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Como espelhar o inexplicável?

A fotógrafa Maureen Bisilliat fala sobre sua vida e sua obra

CELIA DEMARCHI


Foto do ensaio "Pele Preta"/ Foto: Maureen
Bisilliat/Instituto Moreira Salles

Maureen Bisilliat tem suas próprias experiências com o inexplicável. E vez por outra cruza o caminho de quem parece viver mergulhado nele. Conheceu, por exemplo, o escritor João Guimarães Rosa, que afirmava ter recebido sua obra Grande Sertão: Veredas “soprada”. Em 1962, Maureen leu o livro e, “impregnada daquele mar de palavras”, como diz, embrenhou-se no semiárido mineiro em busca de seus personagens e paisagens. Voltou com o primeiro ensaio de uma série que chamaria depois de “equivalências fotográficas”, expressão que remete ao fato de as imagens serem inspiradas em livros.

Artista plástica nascida na Inglaterra em 1931, Maureen trocou os pincéis por uma câmera em 1960 e, com as lentes voltadas para a alma de seus modelos, produziu ensaios tocantes. Do povo brasileiro, congelou em imagens culturas e costumes que continuam refletindo sua essência, como se pode inferir da reação do público a sua exposição Fotografias, promovida este ano pelo Instituto Moreira Salles (IMS), cuja coleção incorporou em 2003 o acervo da fotógrafa, com mais de 16 mil imagens.

Curadora do Pavilhão da Criatividade do Memorial da América Latina, Maureen se prepara para fazer um filme em que retratará a atual realidade dos lugares que visitou há 40 anos. Não tem ideia do que vai encontrar, mas certamente buscará captar seu âmago: “O artista tem essa missão, espelhar o inexplicável. Espelha, mas não explica”.

Participou desta entrevista Maria Luiza Xavier Souto, amiga e preparadora estilística de originais dos textos de Maureen.

Problemas Brasileiros Você viajou muito na infância, pois seu pai era diplomata. E continuou a fazer isso depois. Essa inquietação representa alguma busca?
Maureen Bisilliat
Sim, uma busca direta de raízes. Viajei muito quando era menina e a partir dos 20 anos. Quando comecei a me envolver com a pintura, isso já não acontecia tanto. Fui duas vezes para o exterior, acompanhada de minha amiga Henrietta Mantooth, a fim de estudar artes plásticas. Numa delas fomos para Paris, onde estudamos com André Lhote, e depois para Nova York, tudo isso nos anos 1950. E seguiram-se sete ou oito anos dedicadíssimos, obsessivamente, a essa aprendizagem. Devido à minha experiência como viajante, eu me sentia inibida diante de uma tela em branco a ser preenchida. Chegou um momento em que senti necessidade de um choque direto com o que se chama, digamos, “realidade”. Aí começaram de novo as viagens.

PB – Você se diz meio irlandesa, meio inglesa, pois nasceu na Inglaterra e a maior parte da família de sua mãe era da Irlanda. Por que a Irlanda se tornou uma referência forte para você?
MB
Fui somente uma vez para lá, com minha mãe, quando tinha 16 ou 17 anos. A Irlanda se firmou como referência para mim através de Guimarães Rosa. Em nosso primeiro encontro, depois que li Grande Sertão: Veredas e decidi conhecer os Gerais, ele traçou para mim um roteiro de viagem, a seu ver uma coisa simples, mas, “sendo irlandesa”, como ele disse então, eu iria me enfronhar lá dentro, descobrir e compreender aquelas populações. Por quê? Os irlandeses, e não só os autores irlandeses, são como são porque são irlandeses, ou seja, têm a palavra na raiz da língua, como Guimarães, sendo mineiro, tinha essa riqueza.

PB – Mas o que é ser irlandês?
MB
Na Inglaterra chamam os irlandeses popularmente de saints and sinners (santos e pecadores) e eles têm the gift of the gab, quer dizer, são os papas do papo, porque eles são soltos, falam, falam e falam, até o ponto de irritar. Eles nasceram com a fluência da palavra, mas uma palavra inventiva, irreverente, às vezes, e tradicionalmente criativa. Guimarães Rosa era mineiro de uma pequena cidade, mas se tornou um autor de projeção internacional. E é claro que ele conhecia bem a literatura irlandesa.

