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Ficção Inédita

REVISTA E - MARÇO 2008



por Fábio Campana



Don Ramon Suarez treme de febre afundado no colchão de penas de ganso. Está empapado de suor. Fede. Exala urina, excrementos e medo. Há dias não deixa ninguém lavá-lo e trocar suas roupas e as de cama. Delira. Vê ratazanas nos cantos escuros. Nos lençóis, as pulgas infestadas saltam sobre ele anunciando a peste. Dez vezes exigiu que retirassem do quarto as velhas leprosas que vêm espiá-lo em seu sofrimento. Dez vezes elas voltaram esgueirando-se pelas paredes, riso desdentado, olhos arregalados, curiosos, à espera de seu último suspiro. Não tem forças para apalpar a arma que traz sempre à mão, sob os travesseiros.

Teme a invasão das guainas abusadas, nas tardes de sesta modorrenta, que podem aproveitar-se de sua prostração. Ouve suas vozes no corredor. Tramam a vingança. Afiam pequenos punhais que escondem na barra das anáguas. Todos querem vê-lo morrer. Noivos e maridos desonrados enquanto extraíam erva-mate a léguas do povoado. Viúvas dos empalados, amarrados em tiras de couro que, ao secar sob o sol, abriam os pulsos dos que se insurgiam contra a sua autoridade. Vulnerável. De nada lhe serviram o poder, as armas, os jagunços e os cuidados extremos para evitar os perigos invisíveis que rondavam seu pequeno império erguido no Alto Paraná em 1906. A malária, enfim, o alcançou, nem as doses dobradas de quinino receitadas pelo médico Anastácio Stumpf conseguem afastá-la. Ramon Suarez ergueu-se suserano de larga concessão de madeira e erva-mate e de todos os homens e mulheres que trabalhavam nos domínios da companhia.

Era homem sem escolaridade, mas de leituras que lhe inflamaram a imaginação. De cozinheiro de barco de passageiros que fazia a navegação no Paraná, tornou-se representante de empresa portenha e dela recebeu o encargo de dirigir suas posses naquelas lonjuras do planeta. A verdade é que foi escolhido para o papel porque não havia homens dispostos a assumi-lo. Suarez tinha então 45 anos, o que não era pouco para a expectativa de vida daqueles tempos. Já não tinha mulher e não sabia por onde andavam os filhos, que também, aos poucos, o abandonaram. A cada retorno de viagem a sua casa em Buenos Aires, percebia que se transformara num estranho para a família. Quando a mulher desapareceu de vez na companhia de um comissário aposentado, nem se preocupou em procurá-la. Reuniu suas coisas dentro de um saco e embarcou como ajudante de cozinha no primeiro barco que lhe deu emprego. Suarez agarrou na proposta do proprietário da concessão, que viajava para ver suas posses e elogiara sua comida tosca mas bem temperada, a oportunidade de livrar-se da vida que até então não lhe proporcionara mais que mourejar nos barcos que subiam e desciam o rio Paraná. Aceitou e prometeu pôr ordem em tudo, como lhe pedia o homem, que se dizia cansado de ser roubado por outros gerentes que trouxera de Buenos Aires e em pouco tempo faziam algum dinheiro e sumiam, de volta às luzes, à música e às mulheres portenhas.

Ao levantar-se e apertar a mão de seu novo chefe, Ramon Suarez era outro homem. Cheio de brios e autoridade que as mágoas e os insucessos tinham sufocado, deu-se profunda transformação na vida e na alma daquele cozinheiro especialista em grelhar dourados e ensopar surubis. Desapareceu o sujeito cordato, submisso por dever de ofício, preocupado em satisfazer o paladar dos viajantes, e foi se impondo a soberba de pequeno monarca. A primeira providência, depois de tomar posse e exigir que o chamassem de Don Suarez, foi construir no ponto mais alto sobre o rio a fortaleza argamassada no sangue de centenas de bois para ter um lugar inexpugnável ao povo e às doenças. Sentimentos contraditórios o levaram a erguer esse prédio que passou a ser a sua morada e também a sede da companhia.

