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Surge uma nova classe media

Crescimento econômico provoca intensa mobilidade social no país

HERBERT CARVALHO


Comércio: consumo em expansão

Desde o final do século passado, um fenômeno tem provocado profundas mudanças no panorama socioeconômico internacional: o vigoroso crescimento da classe média nos países emergentes. O Banco Mundial estimava, em 2007, que 400 milhões de pessoas pertenciam a essa nova classe média global e projetava que mais 2 bilhões se incorporariam a ela até 2030.

O principal fato gerador de mobilidade social em países como China, Índia e Brasil foi o forte crescimento da economia mundial nas duas décadas que antecederam a crise financeira internacional, desencadeada nos Estados Unidos no segundo semestre de 2008. Entre 1990 e 2004 a classe média apareceu na China – onde simplesmente não existia – e dobrou de tamanho na maioria dos países em desenvolvimento.

No Brasil, na primeira década do século 21, favorecidas pelo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), controle da inflação e universalização da educação básica, 31 milhões de pessoas deixaram de ser pobres e passaram a integrar a chamada classe C – com renda familiar entre três e dez salários mínimos.

Dessa forma, os 94,9 milhões de brasileiros integrantes da classe C passaram a constituir a maioria da população, um feito que vem sendo comemorado, principalmente por ter resistido à tempestade da crise mundial. O que mais impressionou os analistas foi o fato de que, entre 2001 e 2008, a renda de todos os brasileiros aumentou. Porém, enquanto o quinhão dos 10% mais ricos cresceu 1,5% ao ano, a parcela que coube ao extremo oposto, dos 10% mais pobres, avançou em ritmo chinês, de 8% anuais.

Ocorre, no entanto, que boa parte da nova classe média tem baixa escolaridade e atua na informalidade. Seu atual poder de compra, baseado em crédito farto, que lhe permite ter acesso até mesmo ao automóvel e à casa própria, principais símbolos de superação da pobreza, pode não se sustentar, em especial devido aos juros altos. Como o movimento de ascensão social em um país não é irreversível – no mesmo período de expansão da economia global a vizinha Argentina viu sua classe média encolher de 46% para 34% –, existe o perigo de que um tropeço macroeconômico possa engatar uma marcha à ré nesse processo. Assim, exorcizar esse fantasma exige compreender como as conquistas foram obtidas e o que pode e deve ser feito para preservá-las e ampliá-las.

Cidadania monetária

O Brasil tem atualmente o oitavo maior PIB do mundo, à frente de países como Canadá e Rússia, integrantes do poderoso G8. Mas quando o critério é o PIB per capita – ou seja, tudo o que o país produz dividido pelo número de habitantes – nossa colocação despenca para a 73ª posição, com US$ 10.325, de acordo com o critério conhecido como Paridade do Poder de Compra, medida que exclui os efeitos de valorização ou desvalorização das moedas. Apesar de esse ser um recorde histórico, verificado em 2008 em razão do crescimento acelerado que se registrou a partir de 2005, ainda é um valor baixo, se comparado ao dos Estados Unidos (US$ 46 mil). Supera, porém, as marcas de outros emergentes, como China (US$ 6,5 mil) e Índia (US$ 3 mil), países com população superior a 1 bilhão de pessoas.

