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Música Erudita
“Bravo!”

Cada vez mais longe do estigma de difícil e inacessível aos ouvidos leigos, a música erudita invade a cidade e avança na conquista de legiões de não-iniciados

Há quem diga que a música composta por gênios como Brahms, Wagner e muitos outros requer uma sensibilidade especial para que a sofisticada sonoridade possa tocar as almas contemporâneas. No entanto, historicamente, o estilo, mesmo tendo origem ligada aos monarcas e à aristocracia das antigas cortes do Velho Mundo, guarda passagens de intensa popularidade. “A ópera, por exemplo, era, na Itália, quase como o futebol é hoje no Brasil”, esclareceu o maestro João Maurício Galindo em matéria sobre o assunto publicada na Revista E de maio de 2002. “Havia torcida na platéia, era uma festa.” Também é verdade que a capacidade de sensibilizar o público faz com que muitas dessas composições permaneçam atuais. Mesmo os não-acostumados às salas de concerto certamente reconheceriam algumas peças, ainda que de comerciais de sabonetes ou carros, ou mesmo de filmes como os hollywoodianos Amadeus (1984) ou Minha Amada Imortal (1994), que se dispuseram a contar, respectivamente, a vida do austríaco Wolfgang Amadeus Mozart e do alemão Ludwig van Beethoven, dois dos mais famosos compositores do gênero. Mesmo que o otimismo em relação a uma retomada da antiga popularidade da música erudita não chegue a vislumbrar estádios lotados para a execução de um dos seis concertos de Brandenburgo, de Bach, consistentes movimentos de reaproximação do grande público com a música clássica começam a mostrar novos rumos para essa relação. Há cerca de três anos, iniciativas públicas e de instituições como o Sesc São Paulo (ver boxe) vêm rapidamente obtendo sensíveis resultados. “Se as pessoas têm a oportunidade de chegar perto, elas gostam”, observa Elza Costa, coordenadora do Theatro Municipal Visita. “O projeto começou em 2001 e foi pensado justamente para levar o que acontece no Theatro Municipal para os bairros”, explica o maestro Daniel Misiuk, diretor artístico do TM Visita. As apresentações acontecem em teatros de bairro e também nas unidades do CEU (Centro Educacional Unificado), e o interesse do público, segundo os organizadores, é bastante animador. “Podemos dizer que estamos chegando perto do objetivo”, comemora o maestro. “A freqüência vem aumentando sem parar. Os problemas iniciais de adaptação foram solucionados, cobrou-se uma participação mais efetiva dos artistas - no sentido de eles se aproximarem mais do público - e houve uma resposta imediata. As pessoas se sentiram importantes, porque quando um artista se coloca à disposição, não só do ponto de vista de seu ofício, mas também no âmbito da cidadania, o retorno aparece.” Segundo Elza, as apresentações estão virando hábito entre a população. “Se por algum motivo o concerto não acontece, nós somos cobrados, as pessoas querem saber por que a gente não vai, e isso é um bom indicador”, completa a coordenadora.


Música e dança
Segundo o maestro Henrique Lian, gerente artístico do Theatro Municipal e coordenador da série de concertos de câmara da Orquestra Sinfônica Municipal - outro sucesso de público -, esse crescente interesse pela música erudita não esconde nenhum segredo. “Só foi preciso oferecer a música para que as pessoas descobrissem que ela existe e passassem a ‘consumi-la’”, diz. “Eu acredito que já seja possível, hoje, comparar o público de música erudita de São Paulo ao de algumas cidades da Europa, por exemplo.” Antes que os mais realistas estranhem a comparação, o maestro explica: “Se levarmos em consideração o tamanho da nossa cidade, o público ainda é pequeno, mas se considerarmos que a maior cidade européia ainda é menor que São Paulo, nós temos, em quantidade, um público suficiente para encher mais de uma sala no mesmo dia”. Lian conta que a série que coordena, cujo ingresso custa 5 reais, já teve casa lotada “em várias ocasiões” - e a capacidade máxima do TM é de 1.450 lugares. “Por vezes, salas como as do Cultura Artística, Theatro Municipal e Sala São Paulo realizaram apresentações de música erudita concomitantemente e todas elas encheram. Se fizermos uma média de mil lugares em cada uma dessas salas, nós temos 3 mil pessoas assistindo a concertos num final de semana. O que eu considero um recorde absoluto”, analisa, referindo-se também aos Concertos Matinais oferecidos pela suntuosa Sala São Paulo, localizada na Estação Júlio Prestes, por apenas 2 reais (ou 1 real, se os ingressos forem adquiridos antecipadamente no Poupatempo). No Centro Cultural Banco do Brasil, os concertos de música erudita acontecem sempre às terças-feiras. A cada mês um tema, ou autor, é escolhido e ocorrem quatro apresentações. Em junho, por exemplo, a programação focou a trajetória de Bach e Brahms. Julho será o mês dos compositores russos, reunidos sob o tema Viagem Musical À Terra dos Czares. A abertura, no dia 6, terá a bailarina Ana Botafogo apresentando solos dos balés Romeu e Julieta, A Bela Adormecida e O Quebra Nozes, todos compostos por Piotr Tchaikovsky. O ingresso custa 6 reais e os espetáculos começam às 13 horas.


