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Matérias da edição

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Ficção Inédita
Lua, 1969

Por Nelson de Oliveira

E la tem febre?, pergunto ao que está à minha frente. Por uma questão de conveniência, irei chamá-lo a partir de agora de O Que Está à Minha Frente.
Sim, ele me responde, sem se virar.
Isso não é nada bom. Há quanto tempo ela está com febre, eu lhe pergunto duas, três vezes, antes que se anime a responder.
Quatro dias, parece. Tempo mais do que suficiente para levar uma criança à morte, eu acho. Mas esta aqui não morre. Vê? Está nos observando com o rabo do olho. Sabe que estamos aqui. Isso lhe dá forças, não é mesmo?
Ele agora não está mais à minha frente. Está encostado no batente da porta, mas ainda assim tão próximo do meu corpo que quase posso sentir-lhe o hálito avermelhado.
Não seja idiota, eu lhe digo, afastando-me um pouco da criança. Ninguém pode lhe dar forças. Não agora. Muito menos de onde estamos. Ela nos vê? É provável que sim. Também é provável que não. Será? Não sei, tenho minhas dúvidas. Talvez nos veja, mas é só isso. Estou confuso. Não me venha com idéias, eu continuo a lhe dizer, usando propositadamente um tom áspero, agressivo, talvez por me sentir a centenas de quilômetros abaixo da entidade que me ouve.
Ele, por sua vez, nada responde, o que só faz aumentar ainda mais o intervalo entre nós.
A casa não é muito grande. Tem apenas um quarto, uma sala, um banheiro estreito e uma cozinha. Dentro tudo é muito sufocante. Fora há a imensidão do mundo, dos planetas e das estrelas, porque já passa das sete.
A criança está no quarto, deitada num berço pequeno e pobre. No cômodo ao lado, na cozinha, estão os pais da criança, perdidos na escuridão, as silhuetas toscamente delineadas pela luz que vem de fora, do poste rente ao muro.
Enfio meu corpo através da parede, para ouvir o que é que tanto discutem.
Falam, os pais, da provável existência de um médico, em algum lugar depois do rio. Falam do atraso do barqueiro, com a receita encomendada há algum tempo.
Volto pelo mesmo caminho.
Sem querer, impelido pelo atrito com os tijolos da parede, penetro alguns centímetros no corpo da criança, provocando-lhe calafrios. O toque faz crescer em mim uma vaga idéia de calor, uma sensação antiga, curiosa. Como se eu tivesse penetrado não num corpo doente, mas numa ante-sala forrada de espuma vermelha, pulsante, cheia de sangue e artérias.
O Que Está à Minha Frente reprova a minha desatenção.
Mantenha-se longe da criança, ele me ordena.
Observando-a de perto, logo fica claro, ao menos para mim, que ela não viverá. Que diabos! Que ela não viverá sequer para ver, através da fresta da janela fechada, a luz do dia seguinte.
O Que Está à Minha Frente, mesmo estando em outra posição, estará sempre à minha frente. Ele se aproxima, agora por trás, movendo sobre a criança o ar, mas na verdade sem movê-lo realmente, coisa que jamais saberei fazer.
Que ubíqua luminosidade é esta que, vazando da parede da sala de estar, preenche a atmosfera, hipnotiza e comove as pessoas que lá se encontram?, ele me pergunta, apontando para um fio prateado que entra por baixo da porta.
É provavelmente a luz da Lua, eu lhe digo.
Digo-lhe isso, mas ele agora já não me dá a menor atenção.
O Que Está à Minha Frente não está nem um pouco interessado nos eventos celestes. Prefere esparramar-se pelo quarto, sentir como um termômetro a temperatura ambiente, verificar se as janelas estão bem fechadas, cuidar da criança.
Os pais conversam no cômodo ao lado.
Na sala, ao contrário, não se ouve voz alguma. Nela está, nesse instante, reunido o que sobrou da família da criança.