PB – E sua identificação com o Brasil, como aconteceu?
MB
Bom, primeiramente foi o destino que me trouxe, não escolhi. Meu primeiro marido, Jepton, veio para cá e vim para me casar com ele, no começo dos anos 1950.

PB – O que ele fazia?
MB
Ele era algodoeiro, comprava algodão dos produtores, andava muito pelo interior, lidava com os plantadores, sobretudo japoneses. Jepton era um businessman, do tipo mais voltado à raiz das coisas, e foi ele quem me introduziu na fotografia. Foi curioso porque eu já tinha uma percepção de composição e espaço, mas me lembro que pegava a máquina dele, uma Rolleiflex, enquadrava o tema e pedia a ele para apertar o botão do obturador. Anos depois, quando eu já tinha 32 anos, meu segundo marido, Jacques, me instigava a pegar o carro, e eu dizia: “Mas você acha que vou saber dirigir?” E ele falava: “E por que não?” Então, existe em mim uma resistência inicial a abordar coisas técnicas.

PB – Eles não eram artistas, eram?
MB
Jepton era um fino fotógrafo. Jacques tinha uma percepção aguda dos detalhes e era uma pessoa sempre atenta à palavra.

PB – Duas palavras se destacaram até agora em nossa conversa: “raízes” e “palavra”. Como você as relaciona?
MB
Aqui no Brasil essa relação começou a partir da leitura de Grande Sertão: Veredas, livro extraordinário, que me foi dado por um grande amigo, José Olympio Borges, de Patos de Minas. Ele era amigo, por sua vez, de Conceição Aparecida, que acabou sendo a modelo predileta do meu ensaio Pele Preta.

PB – De onde ela era?
MB
De Mococa, que fica entre São Paulo e Minas, e minha ponte para a fotografia. Porque, antes de Guimarães, eu fazia esboços, corpos, o dela, por exemplo. Ela foi comigo naquela época para São José do Rio Pardo, onde morava o menino anjo, que fotografei com aquelas asas para o ensaio Pele Preta.

PB – Você já tinha interesse em leitura quando conheceu José Olympio?
MB
Não, mas foi uma coisa que vinha vindo. Ao me presentear com Grande Sertão, Zé Olympio me disse: “Vou lhe dar este livro, mas não sei se você vai compreendê-lo”. E acontece que compreendi tão bem que me senti como peixe na água. É a ligação com a palavra. Você não precisa falar bem a língua para compreender a palavra. A ligação com a palavra pertence a outras esferas, você simplesmente compreende, simplesmente “sabe”. Eu compreendi instantaneamente e aí pensei que gostaria de ver aqueles lugares, de andar por aqueles Gerais de Guimarães.

PB – Depois de Guimarães Rosa, você leu Euclides da Cunha, Ariano Suassuna, Jorge Amado. Você ia buscar os lugares, os personagens?
MB
Sim, mas não levava o livro comigo nas viagens. A gente se impregna com ele, mas depois o esquece e vai embora. E não se trata de “ilustrar” a obra de um autor, pois isso seria uma pretensão descabida. O que eu tentava fazer era traçar “equivalências fotográficas” de seu mundo.

PB – Você parece ter algo ainda não resolvido com a palavra. Tem algum projeto relacionado a ela?
MB
Eu até acho que me relaciono bastante bem com a palavra, embora sem mestria! Fico mais tempo no computador que em frente à câmera. Além disso, consigo resolver muitas coisas na minha vida, profissional e íntima, através de cartas bem escritas. Posso levar até dois dias para escrever uma carta, mas elas muitas vezes atingem o alvo, funcionam.

PB – Você está sempre começando coisas...
MB
Vou desdobrando, levando uma coisa para outra. Por exemplo, o livro que fiz paralelamente à exposição no IMS, apesar de ter sido o resultado de um esforço bastante traumatizante, virou a argamassa para outros desdobramentos.

PB – E seu trabalho como curadora?
MB
Tive duas salas especiais nas Bienais de São Paulo de 1975 e 1985. Uma sobre o Xingu, com os irmãos Villas-Bôas, e outra sobre o Turista Aprendiz, de Mário de Andrade. Por causa de nossa experiência com O Bode, a galeria de arte popular brasileira que Jacques, o arquiteto Antônio Marcos Silva e eu abrimos em 1988, Darcy Ribeiro nos convidou para compor uma coleção de arte popular latino-americana que acabou sendo o acervo permanente do Pavilhão da Criatividade do Memorial da América Latina. Essa coleção, daquela época, ganha valor e interesse com o passar dos anos.