Ocorre que o PIB per capita corresponde a uma média calculada por estatística – ciência que, se uma pessoa come dois frangos e outra nenhum, informa enganosamente que cada uma comeu um. Por isso, a maior e mais persistente barreira a impedir o acesso do Brasil ao seleto grupo de países desenvolvidos está no índice de Gini, que mede a diferença entre ricos e pobres a partir de uma escala que vai de zero a 1, segundo a qual quanto mais distante do zero estiver o desempenho do país, maior a desigualdade. Nessa prova dos nove da justiça social, nosso posicionamento está ao revés: de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o Brasil é um dos países mais desiguais do planeta, à frente apenas da Bolívia e do Haiti, na América Latina, e da Tailândia e da África do Sul, nos demais continentes. Aqui, enquanto o 1% mais rico fica com 13% da renda nacional, aos 40% mais pobres correspondem apenas 12% – o que redunda num índice de Gini de 0,54. “Qualquer país com índice de Gini superior a 0,4 é muito primitivo”, considera o economista Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Internamente, porém, o Brasil vem comemorando nos dois últimos anos o fato de a maioria de sua população ter deixado de ser pobre ou miserável, em razão da expansão da classe C, que difere bastante da classe média tradicional existente no país desde a primeira metade do século passado. Esta se compunha, em sua maior parte, da parcela da população civil urbana cuja renda resultava do trabalho não manual: funcionários públicos, profissionais liberais, pequenos empresários, comerciantes e empregados do setor de comércio e serviços, principalmente bancários.

“A classe média existia antes da tragédia inflacionária brasileira. Ela afundou de um nível de 60% da renda nacional para cerca de 30%. A diferença foi tomada pela renda financeira. Passamos a ter uma péssima distribuição e continuamos com esse modelo, que privilegia os bancos”, explica o economista Paulo Rabello de Castro, presidente do Conselho de Planejamento Estratégico da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomercio). Ele cita como ponto de partida para uma queda sensível da pobreza a “cidadania monetária” proporcionada pelo Plano Real: “Ao se combater a inflação, descobriu-se que o país ganhava possibilidades de devolver uma parte do imposto inflacionário, o que representou a primeira emergência da classe média”. Assim, manter a inflação baixa, num patamar não superior aos 5% anuais, como tem ocorrido, continua a ser uma contribuição consensualmente aceita como fundamental para a preservação da nova classe média.

Bônus demográfico

Outro fator decisivo para a redução da desigualdade foi o aumento real do salário mínimo, da ordem de 53,7%, entre abril de 2003 e janeiro de 2010. De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), nenhuma categoria profissional teve esse ganho de renda no mesmo período. Em janeiro deste ano, a entrada em vigor do novo salário mínimo injetou R$ 26,6 bilhões na economia, contribuindo para que no segundo semestre a classe D (com renda mensal familiar entre um e três salários mínimos) ultrapassasse a B (entre dez e 20 salários mínimos), apossando-se de 28% da massa total de rendimentos, contra 24%, de acordo com o cálculo do instituto de pesquisas Data Popular.

A antropóloga Luciana Trindade Aguiar, sócia da Plano CDE – empresa de consultoria especializada nos estratos sociais mais populares dos cinco que os estudiosos classificam por meio das primeiras letras do alfabeto –, cita mais três fatores que, em sua opinião, contribuíram para a redução da pobreza no Brasil: programas de transferência de renda como o Bolsa Família, a queda dos preços dos alimentos proporcionada pela modernização da agricultura, que deixou uma sobra de dinheiro no bolso dos menos favorecidos para o consumo de outros bens, e a menor fecundidade, que fez a taxa de natalidade da população passar de 2,8 filhos por casal em 1992 para 1,94 em 2010. “Hoje no Brasil estamos vivendo o que os especialistas chamam de bônus demográfico. Há uma quantidade menor de crianças na base e de idosos no topo e um grande número de pessoas em idade produtiva. É um círculo virtuoso que um país emergente experimenta só uma vez na história”, afirma. A redução dos nascimentos contribuiu para o aumento do total de mulheres trabalhando e do poder aquisitivo nos lares, que passaram a ter duas fontes de renda.

Nessa nova realidade demográfica, dentro do mesmo domicílio vivem em média 3,7 pessoas, com hábitos que mudaram bastante nos anos recentes. Segundo Luciana Aguiar, 42% dos integrantes da classe C têm parentes que moram na vizinhança. “Nas classes C, D e E as relações de reciprocidade e troca estão muito presentes. Isso explica o puxadinho, o quintal comunitário, as pessoas vivendo todas na mesma rua. Elas compartilham o cartão de crédito, cedem o nome para fazer empréstimo em financeira ou consignado, dividem o carro na hora das compras no supermercado, cuidam uns dos filhos dos outros, compartilham a TV a cabo, o acesso à internet e até mesmo o ‘gato’”, diz a antropóloga.

