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Entrevista
João Bosco

Em entrevista exclusiva, o compositor revela o fio condutor de sua obra e fala de projetos futuros. Entre eles, retomar a parceria com Aldir Blanc

João Bosco começou a tocar violão aos 12 anos, incentivado pela família de músicos, em Minas Gerais, onde nasceu. Anos mais tarde, entra na faculdade de engenharia metalúrgica em Ouro Preto, e, mesmo sem abandonar os estudos, inicia a relação com a música, atraído principalmente pelo jazz, bossa nova e tropicalismo. Em grande estilo, dá alguns dos primeiros passos ao lado de Vinicius de Moraes, com quem compôs Rosa dos Ventos, Samba do Pouso e O Mergulhador. Encorajado pelo amigo poeta a ir para o Rio de Janeiro, em 1971 conhece o letrista Aldir Blanc, com quem faria uma série de parcerias consideradas formidáveis - Bala com Bala, Corsário, De Frente pro Crime, e Caça à Raposa, para citar algumas. A primeira canção gravada, Agnus Sei (parceria com Aldir), aparece como lado B em uma das edições de Disco de Bolso, lançado pelo jornal O Pasquim; Águas de Março, de Tom Jobim, vinha no lado A. A frutífera parceria com Aldir constrói alguns dos grandes emblemas do cancioneiro popular da segunda metade do século passado - e muitas se tornam clássicos da MPB na voz de Elis Regina, como Mestre-sala dos Mares, Dois pra Lá, Dois pra Cá e O Bêbado e o Equilibrista, tido até hoje como uma espécie de hino informal e poético da anistia política na época da ditadura. Nas décadas de 1980 e 90 lança trabalhos que o destacam como violonista - elogiado por músicos como o inglês John McLaughin - e o consolidam como grande compositor. Depois do rompimento com Aldir Blanc, no início dos anos de 1980, passa a atuar mais freqüentemente como cantor, e encontra outros parceiros, como Capinam - com quem cria o grande sucesso Papel Machê -, Waly Salomão e Antônio Cícero. Nesta entrevista concedida com exclusividade à Revista E, João Bosco relembra os amigos, fala das parcerias e revela que entre seus planos está voltar a compor com o amigo Aldir Blanc, num álbum que contará ainda com a participação de seu filho, Francisco Bosco.


Você está gravando ou pensando em gravar atualmente?
Tenho o projeto de um disco inédito, já estou trabalhando nele. A idéia é fazer este disco com o Francisco Bosco, que tem sido meu parceiro recentemente, e com o Aldir Blanc. Ainda não tivemos a reunião para definir tudo, mas tenho a impressão de que brevemente isso acontecerá. Estou indo para uma turnê longa, dois meses, fora do Brasil, daqui a alguns dias. Só voltarei depois da segunda quinzena de agosto. Queremos fazer a reunião antes da viagem para podermos definir as coisas para o disco. Queremos fazer esse disco a três por vários motivos. Tenho ainda outros projetos, daqueles que a gente fica pensando. Um deles é fazer um disco com o César Camargo Mariano, um disco de violões e piano. Nós sempre tivemos uma grande ligação, desde os tempos da Elis Regina; nós começamos juntos em 1972 com ela. Foi também a primeira gravação que tive, Bala com Bala. Então, temos muitas afinidades na carreira. Ele produziu meu disco Comissão de Frente e tocou e arranjou no Caça à Raposa. Fora isso, sou ligado à família, tenho uma relação muito forte com eles. Há pouco tempo o César me telefonou e falamos que a gente podia pensar em fazer um disco.

Vocês têm alguma idéia para esse disco?
Músico funciona muito com o instrumento na mão, ficar pensando sem estar junto com a pessoa, e cada um com seu instrumento, é sempre demorado e nunca se concretiza. Mas imagino que ele esteja pensando em músicas mais percussivas, com mais balanço. Estou indo para esta viagem, a última etapa é nos Estados Unidos, pretendo encontrar com ele lá e voltaremos juntos para o Brasil, nesse intervalo de tempo devemos trocar algumas idéias por telefone, ele já tem um repertório grande.


