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Computadores no terminal Tietê / Foto: Laura Lopes

Brasil tenta tirar atraso na corrida da inclusão digital

CARLOS JULIANO BARROS

A mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), com dados de 2001, revela que apenas 12,6% dos domicílios brasileiros possuem computador. Quando se leva em conta o acesso à Internet, o número cai para 8,6%. É a primeira vez que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), responsável pela pesquisa, realiza esse tipo de levantamento.

Nos últimos anos, a expressão "inclusão digital" tornou-se uma febre, motivando iniciativas de empresas, elaboração de políticas governamentais e a mobilização da sociedade civil. Diversas são as estratégias para romper as barreiras do acesso das classes menos favorecidas às tecnologias digitais. A luta para democratizar o conhecimento, o principal produto da chamada "sociedade da informação", constitui uma forma de ataque às desigualdades sociais.

Em janeiro, um relatório da Organização Mundial do Comércio (OMC), divulgado durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, apontou o Brasil como líder no quesito "inclusão digital" entre os países da América Latina. Mas os dados do IBGE não deixam dúvidas de que o caminho a percorrer ainda é muito longo.

Conceito amplo

A idéia de conectar computadores em rede surgiu nos Estados Unidos nos anos 60, durante a guerra fria. "Era uma política pública do governo norte-americano, que buscava enfrentar a aparente superioridade tecnológica da então União Soviética", explica o sociólogo Sérgio Amadeu, presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI).

Na década de 70, o mundo assistiu a uma transformação tecnológica sem precedentes, e a exclusão social adquiriu nova face. "Naquela época, já existiam estudos sobre as enormes diferenças entre os países que dominavam as tecnologias e aqueles que apenas as consumiam", afirma Amadeu. Por isso, "é impossível falar desse assunto sem levar em conta a oposição entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas", completa o professor Rogério da Costa, do Departamento de Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Dessa maneira, a inclusão digital não se resume a medidas que permitam aos cidadãos de baixa renda ter acesso ao computador. Na verdade, é necessário avaliar o peso que essas novas tecnologias representam na produção de bens e serviços. "Precisamos sair do campo romântico para entender o patamar de inclusão digital de uma sociedade", afirma Costa. Se um país não possui infra-estrutura de telecomunicações de boa qualidade, por exemplo, todo esse processo fica comprometido. Também se torna difícil imaginar uma nação desenvolvida cujas empresas não se utilizem da tecnologia da informação para se estruturar. Trazer e capacitar pessoas para o mundo da informática consiste em uma das etapas da inclusão digital. Mas, no Brasil, ela geralmente se resume apenas a isso.

Políticas públicas

As iniciativas governamentais mais substanciais na área de disseminação das tecnologias digitais se concentram nas regiões sul e sudeste. "É necessário transformar o combate à exclusão digital em política pública, e cada esfera do governo deve se empenhar com esse objetivo", afirma Amadeu. O estado de São Paulo tem experiências já sedimentadas nessa área. A prefeitura da capital paulista, através da Coordenadoria do Governo Eletrônico (www.telecentros.sp.gov.br), por exemplo, mantém 47 telecentros – pontos comunitários de acesso a computadores – espalhados pelas zonas periféricas da cidade, com cerca de 95 mil pessoas cadastradas. O governo estadual segue a mesma linha. Por meio de seu programa Acessa São Paulo (www.acessasaopaulo.sp.gov.br), disponibiliza 120 infocentros, metade na capital e o restante no interior.

O primeiro telecentro foi instalado em Cidade Tiradentes, extrema zona leste da capital, em 2001. Kiminoshin Yoshida, encarregado do contato entre a prefeitura e a população local, relata que o bairro se encontrava completamente deteriorado. "A bandidagem havia tomado conta de tudo e transformado o lugar em ponto de tráfico de drogas e desmanche de carros", lembra. A chegada do telecentro incentivou a vinda de outros serviços que revitalizaram a região. Nas redondezas, foram construídos uma padaria comunitária e um posto de saúde.

Yoshida ressalta a importância do envolvimento das comunidades beneficiadas com o projeto. Elas abraçam a causa, zelando pela manutenção e a segurança dos computadores. Todo telecentro possui um conselho gestor, formado por lideranças locais. "Elas garantem respeito e seriedade ao projeto", explica ele. Esse conselho, no entanto, não possui funções deliberativas, ou seja, não define os rumos da administração do telecentro. Todavia, aponta eventuais falhas no serviço e serve como uma ponte entre a população e a prefeitura.