PB Por que as fotografias dessa sua última exposição também se valorizaram com o tempo?
MB
As fotos da China, por exemplo, que fiz em 1982, apesar de não serem extraordinárias, ficaram sendo uma antropologia visual de um momento, pois aquela China hoje não existe mais.

PB – Qual é a proposta do filme que vocês estão querendo produzir?
MB
Seria sobre as minhas andanças, mas uma parte importante do documentário será uma viagem no tempo a lugares que fotografei no passado. Essa volta se dará 40 anos depois e, quem sabe, revelará rupturas e elos entre o ontem e o hoje, permitindo captar as mudanças ocorridas neste grande país durante esse período.

PB – Quem participará da produção?
MB
Lúcio Cordato, eu, minha filha Sophia. E agora estamos vendo a produtora e avaliando as possibilidades de realização.

PB Você tem ideia do que poderá encontrar nessa viagem?
MB –
Não, e isso é que vai ser interessante. A exposição teve uma receptividade emotiva do público que foi, para mim, realmente inesperada.

PB – Por quê, em sua opinião?
MB
Penso que mostrou uma visão do Brasil essencialmente brasileira, ainda não mexida por influências outras. Havia pessoas de todas as faixas sociais anotando, olhando e “simpatizando” com aquelas imagens de uma imagem do Brasil.

PB – Para mim, suas fotos parecem fortalecer a dignidade das pessoas fotografadas.
MB
Acho que foi essa dignidade que tocou as pessoas.

Maria Luiza – Observei um moço, de uns 20 anos, que chegou perto de uma das imagens de uma mulher negra e ergueu os ombros. Quando ele me viu, disse: “Parece que ela vai me abraçar”.
MB
Nossa, que maravilha!

Maria Luiza – O que você fala da brasilidade, das pessoas se reconhecerem ali, eu vi naquele moço. Como se ele reconhecesse a si e às suas origens naquelas imagens.
MB
É isso, Maria Luiza, você fez a síntese da exposição: uma esperança que deu certo.

PB – Também me pareceu que cada tipo humano, de cada região, tem uma expressão bem particular.
MB
Grande parte de minhas fotos não são espontâneas. Nos retratos há, muitas vezes, uma cumplicidade, um entendimento entre as partes, uma pausa sem questionamentos, um algo que flui entre nós.

Maria Luiza Há um reconhecimento de si próprio também?
MB
Sim, além do prazer do achar, porque você perde algumas coisas na vida e esse achar é um momento muito prazeroso. E sequenciar é melhor ainda porque aí você elimina onde não achou e une tudo como dentro de um discurso escrito.

PB – As imagens falam como se fossem palavras?
MB
Sim, são capítulos compostos de palavras, que compõem frases...

PB Essa exposição representou uma espécie de resgate seu e de seu trabalho?
MB
Essa exposição criou certo alarde porque, fora as Bienais, eu tinha me desvinculado de minhas fotos, as tinha esquecido, não ligava mais. Não vendia fotos nem ia atrás das galerias; então, eu tinha caído numa espécie de limbo fotográfico, e a exposição foi um presente precioso.

PB – Você esperava atingir tal repercussão?
MB
Não, e isso até hoje me surpreende. Foi uma coisa inesperada e eu atribuo isso à visão de um país…

PB Que está deixando de existir, se despedindo?
MB
Não sei se está se despedindo, ele existe ainda, na modernidade, só que os ingredientes são outros e, atualmente, mais globais.

Maria Luiza – Esses novos ingredientes incorporam a brasilidade, você não acha?
MB
Acho, sim, e são as periferias urbanas que trazem à tona alguma coisa maior e bem “deles”, com suas liberdades e irreverências...

Maria Luiza – O rap e o repente têm algo em comum.
MB
Têm, sim, você tem razão. Eu tive bastante proximidade com o mundo das periferias porque minha filha, Sophia, trabalhou bastante nessas áreas.

