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A batalha da inclusão


Marco Antonio Pellegrini no trabalho /
Foto: Célia Thomé

No Brasil, pessoas com deficiência ainda lutam por seus direitos

MARIA LUIZA DE ARAUJO

Em seu primeiro dia de férias, em julho de 1991, Marco Antonio Pellegrini, analista do Departamento de Projetos de Telecomunicações do Metrô de São Paulo, voltava para casa pilotando sua moto. Ao chegar, foi surpreendido por dois homens. Na tentativa de assalto, ele foi atingido por tiros de revólver calibre 38 no pescoço e no braço. A conseqüência foi uma tetraplegia total, que é muito mais que a incapacidade de movimentar os membros: é a ausência completa de sensibilidade.

A sorte de Marco Antonio poderia estar selada para sempre, como a de tantos outros brasileiros deficientes. Ele, porém, não aceitou a situação e resolveu lutar: "Tinha a convicção de que a aposentadoria precoce traria uma paralisação em todas as questões de minha vida, social, profissional, financeira e psicológica". O resultado dessa decisão foi sua volta ao Metrô em 1994, no mesmo cargo e departamento. Em 1998 ele passou a atuar na Gerência de Serviços Administrativos.

Para Marco Antonio voltar à ativa, um longo caminho teve de ser percorrido. "Nunca vou esquecer a expressão da médica do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) ao me ver pilotando a cadeira de rodas com o queixo. Ela assinou a alta na hora", lembra ele. A empresa, por sua vez, teve um papel fundamental nesse retorno. "Percebi que não havia informações nem soluções prontas. Logo ficou claro que a tecnologia é um fator determinante, pois, com assentos adequados, cadeiras motorizadas, computadores adaptados, automações ambientais, entre outros dispositivos, é possível desempenhar com autonomia grande parte das tarefas."

No Brasil de hoje, quantas são as pessoas com deficiência? Só a partir do Censo 2000, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os questionários passaram a incluir, depois de muitas reivindicações, um item específico para elas. De acordo com os dados preliminares já divulgados, 14,5% da população brasileira apresenta algum tipo de deficiência. Esse percentual equivale a cerca de 24,5 milhões de pessoas, número que, no entanto, provocou polêmica, porque incluía aquelas que, para enxergar bem, necessitavam de óculos ou lentes de contato.

A medicina somente considera um indivíduo deficiente visual se o uso de óculos ou uma cirurgia não lhe devolver a visão. Já o texto do decreto 3.298, de dezembro de 1999, define deficiência como "toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano".

Filosofia da inclusão

Em 1981, Ano Internacional das Pessoas Deficientes, a Organização das Nações Unidas (ONU) voltou sua atenção para esse problema e começou um debate sobre o tema, que resultou no Programa de Ação Mundial para as Pessoas Deficientes, adotado pela Assembléia Geral da entidade em dezembro de 1982. Essa iniciativa colocou em evidência o direito dessas pessoas a uma vida digna. Também em 1981, a Disabled People’s International, da qual o Brasil faz parte, publicou uma declaração de princípios e definiu a equiparação de oportunidades: "É o processo mediante o qual os sistemas gerais da sociedade, tais como o meio físico, a habitação e o transporte, os serviços sociais e de saúde, oportunidades educacionais e de trabalho, a vida cultural e social, incluídas as instalações esportivas e de recreação, são acessíveis a todos".

Até 1981, o que vigorava era o conceito de integração da pessoa com deficiência. A idéia era integrá-la à sociedade, obedecendo aos parâmetros já estabelecidos. Em outras palavras, era o deficiente quem deveria se adaptar ao meio em que vivia. A inclusão modifica essa visão, pressupondo que cabe à sociedade encontrar meios para conviver com essas pessoas.

Autor do livro Inclusão: Construindo uma Sociedade para Todos e co-autor de Inclusão dá Trabalho, o professor Romeu Kazumi Sassaki, que participou do processo de recondução de Marco Antonio ao Metrô, já foi consultor de educação inclusiva em Goiás, Paraná e Minas Gerais. Para ele, inclusão "é o processo de adequação da sociedade às necessidades de seus membros para que eles, uma vez nela incluídos, possam desenvolver-se e exercer plenamente sua cidadania".

