se tornaram famosos, como Lúcio Alves, Ângela Maria, Elza Soares. Esta conta como apareceu diante do compositor, magérrima, desgrenhada, malvestida, e foi interpelada por ele: "Mas de que planeta você veio?" "Do Planeta-Fome, seu Ary", respondeu Elza, carimbando seu passaporte para a fama.

Aquarela do Brasil

Em novembro de 1997 um júri de 13 especialistas reunidos pela Academia Brasileira de Letras deu a Aquarela do Brasil um troféu definitivo, reconhecendo-a como a "Melhor Canção Brasileira do Século". Paira uma indagação, no entanto, sobre a unanimidade do reconhecimento: teria sido essa composição resultado de uma inspiração súbita e preciosa, como o compositor sempre disse, ou representaria antes uma encomenda oficiosa dos órgãos do Estado Novo, interessados em criar uma imagem brilhante do país subjugado pela ditadura?

Ary nunca escondeu de ninguém que era getulista convicto, desde 1930. Logo após a revolução que levou Getúlio Vargas ao poder, participou com outros compositores da revista teatral O Barbado – essa, sim, uma obra inteiramente encomendada –, que visava ridicularizar, em termos bastante grosseiros, a figura de Washington Luís. O advento do Estado Novo não modificou sua atitude em relação a Getúlio, a qual, aliás, era comum a toda a classe artística da época – em que cada um se empenhava mais que o outro em adular o ditador e tirar proveito do ufanismo forçado pelo DIP, o famigerado Departamento de Imprensa e Propaganda, que censurava e "orientava" toda a produção cultural nacional.

Várias vezes, entretanto, Ary teve problemas para manter a integridade de suas composições. Já em 1932 a censura suprimira um quadro inteiro sobre a Revolução Constitucionalista de São Paulo do seu espetáculo Vai com Fé. Em 1939, teve de lutar pela letra da própria Aquarela do Brasil. Não parecia bem aos censores que o país fosse definido como "terra de samba e pandeiro". Mas o compositor venceu.

Aquarela, segundo dizia Ary, nasceu em uma noite de chuva de 1939, quando descontraído conversava com a mulher e com o cunhado Antônio, em sua casa do Leme. De repente, sentira um impulso – dirigindo-se ao piano, compusera, de uma só vez, letra e música. Tratava-se de noite privilegiada pelas musas, realmente, porque pouco mais tarde, após tomar uma garrafa inteira de vinho, Ary voltaria ao piano para compor um dos seus sambas clássicos, Três Lágrimas.

Gravada em agosto de 1939 por Francisco Alves, com arranjo de Radamés Gnatalli, Aquarela iniciava sua carreira fulgurante. Dois anos mais tarde, Walt Disney, viajando ao Brasil em missão da "Política da Boa Vizinhança" do presidente Franklin Roosevelt, descobria a música, que, rebatizada de Brazil, seria lançada internacionalmente no filme Alô, Amigos com o personagem do papagaio Zé Carioca. Nos anos seguintes, Ary passaria longos períodos nos Estados Unidos, sem a família e sempre morrendo de saudades do Rio, mas fascinado pelo reconhecimento pleno de seu talento e favorecido por contratos fabulosos – trabalhando em filmes e shows, apoiado pela imensa popularidade de Carmen Miranda, sua grande amiga e intérprete, com quem até propalavam que se casaria.

Na primeira viagem, em 1944, descrevia em carta à esposa o que fora sua acolhida em Hollywood: "Posso garantir que meu nome aqui é acreditado. É um grande cartaz, um big hit, como eles dizem. Quando sou apresentado como autor de Brazil, chovem abraços, pedidos de autógrafos... Ainda não terminei meu contrato com a Republic Pictures e já visitei vários estúdios cinematográficos. Já se fala em contrato com a Fox, a Metro, e principalmente com Walt Disney. Acredito que entrei na porta da imortalidade e que poderemos fazer fortuna aqui. É questão de aproveitar esta chance".

Falado, mas não cumprido. Apesar das ofertas tentadoras e do grande prestígio – em 1944 recebeu o Prêmio de Mérito da Academia de Ciências e Artes Cinematográficas de Hollywood pelo samba Rio de Janeiro, que havia composto para o filme Brazil –, não conseguiu firmar residência nos Estados Unidos. Nem mesmo quando, para espanto geral, Walt Disney ofereceu-lhe a direção musical de sua empresa. Ary recusou, explicando em inglês macarrônico ao atônito produtor: "Because don’t have Flamengo here".

De qualquer forma, sua fortuna estava feita. Outra música sua, Na Baixa do Sapateiro, já em 1945, rebatizada como Bahia, entrava em uma seleção feita nos Estados Unidos das canções com mais de 2 milhões de execuções, só naquele país. Ary continuou até os últimos anos, enquanto a saúde lhe permitiu, a desenvolver uma atividade intensa, mantendo vários programas e compromissos simultaneamente e deixando em todos os lugares, sempre, a lembrança do seu humor. Em 1955, ao ser agraciado, juntamente com Heitor Villa-Lobos, com a Ordem do Mérito pelo governo Café Filho, pontuou o gesto do chefe da nação de lhe fixar a condecoração na lapela: "O samba subiu muito, senhor presidente".

Essa atitude de superioridade filosófica diante da vida – que é o humor – não o abandonou nem mesmo nos meses finais da existência. Internado na Casa de Saúde São José em setembro de 1963, telefonava ao amigo e parceiro de composições, David Nasser:

– Estou me despedindo. Vou morrer.
– Como é que você sabe, Ary?
– Estão tocando as minhas músicas no rádio.

Mas quando o amigo padre Góis foi chamado para lhe dar a extrema-unção, achou que o compositor não deveria estar tão mal assim, pois foi logo perguntando qual tinha sido o resultado do jogo entre Flamengo e Bangu. Seu time havia perdido por 2 a 1, informou o padre.

– Então não sou eu quem está precisando de extrema-unção, padre Góis, e sim o Flamengo! – esbravejou o doente.

Por uma estranha ironia do destino, a estrela de Ary Evangelista Barroso apagou-se no exato momento de sua apoteose como compositor: às 21 horas e 50 minutos de 9 de fevereiro de 1964, um domingo de Carnaval, quando a Escola de Samba Império Serrano preparava-se para ingressar na Avenida Presidente Vargas para desfilar com o enredo "Aquarela do Brasil".

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