PB – A globalização tende a uniformizar, mas talvez isso seja impossível...
MB
Por isso faço questão de que não se diga “um Brasil que não existe mais, um Brasil que já era”. Porque não é isso, não, existe, sim, essa energia, mas com outros ingredientes, outro tempero…

PB – Quando você começou a fotografar os tipos brasileiros, nos anos 1960, o povo começava a aparecer como personagem do Cinema Novo, do teatro. Você integrava esse movimento?
MB –
Gosto demais das coisas do Glauber, mas não estava ligada, não. Aliás, acho que eu era uma pessoa um tanto desligada.

PB – Você era desligada em política, trabalhando na “Realidade”, uma revista contestadora, em pleno regime militar?
MB
Sim, eu era de certa maneira desligada e não acho isso bom. Acho que estava cega diante de uma porção de coisas.

PB – A “Realidade” lhe impôs um estilo de fotografia ou você introduziu algo novo na revista?
MB
Não posso dizer isso de mim mesma. Dizem alguns que sim. Tivemos o privilégio de trabalhar em fotojornalismo numa época em que as redações e as grandes editoras, como a Abril, por profissionalismo sapiente, adequavam as matérias às características das pessoas. Assim, eles quase sempre me mandavam para o interior. E sempre que possível com jornalistas ou escritores extremamente ligados ao país, como, por exemplo, Jorge de Andrade, de família tradicional paulista, com quem viajei muito.

PB – Eles aproveitavam melhor as pessoas. Isso acabou na imprensa.
MB
Sim. Até perguntavam qual era o tempo máximo que a gente precisava para fazer o trabalho. Levávamos filmes a mais e trazíamos de volta os que não usávamos. Então, era um espírito de fé, mas não era generosidade. Era fé e inteligência. Assim, eles obtinham resultados surpreendentes.

PB – Você poderia falar um pouco sobre o reconhecimento internacional de seu trabalho?
MB
O livro Xingu – Território Tribal, por exemplo, foi publicado em cinco línguas, com 30 mil exemplares, o que é raro para livros fotográficos hoje em dia. De meu livro Sertões – Luz e Trevas resultou a primeira tradução em alemão de Os Sertões, encomendada pela editora Suhrkamp. Isso, para mim, foi uma honra e me deu um enorme prazer.

PB Vou lhe propor uma questão bem pessoal agora: você era muito ligada a seu segundo marido, Jacques Bisilliat, e vivenciou sua perda de uma forma curiosa. Conte como foi essa passagem de sua vida.
MB
Quando ele faleceu, no final de janeiro de 1991, meus companheiros e a diretoria do Memorial me instigaram a trabalhar freneticamente, e isso ajudou, inicialmente, a desviar a dor e entrar na prática. Dois meses depois me enviaram para fazer um trabalho no Paraguai e foi aí, subitamente, que tomei consciência do acontecido. Ao voltar para casa, todas as noites eu acordava, pegava um livro ao acaso, abria e achava a resposta exata para o que eu estava precisando saber. No dia seguinte, xerocava as páginas, recortava e colava numa espécie de diário, coloria e brincava com ele. Isso durou nove meses. Ao reler, vi que eu tinha traçado uma lógica que acho que na normalidade da vida não teria sido possível traçar, quase como uma escrita automática, quase que assoprada. Lembro de dona Ara, a segunda mulher de Guimarães Rosa, dizendo, ao me levar ao quarto onde o marido escreveu Grande Sertão, que ele lhe dizia que recebeu o livro “assoprado”. Tem certas coisas inexplicáveis… Certas coisas, não muitas. Acredito que dele só essa obra. De mim só esse diário.

PB – Com isso, você superou a perda?
MB
Elaborei o luto.

PB – Em 1960, você tinha reencontrado Jacques. Como foi isso?
MB
Tinha ido fazer uma matéria de capa sobre os terremotos no Chile para a revista do “New York Times”. Um fracasso, porque mandei os filmes para a redação do jornal e, pasme, eles só chegaram à revista muitos anos depois. Na volta para os Estados Unidos passei por São Paulo e reencontrei o Jacques, que eu já conhecia. E aqui fiquei.

PB – Foi uma grande reviravolta...
MB
Na época, eu morava no Greenwich Village, em Nova York, e tinha o green card. Aí fui ver uma vidente que se chamava Gypsy Marie. Ela me disse: “Olha, você vai viajar, não vai voltar, vai mudar seu nome e sua vida”. Totalmente. Engraçado, mudei de nome, de país e de vida. Desprezei o green card e fiquei aqui.

 

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