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Walter Carvalho, co-diretor de Cazuza, fala de sua paixão pela imagem e dos mistérios por trá

O fotógrafo de cinema Walter Carvalho, que co-dirige o longa Cazuza - O Tempo Não Pára, fala de sua paixão pela imagem e dos mistérios por trás da telona

Talvez nem todo mundo saiba que a qualidade das imagens de um filme não é somente mérito - ou culpa, quando o resultado não é positivo - do diretor. Existe outro profissional que decide de que forma as imagens serão vistas - se claras, foscas, suaves ou fortes, para citar alguns dos efeitos possíveis. Trata-se do fotógrafo de cinema, que tem papel fundamental no resultado das obras. Unanimidade entre esses profissionais que dominam a luz, o paraibano Walter Carvalho tem papel igualmente fundamental na história do cinema brasileiro. Com mais de quarenta longas no currículo - entre os mais recentes estão Amarelo Manga e Carandiru -, o também cineasta esteve no projeto Cinema Falado, realizado todo mês pelo Sesc Santo André, para falar sobre suas experiências por trás das câmeras e sobre o nascimento das idéias que vemos na tela grande, como Filme de Amor, com direção de Júlio Bressane, e Cazuza - O Tempo Não Pára, que dirigiu em parceria com Sandra Werneck, ambos em cartaz.


O mistério do cinema
“O fotógrafo é a pessoa que traduz e materializa o sonho de um roteirista. Tento materializar uma informação verbal em linguagem visual, procurando saber quais elementos podem ser utilizados para essa transposição. Vivo uma experiência ao longo de um filme, tento construir uma idéia para aqueles personagens. Eu não quero saber tudo - se eu souber demais, perde a graça. Tem que haver um espaço para eu poder arriscar, no sentido de procurar. No espaço que existe entre o que eu vejo e o que eu deduzo tem um mistério. É um espaço invisível, apesar de eu saber que ele existe. O mistério do que está por trás - que não vejo, mas imagino - é o que me interessa na fotografia. Quando você ilumina um objeto e a luz incide apenas na superfície, a tendência é ficar bonito, mas você não penetra na alma desse objeto. O cinema precisa trazer algo de misterioso. Você não conhece, mas se emociona. A luz tem que penetrar no objeto e não ficar só na superfície. Por isso existem filmes que não encantam. Por isso existem filmes que são bons e outros que não deveriam ter sido feitos. Eu lido com algo que tem um risco e me encontro por meio da técnica, da intuição, do conhecimento, da relação com os outros departamentos da produção e da orientação do diretor. Quando termina a produção de um filme, eu vivi uma experiência e fico pensando que determinado objeto não deveria ter sido iluminado, que poderia ter sido escondido, etc. Mas aí o filme já está pronto.”


Por dentro dos personagens
“O Cláudio Assis [diretor de Amarelo Manga] teve uma namorada que pintava os pêlos de loiro, daí o nome do filme. Eu acho sensacional não só a idéia dela, mas a dele de se inspirar nisso para o título de um filme. Uma das nossas primeiras preocupações foi utilizar a locação no Recife antigo sem interferir em nada. Se tivéssemos que construir um quarto para um personagem, que fosse copiado de um daquela região que visitamos. Foram 150 latas de filme, cinco semanas e um pouco menos de 500 mil reais de orçamento. É uma coisa louca fazer um filme com uma quantia dessas. Só para ter uma idéia, Carandiru custou 12 milhões de reais. Então, por exemplo, numa cena em que um carro virava numa esquina, os figurantes eram pessoas que estavam passando na hora, com alguns gatos pingados no primeiro plano. Já no hotel, as paredes são de taipa e não vão até o teto. A gente sentiu a necessidade de mostrar também essa topografia. Ou seja, o filme incorporou o dia-a-dia do Recife, que era o que estava ao nosso alcance. O governo do Estado de Pernambuco deu 1.500 reais para ajudar a fazer o filme, o Cláudio queria devolver, ele é bravo que é danado. Mas eu não deixei, falei que era pelo menos a gasolina do carro - alugado, porque ele também não tem carro. Não deixamos que ele devolvesse, mas toda vez que falamos do filme, contamos isso. É um absurdo, um descalabro das autoridades em relação à produção de cinema no Brasil.”



Uma câmera na mão de Cazuza
“Em Cazuza houve ainda a vantagem de eu ser co-diretor, junto com a Sandra Werneck. Pude participar de tudo, e as idéias do roteiro eram trabalhadas em conjunto. Nós queríamos uma coisa, colocávamos o problema para os roteiristas, eles ficavam um mês trabalhando e voltavam com o problema resolvido. Nesse processo de acompanhar o roteiro eu estava automaticamente descobrindo a fotografia do filme, mais do que se eu recebesse o roteiro pronto. Eu vivi todo o processo, e isso foi algo muito bom - ainda mais com dois roteiristas do porte de Victor Navas e Fernando Bonassi. Paralelamente a isso havia o próprio material do Cazuza, tanto em fotos quanto em imagens em movimento que ele mesmo gravava com os amigos, viajando, no palco ou brincando em casa. Fui vendo que o ideal era filmar como se fosse ele. Eu não poderia imaginar como o Cazuza faria se estivesse filmando com uma daquelas câmeras enormes e pesadas, mas o enxergava com uma de super 8, de vídeo VHS mesmo. A proposta, que contou com a poderosa produção da Globo Filmes - que convidou a Sandra para dirigir e ela, por sua vez, me chamou -, era que eu pudesse fazer o que quisesse, e nós tínhamos recursos para isso. Optei, então, por fazer em 16 mm, para me aproximar da linguagem que via nas fotos e filmes caseiros que o Cazuza tinha e que a mãe dele guardou. A opção pelo formato 16 mm foi para ter a mobilidade de uma câmera pequena, a rapidez e a imperfeição de uma câmera na mão, já que eliminamos o tripé. Eu geralmente faço o câmera dos filmes, mas como eu dirigiria esse junto com a Sandra chamei um substituto, para ficar mais tranqüilo e poder dividir melhor a questão da direção. O trabalho surge de uma ‘imperfeição’ que eu encontrei nos próprios filmes dele e tentei traduzir isso para a tecnologia do super 16.”


Beleza vazia
“Como espectador, estou saturado de filme bonito. Não agüento mais, estou louco para um diretor me chamar para fazer um filme feio. Um que traga a feiúra como beleza. Quando estou trabalhando, não me preocupo com a fotogenia, não coloco o refletor em tal lugar por achar que fica mais bonito, coloco para que ele me ajude, com a imagem, a narrar o filme. Se isso resultar em uma coisa fotogênica, é bom; se não, melhor ainda. Meu objetivo não é a beleza, a não ser que eu consiga persegui-la para depois desprezá-la. Nietzsche já dizia: ‘enxergar a beleza de alguma coisa é necessariamente enxergá-la de forma errada’. Eu levo isso quase como um dogma para as minhas coisas. Não existe no meu trabalho o pensamento de ser apenas fotogênico, primeiro tenho que ajudar a contar uma história, preciso achar a posição de um refletor junto com o diretor e minha equipe, uma posição que possa passar a emoção que está no roteiro. Caso contrário, não faz sentido. Como a maioria dos filmes que eu tenho visto por aí. Você pode até assistir e dizer ‘que beleza!’, mas não quer dizer absolutamente nada. Dois meses depois aquele filme não existe, a beleza se esvaiu. Ao passo que o filme que traz uma atração pelo discurso em si é o que fica guardado no coração e na memória de quem vê.”