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Entrevista
Chico e Edu

Juntos outra vez, dois dos maiores músicos do Brasil participam do musical Cambaio, em cartaz no Sesc Vila Mariana

É inútil publicar aqui as trajetórias tanto de Chico Buarque, quanto de Edu Lobo. A história da música brasileira já se encarregou há tempos de inscrevê-los em seus mais importantes anais. O fato novo aqui é o reencontro dos dois em um projeto inédito: o musical Cambaio.
Com direção de João Falcão e direção musical de Lenine, Edu Lobo se encarregou de criar as melodias e Chico Buarque de compor as letras. Nesse processo criativo de múltiplas mãos, os dois não tinham uma idéia clara de como o enredo se desenrolaria a partir das músicas compostas, até porque, o roteiro prévio nunca existiu. Às vésperas da estréia, em 20 de abril, a montagem ainda estava parcialmente em aberto.
A seguir, a Revista E publica as respostas de Chico Buarque e Edu Lobo em um encontro com o público no Sesc Vila Mariana e tempera a conversa com perguntas exclusivas.


Como foi o processo de criação do Cambaio?
Chico - Foi um trabalho de equipe e orgânico que partiu do nada. Nós nos encontramos várias vezes antes de dar início ao trabalho para estabelecer um roteiro básico, que depois foi desrespeitado o tempo todo. A cada música que chegava para o diretor, o texto posterior a ela era alterado, e isso aconteceu até às vésperas da estréia.

Em relação aos outros musicais que você fez, como você os compara a Cambaio?
Chico - Com Cambaio eu me lembro da minha primeira experiência com teatro, que foi a montagem de Morte e Vida Severina, com a direção de Augusto Boal, no Tuca. Lembro-me da vibração e da entrega das pessoas envolvidas, muito semelhante ao que ocorreu no Cambaio. Foi a primeira vez que ganhei uns trocados como músico profissional. O curioso nessa história é que meu trabalho mais recente se liga ao primeiro.

De onde surgiu o nome Cambaio?
Chico - Cambaio foi a segunda ou a terceira música que o Edu me mandou. Na fita gravada com a melodia, ele cantarolava e, a certa altura, eu tive a impressão de ter ouvido a palavra “cambaio”, que tem várias acepções: é o sujeito troncho, com as pernas curvadas para dentro; e quer dizer trôpego, cambado. A música surgiu por isso e depois tive de fazer o resto da letra para justificar a palavra.
Edu - E também tem a ver com uma certa malandragem.

Essa é a primeira vez, em um musical, em que você apenas faz as letras sobre uma base musical já preexistente. Como você analisa essa novidade?
Chico - Dificulta e facilita ao mesmo tempo, pois sou obrigado a fazer letras para uma música já criada. Isso, em princípio, poderia parecer uma limitação mas, na verdade, não é, pois o fato de a música e o texto não serem meus me obriga a encontrar palavras que eu nunca encontraria e a dizer coisas que eu nunca diria. Aliás, música de teatro é isso: são músicas e letras que não se escrevem à toa. Eu só as escrevo para determinada situação, para determinados personagens. São canções sui generis. Na verdade, elas vêm de uma idéia que não é minha. Eu vou roubando idéias. No caso do Cambaio, foram sugestões do João e da Adriana. Além disso, estou escrevendo letras para as músicas do Edu Lobo, o que é forçosamente mais estimulante, já que sou obrigado a me encaminhar por uma estrada que não seria a minha naturalmente.

Acontece o mesmo com você, Edu? Criar músicas sobre uma idéia prévia?
Edu - O que eu mais gosto nessa história de compor para teatro é fazer certas coisas que eu jamais faria. Por exemplo, um tango. Eu jamais faria um tango. Não que eu tenha alguma coisa contra, pelo contrário. Mas por que eu faria um tango? A não ser que o personagem peça. Então, a preocupação não é minha. É a personagem que comanda. Quando se trabalha com teatro, você se torna um pouco ator também.