A vontade de ter um palácio ou o que assim parecesse e se impusesse sobre a paisagem como símbolo de sua autoridade. Mas também para aplacar o medo de um revide dos trabalhadores que moravam no povoado à margem do rio, em casebres toscos, de chão batido, cobertos de sapê, choças que abrigavam famílias inteiras, de crianças enfermas, a pele picada pelos mosquitos e marcada por doenças como a varíola. Outro temor foi se infiltrando pouco a pouco na cabeça de Don Suarez. Suava frio ao pensar que poderia perder o posto. Para garantir a satisfação dos donos da ervateira exigia o máximo daquela gente que fazia trabalhar do primeiro ao último clarão de sol. Muitos em expedições ao interior para extrair o mate a quilômetros do porto, outros a sapecar a erva, a prepará-la em sacas para mandá-la à Argentina. Os medos de Don Suarez foram lhe custando cada vez mais caro ao bolso e à saúde. Contratava jagunços em toda a região para manter a famulagem em produção. E para proteger-se dos jagunços, contratou pistoleiros. Sua guarda pessoal cresceu a ponto de ter mais de 50 para cuidar exclusivamente de sua segurança.

O medo da conspiração prosperou de várias formas. Passou a exigir que provassem a sua comida, pois temia ser envenenado. Logo não tinha ninguém em quem confiasse plenamente. Até as meninotas da vila, que no princípio gostava de mandar buscar para sua diversão sexual durante as sestas, ele dispensou. Temia as doenças que poderiam lhe transmitir, inclusive a lepra, que era comum na região. Fez vir de Posadas um médico para examiná-lo e às pessoas que o cercavam. O doutor Anastácio Stumpf desembarcou balançando uma bengala de cabo oco dourado, cheio de vinagre aromático de Marselha. Era o vinagre de quatre voleurs, a mistura eficaz usada por quatro ladrões de corpos presos durante a epidemia de peste em Marselha e que nunca foram infectados. O doutor Stumpf aspirava repetidamente o cabo dourado para imunizar-se e a bengala tornou-se seu símbolo de autoridade médica. Recebido com ansiedade por Don Suarez, o doutor Stumpf logo se mostrou ser mais decorativo que útil diante de tanta miséria e doenças. Seu arsenal era curto, de médico antigo que jamais se pusera em dia com as descobertas da medicina desde que saíra da faculdade e se embrenhou no Alto Paraná para fazer carreira.

Trazia mercúrio para a sífilis, digitalis para reforçar o coração, iodo para o bócio, cólquico para a gota, cloral para os nervosos, um alcalóide pomegranato para tênia e os demais vermes, e um pote de nitrato de amil para a angina. Tornou-se companhia constante de Don Suarez, que o fez recorrer o povoado para identificar as mazelas que poderiam atingi-lo pelo contágio. O médico logo percebeu que as aflições pessoais de Don Suarez eram mais fruto de seu psiquismo. Já a população que o cercava tinha todas as doenças que afligem os miseráveis, da anemia à lepra, além de infestações de piolhos, pulgas e insetos, e, por conseqüência, o tifo, a malária e a possibilidade real da peste. Em vez de tranqüilizar Don Suarez, os relatórios do doutor Stumpf deixaram-no ainda mais aterrorizado. Já não temia a lepra como temia a peste e determinou que os ratos fossem exterminados e também as pulgas. Mandou seus homens inspecionarem as choças e expulsou famílias inteiras que tinham algum sinal da doença, conforme as prescrições do doutor Stumpf. Mas a malária não escolhe suas vítimas por classe ou poder e chegou o dia em que ela penetrou o pequeno palácio de Don Ramon Suarez e o deixou prostrado. Começou com uma dor de cabeça e náuseas.

O doutor Stumpf imaginou uma indigestão e providenciou uma lavagem intestinal, que nada mudou. A febre subiu e, no final da tarde do terceiro dia, Don Suarez teve uma convulsão de tremores violentos durante mais de uma hora. A pele ficou vermelha e desde então não voltou ao normal. Doutor Stumpf percebeu a malária maligna que devastara populações que vivam nos charcos à beira do rio. O quinino não produziu os efeitos esperados. O médico Stumpf guardou o paciente à espera de um período de calmaria da malária para tentar reanimá-lo e levá-lo à Argentina para interná-lo num hospital.

E foi num desses lapsos entre uma crise mais forte e outra que ele ouviu o som seco, abafado, de um tiro sob o travesseiro que o acordou de um cochilo durante a sesta. Não houve tempo e ao abrir a porta viu apenas o sorriso, os olhos estatelados de Don Suarez e o sangue que escorria entre o rosto e o travesseiro.

As ruínas de paredes externas de 2 metros de largura estão submersas sob o lago de Itaipu, como ali estão as outras provas, os restos de Don Ramon Suarez e a memória dessa época.



Fábio Campana é autor, entre outros livros, de Ai (Travessa dos Editores, 2007)