No tempo certo
Um dos pontos mais importantes para o sucesso dessa vertente musical diante de um público cada vez mais diverso é o cuidado ao formatar as apresentações. O “produto” é de primeira qualidade, mas a “embalagem” deve ser igualmente atraente. Além de oferecer entrada franca ou preços populares - que geralmente variam de 1 a 6 reais, dependendo do local da apresentação e do projeto -, há cuidado especial com a escolha do repertório, que sempre procura mesclar obras mais conhecidas a outras nem tanto, e com a duração de cada espetáculo. “Nossos programas são curtos”, afirma a maestrina Mara Campos, coordenadora do Projeto Música de Câmara do Coral Paulistano. “Nada de duas horas ou uma hora e quarenta. O nosso público, em virtude dos horários - meio-dia e meia e 18 horas -, está em horário de almoço ou saindo do trabalho. Por isso eles têm uma hora de duração no máximo e são explicados, ou seja, existe uma preocupação didática. Há sempre comentários, em textos ou através de um bate-papo com a platéia, numa conversa informal.” O público que freqüenta as apresentações do Coral Paulistano é também bem variado. Estudantes, executivos, donas-de-casa, aposentados e pessoas idosas. “Na sua maioria, é um público leigo, não habituado a concertos”, ressalta Mara. As apresentações não se dão apenas no Theatro Municipal. Vez por outra, os integrantes do Coral Paulistano se apresentam também no Pateo do Collegio, na região central de São Paulo, e no auditório da Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobato, na Vila Buarque. “O que move essas pessoas a virem assistir a um coral ou um concerto é um motivo muito simples”, analisa Mara Campos. “É para se sentirem bem, buscar um eco da sua vida e do seu dia-a-dia no canto e na voz de outras pessoas, ver expressos seus afetos, suas dúvidas, seus sentimentos. São pessoas que buscam uma identificação. Eles vêm, enfim, pela música.”



MÚSICA ERUDITA E ELETRÔNICA - Unidades Ipiranga e Vila Mariana do Sesc sediam a V Bienal Internacional de Música Eletroacústica de São Paulo
Antes que qualquer confusão de termos seja feita - e cause pânico entre os compositores do gênero -, a música eletroacústica, ou eletrônica, que reuniu mais de cinqüenta obras na quinta edição da Bienal Internacional de Música Eletroacústica de São Paulo (Bimesp), nada tem a ver com a música eletrônica que tem invadido as pistas e as rádios do mundo. “O fato de você usar aparelhos eletrônicos não quer dizer que você esteja inserido numa determinada estética”, esclarece o compositor Flo Menezes (foto), criador e organizador da V Bimesp, que acontece no Sesc há três edições. “Usar algo elétrico não quer dizer que você esteja dentro de um fazer eletroacústico, senão o rock’n’roll dos anos de 1950 já seria eletrônico”, compara. Na verdade, a música eletroacústica é ainda mais antiga que o próprio rock’n’roll. Menezes explica que o gênero, uma espécie de derivação da música contemporânea, produzida no âmbito da música erudita, surgiu em 1948 na Europa, numa fissura causada pela oposição entre a música concreta feita pelos franceses e a eletrônica produzida na Alemanha. “São composições realizadas com aparelhos de estúdio eletroacústico, ou eletrônico, a partir dos quais é possível realizar toda uma gama de sons”, explica Menezes. “Existem várias categorias de música eletroacústica, mas os dois pilares fundamentais da sua poética são, de um lado, o processamento; de outro, a síntese.” O processamento, também chamado de tratamento, refere-se à técnica por meio da qual sons já existentes são captados e trabalhados com o uso de aparelhos eletrônicos de estúdio; a síntese corresponde à vertente na qual os sons são gerados a partir dos próprios aparelhos, portanto artificiais, ou sintéticos, daí o termo. Tendo essas duas matrizes, desdobram-se inúmeras categorias, que já conta com 56 anos de experimentações. Boa parte delas representadas na V Bienal. A programação se dividiu entre o Sesc Ipiranga, que ficou com a maioria das atrações, e o Sesc Vila Mariana, que abriu o evento apresentando o espetáculo Hymnen e em seguida a estréia brasileira de Pulsares, obra composta por Flo Menezes em 2000 e executada pela primeira vez em novembro no Walt Disney Hall, em Los Angeles, nos Estados Unidos.


