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Ficção Inédita
O diário de Isabel

O diário de Isabel
Ivana Arruda Leite

á embaixo o Galeão. Mais um pouco e estarei em solo brasileiro. Pedi que Jerusa não viesse me buscar. Prefiro chegar de táxi à casa dela. A última vez que a vi foi no dia do casamento dela com Ronaldo.
Depois que tudo aconteceu, ficou impossível continuar nesta cidade, neste país.
No dia seguinte à cerimônia do casamento de minha filha, aluguei um apartamento em Paris e lá estou, há dez anos.
Moro sozinha com Isabel e Leonardo, dois angorás mimados e melancólicos. Gertrude, minha vizinha, cuidará deles enquanto eu estiver aqui, afinal, são só duas semanas.
Nem meus netos eu conheço. A mais velha tem nove anos e se chama Isabel, o mais novo é um garoto de seis anos, Leonardo.
Ronaldo, o pai das crianças, é de origem irlandesa e sempre me pareceu muito apaixonado por Jerusa. A loirice do pai somada ao jambo da mãe deve ter dado lindas crianças.
Será que Jerusa me perdoou?
Talvez ela estranhe meus cabelos brancos.
Apertei Jerusa nos braços como se ainda fosse uma menina. Que saudade. Ela está mais gorda, mais mulher e me pareceu mais segura. Terá esquecido o que se passou?
Ao seu redor, uma menina magricela, me olhava desconfiada. Isabel. O que ela saberá de mim? Ao lado, o garoto gordinho, mais à vontade, perguntou se eu era sua avó. São lindos os meus netos.
Ronaldo ficou mais corpulento. Seu cabelo já está grisalho, mas ele continua com aquele jeito de menino tímido de quando o conheci. O tempo foi generoso com minha família.
Quando o almoço foi servido, eu achei um exagero de comida. Estou acostumada com refeições leves, torradas, geléia diet, frutas. Eu havia me esquecido da fartura das mesas brasileiras. Jerusa sempre cozinhou muito bem.
Após o almoço, ela e as crianças me acompanharam até o quarto que já estava preparado pra mim. Isabel e Leonardo me assistiram desfazer as malas, pendurar as roupas, guardar apetrechos no banheiro. Jerusa teve que levá-los contra a vontade.
- A vovó precisa descansar.
Aquela palavra me soou estranha. Não é fácil tornar-se avó de repente, principalmente quando os netos já vêem crescidos.
Adormeci ao som de uma casa em pleno funcionamento, crianças brincando, telefone tocando, portas batendo.
À noitinha, tomei um banho e desci refeita. Jerusa e Ronaldo me esperavam com uma dose de uísque. Bebemos e conversamos animadamente ao som da televisão que as crianças assistiam.
Um casal de velhos amigos veio jantar conosco. Confesso que preferia ter ficado em família. Eles perceberam e não se demoraram. Ajudei Jerusa a arrumar a sala e subi. Aos poucos a casa foi silenciando. Como estarão meus gatos?
De repente, ouvi um barulho na porta. Alguém estava mexendo no trinco.
- Entre - falei já deitada.
Era Isabel, de camisola. Lá da porta, ela perguntou:
- Vó, você está dormindo?
- Não, querida, pode entrar.
Ela trazia algo nas mãos. Aproximando-se, disse baixinho:
- Eu trouxe o meu diário pra você ler.
- O seu diário? Que coisa mais linda!
- Vou deixar aqui, tá?
Colocou o diário sobre o criado-mudo e ia saindo quando lhe pedi um beijo. Ela voltou, enrolou os bracinhos no meu pescoço e me deu um beijo demorado. Assim que fechou a porta, acendi o abajur e comecei a leitura.

15 de julho.
Hoje minha avó ligou dizendo que vem ao Brasil. Eu não conheço a minha avó. Ela mora em Paris. Quando ela foi pra lá eu ainda nem tinha nascido. Eu já vi fotografia dela e achei ela muito bonita, mas agora ela deve estar mais velha. Minha mãe disse que, antes de viajar, ela quase morreu num acidente horrível de carro, mas, graças a Deus, ela sarou. Eu estou muito feliz por conhecer a minha avó. Tomara que ela goste de mim.

19 de julho
Ontem minha mãe contou que minha avó namorava um rapaz bem mais moço que ela e que ele morreu no tal acidente de carro. Eles estavam indo para o Rio de Janeiro quando o carro derrapou e caiu num abismo. O moço morreu na hora. Minha avó não morreu, mas ficou um tempão no hospital. Ela ficou tão triste com a morte do namorado, que queria morrer também. Não saía mais de casa, não se arrumava, nem tomava banho. Daí ela tomou remédio e foi melhorando. Depois que minha mãe casou com meu pai, ela foi pra França. Esta é a primeira vez que ela volta ao Brasil.

23 de julho
Minha mãe me contou que minha avó tem um gato que se chama Leonardo e uma gata que se chama Isabel, como eu e o meu irmão. Acho que é pra não ficar com saudade da gente.

25 de julho
Hoje eu vi uma foto do namorado da minha avó, aquele que morreu no acidente de automóvel. Ele era muito bonito. O nome dele era Beto.

27 de julho
Hoje minha mãe contou que o Beto era namorado dela. Da minha mãe. E que ela não sabia que ele também namorava a minha avó. Só ficou sabendo no dia do acidente. Eles namoravam escondido. Quando minha mãe ficou sabendo a verdade, ela também quis morrer.

30 de julho
Está quase na hora da minha avó chegar. Tomara que ela seja legal como minha mãe. Quando eu for grande quero ser como elas, com bastante história pra contar, mesmo que seja história triste

Ivana Arruda Leite é autora de Falo de mulher (ateliê Editorial/2002)