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Os mestiços de São Paulo
Flávia Roberta Costa

Como é o lugar quando ninguém passa por ele? Existem as coisas sem ser vistas?
(Carlos Drummond de Andrade, A suposta existência)

Entre as ruas do Paraíso e Maestro Cardim, um murmurar de água correndo pode ser flagrado entre os barulhos urbanos que ouvimos sem perceber. Séculos atrás, os anhangas, atraídos por este mesmo som, vinham beber de um ribeirão. Os humanos que ali habitavam temiam ver, ouvir ou mesmo pressentir estes entes do Mal, prenúncio de desgraças. O lugar era considerado mal-assombrado e, por isso, as margens desse pequeno rio, somente freqüentadas por pagés de corpo e espírito protegidos, eram um espaço respeitado e conhecido entre os indígenas como o “bebedouro de assombrações”. Ou Anhangabaú. Ao lado do rio Tamanduateí, o Anhangabaú formava os limites naturais da acrópole que abrigou o núcleo urbano original da cidade de São Paulo, o triângulo cujos ângulos eram formados pelos conventos de São Francisco, São Bento e Carmo. Foi ali, nas margens inundáveis, onde os anhangas iam matar sua sede, que durante séculos lavamos nossas roupas, construímos nossas “pontes de dentro”, plantamos chá e agrião e começamos a intensificar nossa então acanhada vida cultural. Apesar de ainda hoje mantermos sua nascente às nossas vistas, enterramos o rio que ajudou a moldar nossa cidade e sobre ele nos locomovemos rapidamente em modernos trens do metrô. Sem saber, sobre suas águas nos arrastamos por quilômetros e quilômetros de engarrafamentos, em horas do rush que duram todo o dia. Sem nos darmos conta, sobre seu leito e suas margens comemoramos com festa nossos 450 anos de cidade-palimpsesto. O olhar desatento de quem, paulistano ou visitante, caminha pela cidade de São Paulo sem notar suas diversas camadas arqueológicas não capta sua poesia sem palavras. Nosso olhar é sempre mais sensível quando não estamos em casa, quando a paisagem vista nos separa da experiência de todos os dias. Pseudo-semiólogos, devoramos os símbolos que nos contam outras cidades, mais ou menos distantes, mas raramente escolhemos como objeto de nosso olhar o nosso próprio lugar. “Queremos conhecer o mundo”, disse certa vez um viajante, “e o mundo está tão perto de nós.” Profissionais da área de turismo dedicam-se a procurar soluções para uma pretensa falta de identidade turística da capital paulista. Nosso problema, entretanto, não reside somente na falta de um símbolo que nos identifique rapidamente ao olhar dos tão desejados visitantes nacionais e estrangeiros. A dificuldade reside em nosso quase completo afastamento da cidade, nossa falta de apropriação do lugar onde vivemos. O que faz de Paris, Paris não é só a presença da Torre Eiffel, mas a existência de um sentimento de pertinência, interdependência e complementaridade que une cidadãos e cidade. Nos falta transformar São Paulo em referencial - e não apenas poluído cenário - de nossas vidas, em objeto de nossos olhares e vivências cotidianas mais apaixonados. Há que nos transformarmos em peregrinos em nossa própria cidade, em viajantes em busca de experiências voltadas para o aprendizado só possível pelo ato de sair de nossa rotina em direção à diversidade e à alteridade. Precisamos deixar nossos confortáveis ninhos para nos enriquecermos com a exposição ao vento e à garoa paulistana, por que é necessário viajar, também em nossa própria cidade, em nosso bairro, em nossa casa - nos expondo e esposando o Outro. O Outro que está no assento ao lado no metrô que flutua sobre o Anhangabaú ou, mais perto ainda, em nós mesmos. Assim renasceremos mais mestiços e mais paulistanos, cidadãos capazes de captar a muda narrativa da cidade e de, enfim, matar a sede em nossos ribeirões.

Flávia Roberta Costa é mestre em Comunicação (Turismo) e técnica do Sesc São Paulo