Piano sobre rodas - Projeto leva a música de grandes compositores clássicos a todo o Brasil, de São Miguel Paulista a Bom Jesus da Lapa
Receptividade do público é algo que o pianista Arthur Moreira Lima (foto) conhece bem e sobre o qual pode falar com propriedade. Desde os anos de 1980 ele sai pelo Brasil afora para apresentar músicas clássicas e populares ao piano, e garante que música erudita pode, sim, ser acessível: “A aceitação das pessoas é enorme em todos os lugares. De São Miguel Paulista a Cabrobó vem gente de todo tipo e toda idade, crianças, jovens, idosos, casais...” Desde o ano passado, o pianista viaja o Brasil com o projeto Um Piano pela Estrada, no qual transporta um palco completo num caminhão de 14,5 metros, e que percorreu, em seu itinerário inaugural, doze cidades ao longo do rio São Francisco. Já foram trinta apresentações e ele garante que, até o final do ano, o projeto chegará a uma centena delas. “Comprei o caminhão com meu dinheiro e estou pagando até hoje”, esclarece, entre risos. “Imagine chegar até um empresário e dizer que você quer colocar um piano dentro de um caminhão e sair tocando pelo Brasil?” E não foram só os patrocinadores que deixaram de apostar na idéia inicialmente. Arthur conta que houve cidade em que o prefeito “não quis saber daquele caminhão pelas ruas”. No entanto, depois de ganhar a estrada, o projeto chamou atenção, e Arthur e seu piano itinerante - e, conseqüentemente, a música erudita - renderam até matéria no Fantástico. O sucesso se deu por uma conhecida razão: popularidade. O prefeito mal-humorado deve ter se arrependido. “No final de cada apresentação eu agradeço aos apoios locais e aí é farmácia não sei o quê, padaria não sei das quantas, o padre, o delegado. É impressionante.” Arthur, acrescenta que, não raro, o público ultrapassa os cerca de quatrocentos lugares disponíveis, mas nem por isso fica gente de fora: as pessoas ocupam as praças, sobem nas árvores, tomam os coretos e, às vezes, até o próprio palco. E no meio de tanta gente histórias curiosas não faltam. “Teve um camarada que encontrei no hotel em Bom Jesus da Lapa, na Bahia, que vendia umas flautas feitas de lata reciclada que custavam 10 reais e vinham com a primeira lição grátis. Eu chamei o cara para tocar comigo, ele veio e tocou, bem inclusive.” Para o pianista, cada evento é um momento de interação com a comunidade. “É um lance de irmanação em torno da música. Eu acho sensacional esse negócio de dar palpite e participar. As pessoas se sentem prestigiadas.”


SINFONIA NO SESC - Música erudita também faz parte da programação das unidades
Algumas unidades do Sesc oferecem apresentações regulares de música erudita que já têm espaço garantido na agenda dos interessados. No Sesc Belenzinho acontecem os Concertos Sesc & Sinfonia Cultura, uma parceria com a Fundação Padre Anchieta. O Sesc Carmo leva seus concertos até o Páteo do Colégio no Concerto no Pateo; enquanto o Sesc Vila Mariana apresenta, sempre às quartas-feiras, uma programação com viés histórico. Para julho, a unidade trará obras de Bach e seus contemporâneos. No palco diferentes repertórios e instrumentações. Formações de cravo e flauta, cravo e viola e cravo e voz. A programação pode ser conferida no Em Cartaz de cada edição.