Como acontece a reunião entre você, o Francisco e o Aldir? Qual o método de trabalho?
Eu fui parceiro do Aldir por anos, fizemos vários discos juntos e nossa parceria fluía de tal maneira que tudo era muito fácil, o que um falava servia de inspiração para o outro fazer, uma história que eu contasse da minha família se transformava em uma música, tudo muito bem entrosado. Fazíamos de tudo, musicávamos textos, “letrávamos” as músicas, chegamos a um ponto onde tudo fluía naturalmente. Eu conheço o jeito de trabalhar com ele. Com o Chico eu fiz três CDs. Ele é uma pessoa diferente, com outro sistema. O Chico e o Aldir têm qualidades maravilhosas, os dois foram músicos de instrumentos de percussão. O Aldir é percussionista e o Chico tocou bateria no Rio de Janeiro com uma banda da turma dele. Por isso eles têm muita facilidade de colocar o verso no ritmo, o que é algo complicado. Já trabalhei com vários poetas e sei que isso não se aprende na escola. É preciso sentir a palavra; o Aldir é um mestre. E o Chico entrou muito bem em função dessa experiência como baterista. Hoje ele não toca mais e, assim como o Aldir, é um cara completamente ligado ao trabalho com a palavra. Ele faz letras no canto dele e nós vamos trocando idéia. Uma qualidade que eu admiro nos letristas é não se importar muito com as dicas do compositor, porque muitas vezes nós dizemos uma coisa e não é nada daquilo. O Aldir é padrinho de nascimento do Chico, existe uma relação poética bonita.


Existiu algum motivo em especial para vocês terem se separado? Até hoje existem muitas versões sobre esse rompimento. À época vocês formavam a dupla de mais prestígio na MPB.
Quando chegamos no Comissão de Frente, que é de 1982 ou 1983, já estávamos trabalhando menos, sentíamos uma certa exaustão. A intensidade e exclusividade foram muito grandes. Chega um momento em que você fica um pouco exaurido, até na inspiração daquela relação. Ficou fácil demais e eu e ele não temos esse temperamento, talvez tenhamos criado situações para podermos caminhar sozinhos e ver o que encontrávamos por esses caminhos, nós até escrevemos sobre isso, fizemos músicas. Por que não experimentar isso também? Era um direito que nós tínhamos. Depois nos encontramos e vimos que nesse ato não havia nada que alterasse nossa relação. A primeira vez que nos encontramos, vinte anos depois, e começamos a falar, vimos que não havia nada que alterasse aquela amizade, era como se tivéssemos nos encontrado ontem à noite pela última vez. Esta é a prova de que quando nos separamos e trilhamos caminhos diferentes o fizemos com o maior respeito, além de cada um levar consigo uma experiência do outro. Quando nos encontramos no estúdio, o Flamengo estava jogando, assistimos um pouco e começaram a acontecer as letras, como acontecia anos atrás - porque ele é vascaíno e eu sou flamenguista. A esportiva do Aldir em escrever essas letras sendo hora vascaíno e hora flamenguista, respeitando a dupla, é digno de uma medalha olímpica. No Gol Anulado, ele é casado com uma mulher que ele jurava que fosse vascaína até o momento que ela escuta o gol do Zico no rádio e começa a vibrar. Essa idéia do Flamengo e Vasco a gente sempre administrou muito bem, nós íamos aos estádios juntos. Quando fomos gravar o song book, estava acontecendo o jogo e começou aquela mesma conversa sobre futebol. Quando você encontra um grande amigo de tanto tempo, o que um músico e um poeta podem fazer depois de tanto tempo sem se ver, qual é a celebração? Fazer uma música e uma poesia juntos.

Neste período de separação de uma dupla tão importante houve muitos boatos, mas da boca de vocês sempre dava a entender que existia uma porta aberta para uma reconciliação ou uma retomada...
Eu costumo dizer que todos os motivos foram suficientes para a gente poder dar um tempo, inclusive a falta deles. Não ter motivo nenhum para dar um tempo é terrível porque também é um grande motivo: não acontece nada e separa. Tem uma grande sabedoria em ter a oportunidade de dar um tempo e partir para outra coisa e não ficar em uma situação confortável de quem já criou a fama e deita-se na cama. A gente não falou nada sobre nossa separação, não fizemos alarde e não tiveram matérias sensacionalistas sobre isso. Simplesmente paramos porque surgiu a oportunidade, não lembro bem qual foi, não sei o que aconteceu, mas não foi uma coisa, e sim uma situação, onde o parar era bom e necessário.