Qual a diferença entre criar uma obra espontaneamente e outra que tem um estímulo, digamos, externo?
Chico - Uma criação espontânea não tem um roteiro. Eu tenho a liberdade de escrever o que eu quiser. De um lado, isso facilita a minha vida, mas de outro, não, porque é preciso sair do nada. O ponto de partida é sempre uma grande ajuda.
Edu - Quando se trata de um musical, a presença do personagem é estimulante. Eu não acredito muito na inspiração como um processo místico. Existe disposição. Existem dias em que você está mais disposto. Mas, eu concordo com o Chico, sair do zero é o mais difícil. Burilar é a melhor parte do jogo. Troca um acorde aqui, uma notinha ali. O Chico de Moraes, um gênio na orquestração, não sabe sair do zero. Agora, se você diz para ele: “Eu quero uma caixa de música gigante, com a orquestra sinfônica soando como Ravel, Debussy e Villa-Lobos”, ele faz tudo, realiza de uma maneira magistral.

Você pode comentar a trajetória do trabalho de criação, desde seus primeiros passos até os últimos ajustes?
Chico - Não chega a ser um trabalho físico, nem disciplinado, é um exercício mental. Mas eu tenho muito prazer nisso também. Depois que o bruto da letra está pronto, a burilação e a busca pela melhor palavra devem ser iguais ao prazer que o artesão sente quando lapida uma jóia. O primeiro momento da criação de uma música é um pouco misterioso.

Existe a síndrome da página em branco para os músicos? Como você a dribla?
Edu - Eu tenho uns macetes que eu uso às vezes. No Cambaio aconteceu algo inédito. Eu estava tentando compor a música que seria a principal do musical, mas acabei abandonando essa tentativa. Uma parte dessa música frustrada ficou gravada numa fita com outra música, que eu mandei para o Chico. Ele ouviu o trecho que estava gravado por acidente e gostou. Era algo caótico: eu estava cantando em falsete, fazendo umas loucuras no meio. Quando ele me cantarolou a música, eu não tinha idéia do que era. Resultado: não achei o master da fita e tive de reaprender seus acordes ouvindo aquele trechinho. Daí surgiu uma outra música. Mas algumas vezes o critério do autocontrole de qualidade é tão exagerado que você acaba jogando fora coisas que não devia descartar.

No seu processo de criação, o que vem antes: a letra ou a música?
Chico - Quando eu componho, posso ajeitar a música enquanto faço a letra. Quando estou fazendo uma música no violão, a melodia vai surgindo, a letra vai acompanhando e, às vezes, pede para a música mudar um pouquinho. Agora, existem poetas que fazem ora poesia, ora letras de música. Eu sempre imaginei que o poema bom era publicado e o mais ou menos virava letra de música.

Como você faz para dividir as suas três áreas de criação: a música, a letra e a ficção?
Chico - Não consigo misturar. São três coisas separadas. A ficção é totalmente independente, claro, porque não tem música. De qualquer modo, o letrista não tem nada a ver com o ficcionista. Eu não faço uma programação nem a longo, nem a médio prazo.

No trabalho de vocês, qual a relação entre inspiração e transpiração?
Edu - Uma vez um jornalista perguntou para Cole Porter o que o estimulava a compor. O jornalista fez várias elucubrações sobre a inspiração. E em certo momento Cole respondeu: a ligação do produtor. Eu concordo plenamente. É fundamental trabalhar sob pressão.
Chico - Quando não há a pressão do produtor, eu mesmo me torno meu produtor, ligo para mim mesmo e digo: Como é que é? Há dois meses você não faz nada.

Quais foram suas principais influências literárias?
Chico - São inúmeras. Muito difícil precisar, pois elas se espalharam por várias épocas. Agora, me ocorre um exemplo que pode ser bem ilustrativo. Quando eu estava trabalhando no projeto do Sebastião Salgado, precisava de um gancho para musicar as fotos. Aproveitando o fato de ambos, Sebastião e Guimarães, serem mineiros, comecei a reler Tutaméia como se fosse a primeira vez. Então, Guimarães Rosa, além de ser uma influência fundamental, nesse caso foi uma influência direta. Encontrei uma quadra de um cantador de Minas Gerais, que eu musiquei para o livro Terra.