Cada telecentro tem, em média, 20 computadores, dos quais 15 são reservados para cursos básicos de informática e realização de oficinas, como as de jornalismo comunitário e criação de sites, por exemplo. O restante das máquinas fica disponível para uso livre. O referencial pedagógico da prefeitura se baseia no princípio de "enfrentar problemas do cotidiano", resume Yoshida. Dessa forma, os cursos não têm um formato tradicional. "É como se uma pessoa entrasse em uma empresa, e o patrão lhe pedisse alguma coisa pelo computador", acrescenta.

A organização dos infocentros do governo do estado é um pouco diferente. "A filosofia é a mesma da prefeitura, mas nós não damos cursos. O que fazemos é oferecer tecnologia", define Fernando Guarnieri, coordenador do Acessa São Paulo. A explicação é muito simples. A missão do programa é atender a maior quantidade possível de pessoas. "O que um indivíduo que nunca mexeu em um computador precisa é que alguém fique a seu lado e lhe dê explicações à medida que necessitar. Em cursos, o número de participantes é limitado", completa. Porém, a demanda da população por esse sistema é inegável. A fim de contornar o problema, o Acessa São Paulo fez um convênio com o Comitê para Democratização da Informática (CDI) (www.cdi.org.br), uma ONG que, por meio de suas Escolas de Informática e Cidadania (EIC), oferece cursos para quem não pode pagar por eles.

Quando um infocentro é instalado numa comunidade, ela tem de arcar com os custos de manutenção do prédio e a remuneração dos monitores. O governo do estado fiscaliza a administração da entidade, com o intuito de garantir duas regras básicas: a gratuidade do uso das máquinas e o acesso mais democrático possível. De acordo com o Acessa São Paulo, mais de 2 milhões de pessoas já passaram pelos infocentros.

Software livre

Uma das bandeiras mais importantes do programa de inclusão digital da prefeitura de São Paulo é a utilização do sistema operacional GNU/Linux, em detrimento do Microsoft Windows. Motivos não faltam. O primeiro é o econômico, já que se trata de um software livre, ou seja, não existe propriamente um dono. "Qualquer política maciça de inclusão digital deve ser sustentável. Não podemos continuar pagando milhões de dólares de royalties em licenças de software", argumenta Amadeu, que coordenou o início do projeto. No ano passado, a prefeitura estima que economizou R$ 2,5 milhões em licenças, o que barateou o custo dos equipamentos e alavancou investimentos.

Além disso, o GNU/Linux tem código aberto. Qualquer pessoa pode mexer em sua estrutura e, a partir daí, criar novos programas. É o que se chama de "fomento", uma forma de estimular a competência nacional na área de informática. "Se quisermos construir um país transparente e desenvolver nossas empresas de software, é desejável pegar o caminho do software livre", afirma Carlos Seabra, diretor da Escola do Futuro da Universidade de São Paulo (USP), instituição que, entre outras coisas, capacita os monitores do Acessa São Paulo. Mas também não se deve criar a ilusão de que o uso do GNU/Linux seja suficiente para solucionar os problemas nessa área. "Não adianta instalar esse sistema em uma máquina velha, levar para a favela e dizer que se está fazendo inclusão digital. É preciso tomar cuidado com argumentos que mais parecem demagogia", analisa Seabra.

Nem todos os envolvidos com o tema pensam da mesma forma. O CDI, que atua em parceria com o Acessa São Paulo, não vê a utilização do GNU/Linux como uma medida decisiva. "Não dá para ser contra. Mas para nós é uma questão pragmática e não ideológica", afirma Rodrigo Alvarez, coordenador-geral do CDI-SP. Apesar de os programas abertos e livres representarem uma economia significativa para qualquer empresa, a verdade é que a grande maioria ainda se vale dos softwares proprietários. "Cerca de 90% das companhias precisam de pessoas gabaritadas para usar produtos Microsoft. Treiná-las em softwares livres é, de certa forma, excluí-las novamente", justifica.

Na prática, uma pessoa com noções básicas de informática não enfrenta muitos problemas na utilização de uns ou de outros. "Ninguém fica mais ou menos cidadão por usar software livre ou proprietário", argumenta Seabra. Contudo, há o consenso de que a escolha de sistemas operacionais como o GNU/Linux pode constituir uma importante ferramenta no desenvolvimento tecnológico de uma comunidade. "Qual a possibilidade de a população da periferia pagar pelos softwares que utiliza?", questiona Yoshida.