Diante de um sofá cheio de arranhões, de uma mesinha e de duas cadeiras, está também um velho aparelho de tevê, chama ofuscante e avassaladora que a todos seduz e domina, único indício da grande riqueza e opulência em que outrora viviam os moradores desta casa. Labareda irreal e sonora, esse aparelho de tevê cuja imagem ainda apresenta milagrosamente a mesma nitidez e euforia que apresentava há muitos anos.
Porém, tanto para O Que Está à Minha Frente quanto para mim, a riqueza dilapidada e a chama ofuscante já não significam muita coisa. São meras desculpas para uma questão não respondida, para alguns acidentes jamais levados a sério, cuja importância também há muito deixou de ser discutida e respeitada nesta casa, em toda a parte.
Estão na sala os tios, os primos e os avós - a família da criança - e alguns amigos, sentados, sem falar. Estão na frente do raio fulminante, da luz que, uma vez acesa, mesmo com o vagaroso passar das horas se recusa a cessar.
Ninguém diz nada, ninguém esboça o menor gesto. Estão como troncos inertes diante de uma tempestade luminosa.
Não há muitos móveis na sala, apenas os já mencionados. Mesmo assim o grupo parece não ter nenhum interesse em se desfazer, embevecidos como estão pela fulgurante faísca relampejante que, envolvendo a luz que vem da tevê, explode, igual a silenciosos fogos de artifício, queimando pestanas e pupilas.
Pelo pouco que me é dado perceber, a luz nesse momento está a falar a fala da Lua. Como eu havia suposto, sua coloração é sideral e sua temperatura, pré-histórica. É por isso que as pessoas na sala permanecem tão quietas.
Penetro numa delas - um velho mal vestido, meio sonolento, meio admirado - e o fluxo ancestral dos seus pensamentos num minuto arrebata minha atenção, concentrando-a na figura dos homens lunares.
Até então eu não havia me dado conta da presença de tais figuras.
Direcionando suas emoções para o ponto que me interessa, percebo as crenças mais profundas deste velho. São ingênuas, porém, como é de se supor, têm as raízes fincadas num tempo imemorial. Daí a sua total falta de desconfiança em relação ao que o rodeia.
Ele acha que a criança está de alguma maneira protegida pelo seu próprio destino, eu falo Ao Que Está à Minha Frente, de dentro do velho, aproveitando uma ligeira interrupção no contínuo bombeamento de emoções que circulam pelo seu corpo.
Ele acredita de verdade em algo que não consigo compreender muito bem. Na sobrevivência do mais fraco, talvez. É o que me parece quando vejo que ele, da mesma forma que seus amigos, veio muito jovem para esta terra, veio a cavalo, com a mulher e os filhos, e, nos cinqüenta anos em que viveu aqui, jamais experimentou qualquer tipo de ausência ou medo em relação ao que considera ser seu lar verdadeiro.
Ele, através da parede fulgurante, vê a luz que vem da Lua, os homens, a máquina de vencer distâncias que os levou até lá, sua superfície prateada e porosa, e sabe que a criança não morrerá. Ele também sabe que estamos aqui para protegê-la.
O Que Está à Minha Frente arranca-me violentamente do interior do velho.
O que você pretende fazer? Matá-lo?
Só então me dou conta de que o velho está muito pálido, sentado numa poltrona remendada, e de que da sua boca sai um fio de saliva.
Porém mais ninguém na sala percebe isso. Estão por demais hipnotizados pelo raio verde de paredes frias para perceber que o velho não está apenas cochilando. Felizmente aos poucos suas feições acabam retornando ao normal.
A mesma Lua que entra pela janela da sala também entra pela parede de luz expelida pela tevê. No entanto, esta, como que vista pelas lentes de um maravilhoso telescópio, é muito maior, mais nítida, mais luminosa, mais onírica.
A Lua da janela não provoca nenhum calafrio.
A Lua da parede, inversamente, possui a atmosfera do fundo do mar, vagarosa e infinita, e a sensação de sonho é ainda mais fantástica quando uma figura humana, protegida por um delicado traje de mergulho feito de seda, atravessa essa atmosfera, a uma grande distância, sem sequer arranhá-la.