E no seu caso, Edu, quais os compositores que mais o influenciaram?
Edu - Há compositores que eu ouço muito, mas que não me influenciam tanto. Villa-Lobos, por exemplo, é uma influência fundamental. Tom Jobim, que foi muito influenciado por Villa, é uma referência muito próxima. Eles são um estímulo, trazem de volta o gosto de inventar, de fazer de novo e de prosseguir, porque há momentos em que temos a impressão de que tudo foi dito, tudo foi escrito, todas as notas já foram usadas.

De onde vem a inspiração para criar seus personagens femininos?
Chico - Basicamente, elas vêm de canções feitas especialmente para teatro e cinema. São canções femininas porque são representadas por mulheres.

Como teve início a parceria de vocês?
Edu - Foi em uma canção para o disco Moto-Contínuo. Nessa mesma época, no começo da década de 80, fiz um balé para o Teatro Guaíra, de Porto Alegre e houve uma boa receptividade, então eles me encomendaram outro. Dessa vez, queria fazer um balé que não fosse apenas instrumental e chamei logo o Chico Buarque para compor as letras. Esse novo espetáculo, chamado O Grande Circo Místico, teve direção de Naum Alves de Souza. Para mim, essa parceria é muito estimulante porque esse cuidado que o Chico tem com a letra me obriga a tomar um excessivo cuidado com a minha música. Quer dizer, eu não posso pisar na bola, não posso encostar o corpo: o Chico é muito cuidadoso com as notas musicais. Ele pede licença para trocar uma nota ou outra. Normalmente, ele tem razão. E eu também tenho esse mau hábito de quando vem a letra, mudar alguma coisinha, mas ele reclama.

Você pode analisar como era trabalhar sob o peso da Ditadura militar?
Chico - Era horrível trabalhar sob esse tacão abominável. Uma experiência péssima foi o espetáculo Calabar, que já estava pronto, com o aval prévio da censura. No dia do ensaio geral, os censores o assistiam para conferir se o texto antes enviado era seguido à risca na apresentação. Em Calabar, apesar de o texto estar aprovado, os censores não compareciam ao ensaio geral. Nós marcávamos a apresentação e eles não apareciam. Com o passar do tempo, ficou evidente que eles não liberariam a peça e, obviamente, perdeu-se toda a motivação e o espetáculo faliu. Isso foi uma excrescência, um absurdo; trabalhar sem interferência política é o normal.

Como vocês vêem as dificuldades para um artista no começo de carreira conseguir espaço na mídia? Como vocês podem comparar com a época em que vocês começaram?
Chico - Hoje, muitos artistas não aparecem nos veículos de massa, mas têm público cativo. Havia, na TV Record, por exemplo, um programa de música transmitido todas as noites. Era uma herança do teatro e das rádios, como a Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Havia programas musicais e as músicas que nós fazíamos tinham mais espaço do que hoje.
Edu - Nessa época, éramos contratados da TV Record, aparecíamos muito na televisão e, hoje em dia, muito pouco ou quase nada. Basta lembrar os festivais, que faziam tanto sucesso na década de 1960 e que hoje perderam quase todo o sentido.

Depois de tanto tempo de estrada, você sente o peso da idade? Mesmo depois de quase todas as notas tocadas, como você disse anteriormente, ainda há ímpeto para produzir?
Edu - O ímpeto é sempre o mesmo. Tom Jobim sempre dizia “no tempo em que eu era mais velho”. Acho que é isso mesmo. Era uma geração mais envelhecida. Havia muita coisa chata e careta que nos impunham. Talvez uma moral muito exagerada que envelhecia as pessoas. Eu me considero mais jovem atualmente.