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Cinema

REVISTA E - MARÇO 2008
Provocador por natureza
O cineasta norte-americano Kenneth Anger, de passagem pelo Brasil, falou à Revista E sobre seus filmes, sobre Hollywood e a indústria de celebridades


Considerado um dos ícones do cinema underground mundial, o norte-americano Kenneth Anger, hoje com 80 anos, foi um dos nomes que escandalizaram a América puritana com filmes de forte conteúdo erótico, como Fireworks, de 1947, e Scorpio Rising, de 1964. Contemporâneo de escritores como William S. Burroughs e Jack Kerouac, ícones da geração beat - que, no início dos anos 50, questionava os valores americanos -, Anger faz questão de manter a fama de eterno estrangeiro do sistema. "Não dá para chamar ninguém de beat hoje em dia, mas eu, por exemplo, me considero um outsider. Nunca me juntei a indústria alguma", afirmou em conversa exclusiva com a Revista E, em outubro, quando esteve em São Paulo para participar de um ciclo de cinema como parte das atividades do 16º Festival Internacional Sesc Videobrasil. Depois de ter ganhado a vida traduzindo livros eróticos do francês para o inglês, o cineasta ingressou na literatura, para onde levou seu afinado senso crítico e predileção pelo picante, com o livro Hollywood Babylon, de 1958, no qual narra com detalhes alguns escândalos envolvendo as estrelas de cinema de 1900 até 1950. Durante o bate-papo, o cineasta falou sobre como vê a arte contemporânea, afirmou que acha o mundo das celebridades atuais "um lixo" e revelou que "adora" Glauber Rocha. A seguir, trechos.



  Caos e Glauber

É muito difícil avaliar as artes hoje porque tudo é um caos, tem tanta coisa horrível acontecendo! Digo isso porque sou muito consciente em relação à política. Veja a religião, por exemplo, o pior tipo de religião é a que está ligada ao fanatismo. E assim ocorre com um pequeno braço do islamismo, que acredita que alguém deva morrer e matar outras pessoas em nome de um deus. É uma cultura de morte.

Ninguém se importa com quem está matando. Infelizmente, esse problema parece que vai nos acompanhar por alguns séculos mais. Não podemos fingir que isso não existe. Esse fanatismo todo virou um circo e é óbvio que influencia a criação artística.

Outros ótimos exemplos de fanatismo são os que Hitler provocava, por exemplo, e os artistas retrataram isso em seus trabalhos naquele tempo. Minha filosofia é a de que vejo essas coisas irem e voltarem, como pesadelos recorrentes. Um grupo atacando o outro. Na cena artística, é impossível não ver isso tudo refletido. Agora, alguma coisa específica a que eu esteja prestando atenção... Não sei... Aqui do Brasil, eu adoro Glauber Rocha.

Ele é maravilhoso! Estou esperando um novo Glauber surgir do Brasil. Mas, no geral, fico feliz em ser surpreendido com boas coisas. Penso na Rússia, que viveu tanto tempo naquele terror stalinista [referência a Josef Stalin, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética de 1922 a 1953]. Stalin é algo terrível para qualquer produção artística.

Mas ainda estou esperando as pessoas emergirem com sua arte, de lá, por exemplo. É um desafio perceber essas novidades.


  Filme caseiro

Embora as pessoas pensem que não, sou muito influenciado por Hollywood. Por exemplo, como em meu filme Fireworks, que tem um paralelo com o tipo de iluminação dos filmes noir que são produtos de Hollywood. Fiz esse filme [de 1947], inspirado por um sonho que tive com uma confusão de rua em Los Angeles em 1944, portanto três anos antes. Era uma briga envolvendo marinheiros americanos à paisana contra alguns caras de origem mexicana. Eram adolescentes e jovens adultos, de 20 e poucos anos, que vestiam ternos superexagerados que certamente custaram muito dinheiro.