Educação e ocupação

O sociólogo Amaury de Souza, coautor, juntamente com o cientista político Bolívar Lamounier, do livro intitulado A Classe Média Brasileira – Ambições, Valores e Projetos de Sociedade (Elsevier Editora, 2010), considera que o tipo de ocupação exercida constitui a linha mais persistente de desigualdade no Brasil, que separa o setor formal do informal. “Sem qualificação, metade dos trabalhadores atua por conta própria ou sem carteira assinada”, diz Souza, acrescentando que somente uma parcela muito pequena da população brasileira tem o nível de escolarização necessário para enfrentar o mundo moderno.

Em um país que registra apenas nove anos de escolaridade média – contra 12 em países como a Coreia do Sul –, a educação se apresenta, de fato, como a porta de ingresso na classe média. Até as primeiras décadas do século passado, um diploma de nível médio era suficiente para conseguir um bom emprego, coisa que hoje nem o curso superior é capaz de garantir, em razão da baixa qualidade do ensino no país. Por outro lado, se no passado recente a população menos educada se integrava à vida urbana por meio de empregos na construção civil, hoje até mesmo nessa atividade as funções são mais complexas, exigindo qualificação.

A presença de 20% de analfabetos funcionais na população com idade igual ou superior a 15 anos está na raiz de um paradoxo: embora entre 2003 e 2008 a economia brasileira tenha gerado quase 9 milhões de empregos formais, 8 milhões de pessoas permanecem desempregadas, ao mesmo tempo em que ainda sobram vagas que muitas empresas do setor industrial e de serviços não conseguem preencher.

Segundo os especialistas, para resolver o descompasso entre a qualidade do emprego oferecido e a da mão de obra disponível, é necessário romper com o modelo educacional focado na multiplicação de cursos universitários de utilidade duvidosa, direcionando os recursos materiais e humanos para os níveis básicos e intermediários de ensino. De acordo com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), em 2009 apenas 5,7% das escolas públicas brasileiras conseguiram alcançar 6 pontos, numa escala de zero a 10 – o mínimo aceitável internacionalmente em termos de qualidade. Admitindo que o Brasil está mais de uma geração atrasado em relação aos países desenvolvidos, o governo fixou essa nota como meta a ser alcançada apenas entre 2020 e 2030, o que confirma a educação como o maior gargalo a ser superado no desenvolvimento econômico e social.

Endividamento e tributos

Considerando que a nova classe média tem as possibilidades de melhorar sua renda limitadas pela insuficiência da qualificação, Amaury de Souza vê o patamar de consumo desse estrato social, baseado no endividamento crescente, como exagerado e difícil de sustentar. “A classe C está literalmente se consumindo no consumo”, afirma o sociólogo, em uma observação confirmada pelos números. De acordo com a consultoria Tendências, a parcela do rendimento dos brasileiros destinada ao pagamento de prestações passou de 25% em março para 26,3% em junho e deve chegar a 28% em dezembro por causa da alta da Selic (taxa básica de juros). “A população que recebe até dez salários mínimos é responsável por 54% das contas vermelhas do país”, acrescenta Adelaide Reis, assessora econômica da Fecomercio. Para Alexandre Andrade, economista da consultoria Tendências, a dúvida é saber até quando a economia nacional vai suportar um volume tão grande de crédito. “A situação econômica precisa continuar boa para que a maioria das pessoas tenha condições de pagar as contas”, diz.

