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Cadeiras nas calçadas

Domingos Barbosa da Rocha



O chorinho tem o poder de me conduzir para um fim de domingo, grávido de felicidade e à esperança de que a segunda-feira não cairá sobre a minha cabeça como a Cavalaria Rusticana.

Inútil me falar do virtuosismo de cada chorão, das construções musicais elaboradas, desta ou daquela peça e das improvisações harmônicas que o choro possibilita.

Cada chorinho que ouço me leva às tardes corumbaenses, quando, às 17 horas, o serviço de alto-falante do jardim iniciava suas transmissões, ao som de Pedacinho do Céu, com Waldir Azevedo.

E essas associações não trazem nenhuma melancolia barata. Corumbá não é uma fotografia na parede, nunca foi. O chorinho provoca minha memória, trazendo emoções cotidianas, por isso importantes. Cheiro de chuva, pés de criança pisando poças d’ água, volta para casa, minha mulher nua, filhos crescidos e amigos sem camisa comendo melancias nas escadas que ligam as cozinhas aos quintais deste Brasil.

Adoro música e de modo geral ela me pega pelo sentimento, não pela razão. Talvez este seja o motivo pelo qual não seja músico, mas um cantor, com pouca voz, que se persegue ao violão. Essa forma de amar a música já me levou a situações muito distintas: sair de casa para ouvir o amigo Joel Padula, cantando Pinheirinho de Natal, em alemão, numa festa de igreja, em Rudge Ramos e, num outro dia, o som do violão de André Geraissati. Gostei de ambas. Mas o chorinho...

Há uma exclusividade brasileira no chorinho. Não é a melancolia portenha do tango, nem a agressividade intencional do jazz americano. É uma paz que pede cadeiras nas calçadas.

Há gerações de músicos que aprenderam a ler e a tocar, com um tio ou um avô, e que por sua vez aprendeu com algum maestro de uma pequena banda, para lá das montanhas das Gerais.

Essa herança leva para uma roda de choro, numa metrópole como São Paulo, múltiplas identidades a cada participante. Não é Alê Ferreira, ou Carlos Poyares, quem toca é o acorde aprendido com um vizinho em Petrolina; o violão herdado do pai que não tocava; seqüências de uma melodia ouvida na rua; ou é a vaidade de um Jacob, quando alcançava no bandolim a seqüência proposta pelo pianista e devolvia com mais notas, que se apossa do rosto de cada chorão hoje.

Se cada nação tem uma musicalidade que a identifica, o chorinho é a identidade forte e estampada na alma da maioria de nós.
Quando, nas cidades brasileiras, a música era importada, acadêmica e clássica, o chorinho foi a expressão musical popular nova e elaborada. Da mesma forma que a música clássica, o choro precisa de conhecimentos musicais e de leitura, para composições, para arranjos e para execuções.

E os chorões da época? Pessoas simples, funcionários públicos urbanos, famílias de negros que buscavam lugares dignos para trabalhar e viver nas cidades. Onde essas pessoas pobres encontravam escolas de música que pudessem freqüentar, se hoje elas ainda são escassas?

Há muita história a ser conhecida e a ser estudada com mais ternura e tesão, e não somente teses universitárias, amontoadas em bibliotecas, ou perdidas nas memórias de computadores desligados.

O choro é complexo, é comovente, é complicado como uma sinfonia. Mas é também uma complicação que se supera com talento, garra e uma orquestra sinfônica, ou na falta, violão, cavaquinho, pandeiro e o que mais vier só enobrece a execução do choro.
Se eu for buscar na memória a imagem de um brasileiro feliz, exalando dignidade e respeito, me vem forte a figura do Ph. D. em choro, Pixinguinha, sentado na sua cadeira de balanço, abraçando seu saxofone e dizendo para gente, na sua serenidade: “Valeu moçada”.

Domingos Barbosa da Rocha
é assistente social e gerente do Sesc Ipiranga.