Quando existe uma melodia, podemos dizer que ela já tem um universo musical, mas ela já tem um universo temático?
É uma intuição visual e cinematográfica. Sou muito ligado na forma e em cinema, também adoro artes plásticas. A música acaba adquirindo um processo visual, é difícil isso não acontecer, é um trabalho com o épico, o romântico, o satírico, o samba ou a negritude; cada uma dessas vertentes em que o meu trabalho se divide tem a sua “pegada” visual. O que eu falo é o óbvio, isso não quer dizer que as pessoas respeitem, o que é ótimo. Nós falamos para nos desincumbir daquela responsabilidade. Se a música vem com uma idéia e você não passa para a frente, fica um pouco cabreiro de ter ocultado a informação, então você fala. Você faz um samba e acha que é cabo-verdiano - eu estive em Cabo Verde e conheço a música de lá, alguns poetas e a luz da ilha -, você diz que acha que aquele samba tem o ritmo de Cabo Verde, se ele quiser traduzir essa idéia ótimo, se não ele vai por outro caminho e vem uma coisa maravilhosa. Mas isso eu não posso esconder, não devo. Faço uma canção com uma levada de violão bem tropical que me lembra o cineasta estrangeiro vindo filmar a paisagem brasileira, não posso deixar de dizer isso, mas se a pessoa quiser fazer outra coisa é porque aquilo chega para ela de maneira diferente. O importante é que as duas pessoas tenham uma idéia sobre aquilo, a idéia de quem coloca por último o seu trabalho é que é fundamental. Este é o arremate da questão, a música deixa de ser de dois e passa a ser de um. Duas pessoas assinam, mas é como se fosse uma só. É encaixar e sentir o que a música pede, quem fica por último é fundamental.

A melodia nasce em cima de uma idéia textual?
A palavra para mim é muito importante em termos musicais. Um poema, um filme, um quadro, são coisas que detonam idéias musicais muito mais que a música propriamente dita. Um flagrante, uma cena, uma faísca, mais do que se inspirar em uma música. A música do outro sempre foi fundamental na minha vida, você vai vendo como os compositores trilham seus caminhos, fica estudando que caminho faz e a solução que a pessoa deu, melódica ou harmônica, o silêncio que a pessoa utiliza, isso em qualquer tipo de música. Vejo a formalidade dos compositores clássicos, a negritude brasileira. Uma negritude que tem origem na África, depois se divide entre o afro-brasileiro e o afro-americano, posteriormente o afro-caribenho e o afro-oriental, que é a África do Norte. Você vai vendo como as pessoas trilharam caminhos e chegaram naquilo. É uma questão de tocar a música do outro. A inspiração para compor uma música completa, com começo, meio e fim, vem muito mais da palavra, de uma cena, de um flagrante do que da própria música. O que você aprende na verdade com a música são as ferramentas que você deve utilizar para poder traduzir as idéias que você tem quando vê alguma coisa. Como no livro do Ferreira Gullar, que é belíssimo, no qual ele começa a ver uma série de pinturas e passa a escrever sobre as sensações de ver aqueles quadros. É uma sensação que você controla o mínimo do que se sente, bom é deixar fluir e escrever o que está provocando em você sem nenhum tipo de policiamento de estética, você vai escrevendo. Ele fez um livro belíssimo sobre o que é estar diante de algo, o que eu chamo de inspiração é isso.


O que te leva a escolher determinado compositor ou determinada canção para estudar?

Isso é casualidade. Não existe mais aquilo de alguém dizer para você escutar tal compositor porque você não vê as pessoas sempre, a cidade é grande, as pessoas estão indo a lugares diferentes, não existe facilidade de encontro. É mesmo a casualidade. Eu entro em um lugar e está tocando um disco que me chama a atenção, pergunto o que é, olho a capa. Ou em um automóvel de alguém que está ouvindo uma música, essas coisas você vai encontrando pelo caminho, é casual da vida. Essa é a melhor maneira de você encontrar a música. Já em casa você tem sua discoteca e escuta música conforme sua necessidade. Busca serenidade, ou quer agitar, vai colocando as músicas conforme sua necessidade no momento. São experiências que são acumuladas. Você vai acrescentando situações e elas vão gerando outras.


As coisas que você já fez influenciam seu trabalho atual de alguma forma?
É difícil separar o momento que eu vivo das coisas que eu vim trazendo comigo, não há uma cisão, não é fragmentado, é um carretel em que você vai puxando a linha e uma coisa está ligada à outra. É uma reflexão que se faz na música e vai até minha geração, era uma maneira nossa de ver as coisas e se situar dentro delas. É muito mais fácil fragmentar, hoje a pessoa começa de um ponto em que ela não conhece o ponto anterior, ele já não existe. Na música popular a oralidade tem uma importância muito grande e hoje esta oralidade vem muito mais dos veículos de comunicação do que das músicas, é um processo diferente. Eu me encaixo no outro processo, sou um compositor que veio da rua, com influências literárias, do cinema. Hoje a oralidade é outra e a informação vem de outros lugares. Nós dizíamos que a música popular até certo momento poderia estar a serviço de uma análise literária do que existia no processo cultural brasileiro, principalmente no momento em que era difícil escrever livros e expressar idéias por meio deles, por uma questão política e de censura. A música ajudou muito a fazer esse trabalho. A literatura tinha uma grande importância na música brasileira, hoje em dia nem tanto, um compositor popular não precisa de literatura. O disco do Marcelo D2, por exemplo, é excelente, um sujeito com uma facilidade de comunicação muito grande e observador nato; ele, que foi camelô, possui a intuição fantástica de estar ali no meio da rua tentando aglutinar multidões e vendendo uma idéia, o que é um talento fantástico. É um trabalho que vem de uma cisão, ligado ao rock e coisas do gênero. Quando ele faz À procura da batida perfeita, vem por trás da fonte, traz o samba para perto do mundo hip-hop, da movimentação atual dessa música.