Esse homem está envolvido pelo mais absoluto vazio, o silêncio. Está isolado, e provavelmente sabe disso. Sabe que, uma vez lá em cima, se houver algum acidente nenhum de nós poderá ajudá-lo, nem O Que Está à Minha Frente, nem eu, nem ninguém. E é isso que o torna tão sublime para os daqui de baixo. Ele anda, salta e dança no ar como um trapezista sem rede de proteção, e tudo o que nos é permitido fazer é tão-só observá-lo.
Nesse momento a magia que vem de longe é tão irresistível que, na sala, todos, incluindo o velho agora mais uma vez acordado, passam a flutuar junto com o homem lunar. Flutuam ao redor do tapete, sobre os móveis, movendo delicadamente as mãos, respirando o fluido nuclear que vem de fora, do sonho das outras pessoas. Tanto das que passam na rua quanto das que também não saíram de casa hoje, apenas para seguir, de maneira igual, a mesma viagem.
Por um segundo todos nós nos tornamos entidades siderais.
Por isso o velho acredita tão firmemente que a criança não morrerá, digo a mim mesmo, de maneira clara, para que O Que Está à Minha Frente possa ler e compreender os meus pensamentos.
No entanto, O Que Está à Minha Frente não está mais à minha frente, nem ao meu lado, nem sobre mim. Ele está fora do quarto, fora da casa, quieto, distante da Terra e da Lua.
O vento, na rua, investe contra os cantos da casa em arremessos ruidosos, alarmantes, como um corpo pesado que, devagar, vai despencando do alto.
O Que Está à Minha Frente imita, quase a contragosto, as pancadas do vento.
A criança está morta, ele me diz afinal.
Diz isso como se dissesse: hoje vai chover, ou como se revelasse algo do tipo: faltam tantos dias para o inverno e mais tantos para o final do ano, ou qualquer coisa parecida, e de início isso me deixa apalermado, e em seguida enlouquecido, com uma vontade irresistível de tornar a agredi-lo, mas desta vez com toda a minha força e não apenas com palavras, como venho fazendo até agora desde que nos conhecemos.
Morta? Você disse, morta? Como pode saber? Você nem sequer se aproximou daquela criança! Você jamais se aproximou de quem quer que fosse! Como pode saber?
Ele sabe.
Como poderia não saber? Seu corpo apresenta uma coloração gelada. A mesma coloração tão comum de se ver quando tentamos - nós, os de nossa espécie - penetrar e permanecer por muito tempo em algum tipo de matéria inanimada.
O Que Está à Minha Frente caminha mais um pouco e refugia-se num canto deserto e escuro, entre o luar que cai sobre o gramado e a única porta iluminada, a da sala de estar. Lá, acomoda-se da melhor maneira possível na relva e mergulha no descuidado devaneio que costuma ser o seu estado de espírito habitual, longe das pessoas e de si mesmo.
Descendo o morro, na rua de terra batida, um pequeno grupo de crianças brinca sob a luz de um poste um pouco perdido na escuridão.
A rua é íngreme, porém isso não impede que corram por ela.
Brincam, meninos e meninas com uma sacola recheada de objetos tirados do lixo, de transformar velhas quinquilharias em potentes propulsores. Brincam de argonautas, de homens flutuantes, formando um novo grupo de verdadeiros Armstrongs, Aldrins, Collins, cheios de vida e de luz, navegando ao redor das próprias sombras, ao redor do que acabaram de presenciar na sala de estar das suas casas, na parede fulgurante da tevê.
Aos gritos atravessam a espiral do tempo, a encruzilhada de todos os pontos, usando como foguete fugazes bolhas de sabão ou qualquer coisa semelhante, soltas, elípticas, ora dentro do cone de luz - um milhão de sóis flutuantes -, ora muito longe dele, no vazio paleolítico do espaço. Viajam da realidade ao sonho, e o veículo que utilizam para passar de um estado ao outro sem correr o risco de envelhecerem, de morrerem congelados, é uma pequena lata de azeite meio amassada nas laterais, em cujo topo seus nomes, Joca, Gui, Lia, Lilica, Chiclete, foram solenemente inscritos com um prego enferrujado.

Nelson de Oliveira é escritor
e autor de Naquela écpoca tínhamos um gato, entre outros