Eu tinha 17 anos. Ninguém morreu, mas foi uma briga massiva. Isso foi causado por uma questão racial, com certeza. Vi aquilo tudo a distância. Os caras tirando as camisas para brigar... Eram elementos de violência e homoerotismo ao mesmo tempo. Um dia transformei aquilo tudo num sonho, e depois o sonho se tornou Fireworks. O filme está muito próximo do sonho, e depois de lançado se tornou objeto de várias pesquisas sobre sexo e psicologia em institutos europeus [risos]. Acho que o Fireworks é uma excelente transposição de sonho erótico. Esse filme foi feito em 72 horas. Eu sabia o que queria fazer e meus pais estavam viajando, daí transformei minha casa num estúdio. Fiz o que quis com os móveis... Mudei tudo de lugar, mexi nos jardins. Os "marinheiros" eram meus colegas que estudavam cinema na Universidade da Califórnia. Eles vestiram seus uniformes e tudo foi feito muito rápido.

Nós tínhamos muito pouco negativo de 16 milímetros, somente o suficiente para rodar aquilo. Eles sabiam o que eu queria que eles fizessem e eram caras muito talentosos. O filme não tenta ser realista em nenhum momento. E eles entenderam isso, por isso conseguimos. Engraçado foi que meus pais nunca souberam de nada. Quando voltaram, estava tudo no lugar! [risos]


  Geração beat

Fui muito amigo de William S. Burroughs. Nunca tive contato com ele na América, justamente porque eu morava em Londres quando o conheci, nos anos 50. Jack Kerouac eu nunca conheci pessoalmente. Não sei dizer mesmo se isso me influenciou diretamente, mas era o humor dos tempos. Eu era muito jovem e aquele espírito rebellion [rebelião, em inglês] era muito atraente. Sempre fui mais simpático aos beats do que aos hippies. Eles (os hippies) usavam drogas, tinham suas bandeiras... Mas minha relação com os beats fez com que eu rendesse uma espécie de tributo a eles. Não dá para chamar ninguém de beat hoje em dia, mas eu, por exemplo, me considero um outsider. Nunca me juntei a indústria alguma. Continuo trabalhando como artista e fazendo meus filmes sem diálogos - que eu chamo de filmes calados, já que não são filmes falados. Ou seja, se ainda existem outsiders, são pessoas que trabalham dessa maneira. A posição beat, nesse sentido, ainda é válida.



  Do cinema para a literatura

Eu cresci em Hollywood. Colecionava, como hobby, todas essas histórias que escreviam para cinema. Guardava, como numa espécie de diário, recortes de notícias de jornal, sobre suicídios e assassinatos, por exemplo. Fiz isso até o ginásio. Quando fui morar na França contava para o pessoal do cinema que conheci - François Truffaut e Daniel Lacroix, por exemplo, da Cahiers du Cinéma [tradicional revista francesa de crítica de cinema] - umas historinhas engraçadas sobre Hollywood que eles nunca tinham ouvido. Eles então sugeriram que eu escrevesse um livro, e eu escrevi Hollywood Babylon, em francês, para o público francês. Além disso, comecei a traduzir livros considerados eróticos, dos anos 50, do francês para o inglês.


  Fofoca ontem e hoje


Acho um lixo essa indústria de fofocas que existe em torno das celebridades, é tudo muito chato. As histórias dos tablóides ingleses e americanos falam de gente sem talento algum, do tipo Britney Spears [cantora norte-americana]. As histórias de Hollywood Babylon eram boas porque contavam as encrencas em que mesmo grandes atores se metiam, falam de gente com uma fantástica beleza natural, como Marilyn Monroe. A indústria da fofoca hoje é muito mais pobre nesse sentido. Há coisas no meu livro que, de repente, nem podem ser consideradas fofocas, por ser verdadeiras. E mesmo assim não me deixaram publicar na América. Problema do editor, claro.