Você tem uma canção que virou uma espécie de símbolo da anistia, acabou se tornando engajada, que é O Bêbado e o Equilibrista. O que você acha dela hoje?
Eu adoro essa canção. Essa música nasce de uma idéia do Charles Chaplin. Quando ele faleceu, todos sentiram muito porque ele divertiu muito e de maneira incomum. Tratando os temas eminentemente humanos e se posicionando dentro desses temas a favor dos miseráveis, do vagabundo. Mas com uma alegria, algo invejável, e no final dos filmes havia sempre um horizonte onde você podia chegar a pensar em um dia viver em um mundo diferente. Não tão desfavorecido como este. Mas ele fazia de uma maneira muito bonita. Eu ligava muito o Chaplin ao sorriso, tem uma música que ele compôs, Smile, que eu acho belíssima, ele também tinha uma inspiração musical. Ele faleceu mais ou menos no final do ano, eu estava em Minas, naquelas festividades de Natal e Ano Novo, e as pessoas entrando já no clima carnavalesco. Comecei a querer fazer no violão algo que ligasse o Chaplin àquele momento musical brasileiro, carnavalesco, desenvolvendo uma linha a partir do sorriso dele, a partir de Smile. Se você pegar a linha de O Bêbado e o Equilibrista vai dar no Smile. Fiz a música assim e falei para o Aldir, que tinha feito uma música e achava que dava para contar uma história, tipo samba-enredo, um enredo do Salgueiro ou da Portela, mas um enredo “chapliniano”. Mostrei a música para ele, que voltou trazendo o que o Chaplin fazia nos filmes dele, trazendo uma esperança a partir de um perdão, tolerância, corda bamba que se equilibra, e de fato é verdade. Não acho aquela letra nem um pouco diferente daquilo que vem do Chaplin. É uma música de uma simplicidade magnânima. Em uma certa hora aquela música cai na mão da Elis Regina e ela se apaixona. Quando ela grava está completamente possuída por aquela música, já não nos pertence.


Tenho a impressão de que a música brasileira se encontra cada vez mais “sem roupa”, no sentido de que faltam as pessoas que fazem os arranjos, você sente isso como músico?
Sinto, você esta falando de utopias. Quando um arranjador senta para fazer um arranjo, entra nas utopias dele, sonhos. Hoje a coisa é mais imediata e a música está mais propensa a uma solução rítmica; o Brasil é um país que tem um talento enorme no sentido de aceitar a idéia da internacionalização, o que a gente chamava de antropofagismo. O Brasil continua com esse mesmo estômago voraz de assimilar as idéias estrangeiras e as mais recentes são as rítmicas, o rap, o ritmo é preponderante. A modernidade hoje é caracterizada pela programação rítmica, que são os computadores e as baterias informatizadas. Mas a contemporaneidade, hoje, pode ser usada em um disco e no momento do lançamento não é mais, porque hoje chega muito mais rapidamente, mas também vai embora mais rápido. É difícil você sonhar porque o sonho precisa de espaço, tempo, de uma amplidão que as questões imediatas não permitem. Hoje você procura soluções que atendam a suas necessidades locais e agora. Se aquele bar toca aquele tipo de música, você pensa em um disco que vai tocar lá, mas daqui a um ano o bar muda o tipo de música. O Brasil assimila isso com muita facilidade, é natural que seja assim. Eu sinto falta de informações paralelas, como literatura, cinema, discos dos outros, para que se estabeleça uma seqüência de passos em linha. Os passos são novos, mas você consegue ver de onde vêm. Hoje são apenas fragmentos, há um corte, de repente a geração que vem daqui a pouco cria algo que não tem nada a ver com o de antes, e aquilo se perde totalmente. Quando a mídia resolve colocar em uma novela de níveis de audiência altíssimos algo que não pertence a este momento, está lá trás, surge o interesse instantâneo em ir lá atrás ver o que se fazia, mas são momentos raros. Você vê uma novela e escuta nomes como Paulinho da Viola, Ary Barroso, Noel Rosa, mas isso deveria fazer parte da formação do músico como acontece na literatura, música também é assim. É natural que você conheça e depois faça seu rap e seu hip-hop.