Terceiro setor

O significado de terceiro setor, em linhas gerais, é o seguinte: ações da iniciativa privada que visam a um bem público. "Os empresários estão se dando conta de que responsabilidade social vai além do pagamento de impostos", explica Alvarez.

O CDI surgiu para conciliar a vontade das empresas de investir em projetos de inclusão digital com a demanda de comunidades de baixa renda, alijadas dessas tecnologias. Atualmente, a entidade é uma das maiores ONGs do mundo – está presente em outros dez países – que trabalham com essa preocupação.

No início de 2002, o CDI mantinha nove EICs, em São Paulo. Hoje, esse número subiu para 58. Nos cursos, as pessoas discutem problemas locais e usam o computador para expressar suas opiniões. Esse sistema é definido por Alvarez como "metodologia de projetos".

À semelhança do que acontece nos infocentros, as comunidades onde se localizam as EICs têm de arcar com os custos de manutenção das salas e a remuneração dos instrutores. A solução encontrada por algumas delas para a viabilização econômica foi a cobrança de mensalidades simbólicas. "Não queremos incluir digitalmente as pessoas de modo assistencialista. Nosso papel é incentivá-las a procurar soluções."

Desde 2001, o CDI promove o Dia da Inclusão Digital, um ato público que busca sensibilizar a sociedade para a importância da causa. Nesse evento, computadores são disponibilizados em locais de grande movimento. Lino, um boliviano que há anos mora em São Paulo, teve acesso pela primeira vez à Internet nas máquinas instaladas no terminal rodoviário do Tietê. "Quero me atualizar", explica. Ele conta que nunca ouviu falar de pontos comunitários de informática, como telecentros, infocentros ou EICs. "O déficit de pessoas não atendidas ainda é muito grande, mas todas as experiências são válidas, pois os resultados são ótimos", garante Guarnieri, do Acessa São Paulo.

Interação

O que se entende por inclusão digital consiste em "dar vazão a atividades que a própria pessoa já faz, por meio de outra ferramenta", diz Seabra.

A transformação, portanto, não implica melhores empregos, salários astronômicos. É claro que existem casos de pessoas que revolucionaram sua vida através da informática. Porém, são exceções. Incluir digitalmente um cidadão pressupõe um envolvimento visceral com essas novas tecnologias. O jovem que tem uma banda e divulga suas músicas pela Internet; a dona-de-casa que pesquisa na rede novas receitas e as divide com as amigas – esses são exemplos simples que mostram como uma teia de informações pode estimular a interação da comunidade.

O telecentro instalado em Cidade Tiradentes, por exemplo, não constitui apenas uma sala equipada com computadores, mas uma referência para a própria comunidade. Além das máquinas, uma biblioteca e uma televisão são opções de entretenimento para os usuários. Às vezes, profissionais como dentistas e psicólogos ministram alguma palestra. "Muitos jovens nos procuram como um modo de combater a ociosidade", explica Jesulino Alves, que trabalha na gerência dos telecentros dessa região. A chegada da tecnologia digital e a criação do espaço potencializaram o surgimento de movimentos de moradores do bairro.

A partir de encontros no próprio telecentro, foi criada uma ONG de defesa ambiental. "O objetivo é conscientizar a população a respeito da reciclagem, evitando a concentração de lixo nas ruas, além de preservar o que resta da Mata Atlântica no entorno da região", justifica Jesulino. O telecentro também sedia um banco de sementes. "Aqui há poucas ruas arborizadas", explica. Além disso, a ONG tem planos de cultivar uma horta comunitária.

Atividades, além da informática, têm sido uma iniciativa comum entre aqueles que buscam não só a inclusão digital, mas também a melhoria da qualidade de vida, estimulando a formação de uma identidade coletiva e cooperativa, através dessas novas tecnologias. "Mais importante que surfar na Internet é aprender a fazer onda", diz Seabra.

É mais ou menos essa a filosofia da Cidade do Conhecimento (www.cidade.usp.br), projeto coordenado pelo professor Gílson Schwartz, do Instituto de Estudos Avançados da USP, que pode ser entendida como um centro de pesquisa sobre o emprego das tecnologias digitais. Um de seus objetivos é usar a rede como meio para estimular a cooperação entre estudantes e trabalhadores.