Tereza Costa d’Amaral, superintendente do Instituto Brasileiro de Defesa dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência (IBDD), com sede no Rio de Janeiro, é mais enfática: "Os portadores de deficiência vivem a mais radical exclusão. Existe um conluio secreto entre sociedade e Estado em nosso país em relação à questão do deficiente. Esse acordo começa com a manutenção do assistencialismo e do paternalismo, passa pelas falsas políticas de participação e se completa quando entende a deficiência como diferença e aceita a cidadania incompleta dos diferentes".

O IBDD iniciou suas atividades em 1996, priorizando áreas como defesa de direitos, profissionalização, inserção no mercado de trabalho e esporte. Em 2002, o instituto inaugurou o Centro de Profissionalização, em parceria com as fundações Vitae, Avina e Ford, e, em 2003, foi aberto o Centro de Esporte e Cidadania, patrocinado pela Petrobras.

Tereza Costa fala com o conhecimento de quem participou da implantação da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde), criada pela lei 7.853, de outubro de 1989. Ela, que dirigiu a Corde por três anos, considera que não existe ainda uma política nacional para o setor: "Desse modo, os níveis federal, estadual e municipal têm de desenvolver linhas de atuação próprias, sem coordenação nem direcionamento".

Locomoção

Embora exista no Brasil uma extensa legislação que trata da questão da pessoa com deficiência, algumas empresas, engajadas na política de responsabilidade social, decidiram tomar medidas por conta própria. Maria Beatriz Pestana Barbosa, chefe do Departamento Técnico de Operação, Treinamento e Desenvolvimento do Metrô de São Paulo, considera a acessibilidade – rampas, banheiros adaptados, guias rebaixadas, entre outros itens – no meio urbano um determinante da qualidade de vida da sociedade. O Metrô – que tem hoje 175 funcionários com deficiência ou reabilitados – desenvolve programas de treinamento para quem trabalha na área de atendimento, como o ensino da Língua Brasileira de Sinais (Libras), e promove modificações em suas estações e equipamentos, como os assentos preferenciais nos trens, implantados em 1991.

Outros meios de transporte não oferecem as mesmas facilidades. A capital paulista, por exemplo, considerada a mais bem equipada, mostra um quadro de precariedade em relação às pessoas com deficiência física: de acordo com dados da SPTrans, há 237 ônibus adaptados – 2,5% da frota –, 75 lotações em vans adaptadas e 122 veículos do serviço Atende, que leva essas pessoas e acompanhantes, diariamente, para a escola, fisioterapia, atendimento médico e programas agendados nos fins de semana. É essa a situação, embora na lei federal 10.048, de novembro de 2000, haja previsão de fabricação de ônibus específicos e de adaptações naqueles já existentes. No município, existe autorização para um carro adaptado por linha, desde a lei 11.602, de julho de 1994.

Mas não é só no quesito transporte que a capital paulista fica devendo quando o assunto é inclusão. Andréa Schwarz, autora do guia "São Paulo Adaptada", classifica a cidade como excludente. Deficiente física desde os 22 anos – teve um problema na medula que a deixou com as pernas paralisadas –, ela contou com a ajuda do namorado, o publicitário Jaques Haber, no levantamento da situação de edificações e espaços urbanos, serviços, leis e normas, entre vários itens. Depois de visitar mais de mil estabelecimentos, Andréa conclui: "Não sou eu a deficiente, e sim a cidade, que me coloca nessa situação".

Um grande desafio

Quando se fala em inclusão, dois campos merecem destaque pela importância que assumem na vida de qualquer pessoa: educação e trabalho. Na rede paulista de ensino público e instituições conveniadas, por exemplo, há 33 mil estudantes que apresentam alguma necessidade especial, dentre os quais 17 mil são atendidos pela Secretaria da Educação em 1.485 escolas da rede. No Brasil, seriam cerca de 347 mil alunos especiais.