Fábio Pina, gerente da Assessoria Econômica da Fecomercio, acredita que o consumo das famílias brasileiras ainda pode aumentar até 40% nos próximos dez anos. Segundo ele, as classes C, D e E chegarão a 2020 respondendo por 32,5% do total do consumo do país – hoje representam 27% –, mas ainda assim não terão superado o volume dos mais ricos, situados nas classes A e B. O maior problema que Pina identifica é saber se o crescimento do consumo será acompanhado pelo aumento da oferta. “Os três grandes componentes do consumo – compras das famílias, gastos do governo e investimentos das empresas – estão crescendo além do que o país produz, o que aumenta as importações e resulta em déficit externo. O mundo pode estar disposto a financiar 1% ou 2% de nosso déficit em conta corrente, como está fazendo, mas não 5%. E chegaremos a esse nível antes da metade da próxima década, se o quadro atual não mudar”, adverte o economista, indicando que a saída para o impasse está na diminuição do que considera o “gigantismo” do governo.

Outro aspecto em que o Brasil precisa avançar é a redução das disparidades entre renda, riqueza e tributação. Em nosso país, opera um Robin Hood tributário às avessas, que tira mais de quem tem menos. Enquanto os assalariados com renda de até dois salários mínimos chegam a pagar em tributos 49% do que ganham – em sua maioria indiretos, embutidos nos preços dos bens e dos serviços e, portanto, de difícil percepção para a população –, os que recebem acima de 30 salários mínimos são mordidos em apenas 26%. Para amenizar essa injustiça tributária o economista Amir Khair, ex-secretário de Finanças da prefeitura de São Paulo (1989-92) sugere, além da diminuição da carga tributária geral (que entre 1993 e 2008 saltou de 25% para 34% do PIB), medidas como desoneração dos tributos indiretos sobre os bens de consumo popular e aumento da progressividade e da participação dos tributos diretos, por meio de elevação da alíquota máxima do imposto de renda da pessoa física (hoje de 27,5%, contra 40% na maioria dos países) e do imposto sobre herança, que é de apenas 4%, quando em alguns países supera 50%.


Emergentes e conectados

Ana Polizeli Georgetti tem 55 anos, vive no bairro periférico de Perus (zona norte paulistana) em casa própria e trabalha como empregada doméstica por um salário de R$ 750, que complementa a aposentadoria de um salário mínimo como funcionária pública municipal. Ela e o marido, porteiro aposentado de 61 anos que recebe R$ 1,2 mil mensais do INSS, compraram no ano passado um utilitário “courier” ano 2004 e uma chácara com piscina em Ibiúna (SP). Moram com o filho mais novo, de 26 anos, que completou apenas o ensino médio e ainda não conseguiu se estabilizar profissionalmente: o último emprego, para lavar cães numa pet shop, durou um mês. A família tem computador conectado à internet e dois celulares. Em agosto deste ano Ana passou duas semanas em Portugal, visitando uma filha casada.

Josineide Tavares, manicure de 34 anos, tem renda entre R$ 1,5 mil e R$ 2 mil por mês. Mora na Rocinha, a favela mais conhecida do Rio de Janeiro, com dois filhos pequenos numa casinha de 35 metros quadrados, equipada com televisão nova, de tela plana, geladeira e lavadora de última geração. “Compro tudo em parcelas a perder de vista”, diz ela, preparando-se para adquirir mais um celular. “Já tenho dois, mas preciso do terceiro para estar sempre à disposição da clientela.”

Essa intenção explica por que há 170 milhões de celulares no Brasil, 85% deles pré-pagos. “A classe C é uma base importantíssima de todas as operadoras de telefonia celular no país e soma 18 milhões de usuários de internet. Mesmo o público das classes D e E está conectado por meio das 100 mil lan houses espalhadas por todo o território nacional”, diz a antropóloga Luciana Aguiar, citando como exemplo o caso de uma empreendedora que vendia cosméticos de porta em porta e triplicou a renda ao divulgar campanhas em seu blog e no Twitter.

 

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