Com várias frentes de atuação, entre elas a criação de padrões de qualidade para avaliar as experiências de informática pública e comunitária no Brasil, a Cidade do Conhecimento também participa do projeto de educação do governo do estado de São Paulo, na análise da utilização de tecnologias digitais nas escolas. Existe ainda a preocupação com os problemas socioeconômicos do país, presente no "Dicionário do Trabalho Vivo", que reúne estudantes e profissionais dos mais diversos ramos para trocar idéias pela Internet sobre o mercado de trabalho, a fim de auxiliar na formação das pessoas.

Ilusão digital

Rafael da Silva, de 16 anos, é monitor de um telecentro no Rio Pequeno, bairro da zona oeste de São Paulo. Quando perguntado sobre a principal demanda dos usuários, ele não hesita em responder: " Impressão de currículos". A idéia de que o domínio da informática constitui um diferencial na disputa por um emprego é lugar-comum. Nesse ponto, a inclusão pode transformar-se em ilusão. "Se um sujeito não sabe colocar uma vírgula no lugar certo, ele não vai conseguir o trabalho, mesmo que tenha diploma de um curso de informática", afirma Seabra. "Se isso fosse suficiente, bastaria distribuir canetas na periferia para acabar com o analfabetismo", compara.

O perigo é conceber a inclusão digital como um saída mágica para a resolução das mazelas sociais, especialmente o desemprego. "No Brasil, associamos muito rapidamente a inclusão social à digital", alerta Rogério da Costa. Na esperança de conseguir um trabalho, esse pode ser um discurso sedutor para qualquer pessoa. "Não se pode confundir o ideal de construir uma sociedade mais justa com a utilização de argumentos demagógicos", diz Seabra.

Os programas do estado, da prefeitura e o CDI garantem que não têm o objetivo de abrir portas para o mercado de trabalho. Mas essa fronteira é tênue. Nem todos os que utilizam esses pontos de acesso estão preocupados com o fortalecimento da identidade comunitária. "A inclusão digital não resolve problemas socioeconômicos", pondera Amadeu. Para ele, trata-se de fazer valer o "direito inalienável de se comunicar, seja a pessoa pobre ou rica".


Inclusão com S

Ampliar o acesso da população de baixa renda às tecnologias digitais também faz parte dos objetivos do Serviço Social do Comércio de São Paulo (Sesc SP). O programa criado para suprir essa demanda, batizado de Internet Livre, teve início em maio de 2001. Porém, a idéia de construir um espaço destinado ao uso de computadores havia surgido na unidade de Araraquara, um ano antes.

Para Vinícius Terra, coordenador do programa, a rede não pode ser encarada como "mero centro de recepção de informação". Por isso, os usuários do projeto, orientados por monitores rigorosamente selecionados, são incentivados a produzir "home pages" e "blogs" coletivos que traduzam um modo próprio de fazer Internet. Na verdade, esse é um importante diferencial: constituir uma alternativa aos grandes sites e provedores. "Não queremos converter ninguém, mas fazer com que as pessoas descubram seus próprios caminhos", resume ele.

Hoje, existem dez salas do Internet Livre – oito na capital e duas no interior. Os freqüentadores têm, além do uso livre das máquinas, a opção de fazer oficinas de programas específicos de computador. O intuito é levá-los a "ampliar sua relação com a Internet", justifica Terra. "Não temos preocupação com a formação profissional das pessoas. A essência é juntá-las em rede", conclui.

O Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial de São Paulo (Senac SP) também desenvolve um projeto de inclusão digital desde 2001. Um cartão, vendido a R$ 2, permite aos interessados acessar, por 30 minutos diários, computadores conectados à Internet durante o período de um ano. Essa é a dinâmica do On-Line Cidadão. As máquinas, instaladas em quiosques, ficam em locais públicos de grande movimento, como o Museu de Arte de São Paulo (Masp), por exemplo. Já são 15 mil usuários cadastrados em 28 pontos de acesso espalhados pela Grande São Paulo. "O conceito do programa é o da aprendizagem espontânea", diz Lígia Pappone, coordenadora executiva. Ela conta que, no começo, muitos usuários se espantavam por não haver instrutores nos quiosques. "Mas hoje eles tomam conta do projeto e ajudam uns aos outros", completa.

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