Segundo Maria Alice Rosmaninho Perez, diretora do Centro de Apoio Pedagógico Especial (Cape), foi só a partir do final dos anos 90 que a discussão sobre escola inclusiva foi acentuada. A lei que assegura às pessoas com deficiência o direito de estudar em escolas comuns é de 1996, mas só em setembro de 2002 uma resolução do Ministério da Educação estabeleceu normas para as adaptações. Para Maria Alice, o momento agora já não é de discutir a filosofia, mas, sim, de como chegar a essa escola inclusiva.

Em 2002, a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de São Paulo (Apae-SP) fez uma tentativa inédita: abriu uma unidade, a Escola Dona Paulina, para crianças "normais" de 4 a 6 anos da comunidade. Essa iniciativa, elogiada pela Secretaria da Educação, durou só seis meses, pois a escola não conseguiu o número necessário de alunos para funcionar em 2003. Mas a experiência será retomada em 2004, garante o presidente da entidade, Nelson Vilaronga. Ele acredita que a sociedade ainda não está preparada para a inclusão: "O maior desafio não era pedagógico, mas o preconceito".

Muitas entidades, como a própria Apae, investem na continuidade da educação para conseguir colocar essas pessoas no mercado de trabalho. Uma delas é a Associação de Deficientes Visuais e Amigos (Adeva), que criou o projeto Desenvolvendo Talentos, uma parceria com várias secretarias estaduais de São Paulo e empresas privadas. A Adeva promove cursos profissionalizantes de informática, telemarketing e comportamentais, que ajudam na preparação para o trabalho. Há também um Infocentro, aberto a todas as pessoas com deficiência visual. "O mercado de trabalho está melhorando, mas ainda não é muito receptivo", afirma o presidente da entidade, Markiano Charan Filho, ele próprio com deficiência visual. Em sua opinião, mesmo capacitado, o indivíduo enfrenta resistência por parte das empresas, que ignoram sua capacidade e potencial.

O ambiente de trabalho, principalmente no caso de instalações mais antigas, pode apresentar barreiras arquitetônicas, mas muitas vezes os empresários não sabem que as adaptações necessárias podem ser pequenas, como a colocação de placas em braile. É preciso destacar, no campo do trabalho, o decreto 3.298, de dezembro de 1999. O artigo 36 dispõe que a empresa com cem ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% a 5% de seus cargos com beneficiários da previdência social reabilitados ou com pessoas com deficiência habilitadas, obedecendo a uma proporção, de acordo com o número de empregados.

Segundo Açucena Calixto Bonanato, diretora de treinamento e desenvolvimento da Suporte Assessoria e Consultoria em Recursos Humanos, por causa da lei as empresas começaram não só a se mexer mas também a interiorizar o conceito de inclusão. A Suporte, que há dez anos coloca pessoas com deficiência no mercado de trabalho, vem desenvolvendo o Projeto Cidadania, destinado ao aprimoramento da relação empresa/empregado, desde o estudo para a contratação até o acompanhamento do trabalhador. Ela investe também em treinamento gratuito: em 2002 criou o Instituto Pró-Cidadania de Desenvolvimento e Capacitação de Pessoas Especiais.

Uma empresa que decidiu apostar nesse segmento foi a BR Distribuidora: "Não temos de ver essas pessoas como deficientes, mas como indivíduos que necessitam de algumas modificações no ambiente físico para poder exercer sua cidadania. Na década da responsabilidade social, temos de estar engajados", justifica Fernando Barbosa, diretor de Mercado Automotivo e Lubrificantes. Por conta do projeto Cidadão Capaz, três postos já foram adaptados para esses trabalhadores em Brasília, Valinhos (SP) e Rio de Janeiro, e há planos para mais 13 até o final deste ano.

No primeiro posto, em Brasília, são 15 trabalhadores com vários tipos de deficiência. O gerente, Demerval Freitas de Almeida, que tem atrofia na perna esquerda, diz que o começo não foi fácil, pois para a maioria era o primeiro emprego, mas hoje as dificuldades foram superadas.

"Sou otimista", conclui Marco Antonio Pellegrini. "A questão do deficiente é ampla e estará atendida quando o respeito à diversidade e a equiparação de oportunidades forem incorporados ao processo de transformação que a sociedade está vivendo."

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