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Ciência
O princípio da incerteza

O físico carioca Marcelo Gleiser esteve presente no Sesc Consolação numa palestra em que falou da utilidade da ciência e de sua participação na realização do espetáculo teatral Copenhagen

Para o trabalho de divulgação científica que tenho feito, o meio teatral é uma coisa nova e surpreendente. Quando os atores entraram em contato comigo me convidando para ajudá-los com o texto de Copenhagen, peça da qual eu já tinha ouvido falar pelo seu sucesso na Inglaterra e nos Estados Unidos, eu fiquei muito feliz. Trata-se de uma peça muito séria e importante para todos nós. Para mim, é maravilhoso poder contar com mais essa porta de divulgação. Através da arte é possível passar mensagens difíceis de serem passadas numa coluna de jornal ou num programa de TV, maneiras que eu uso habitualmente. A arte do drama emociona profundamente e esse espetáculo é muito emocionante. A peça parte de um encontro que houve entre Bohr e Heisenberg, em Copenhagen, no ano de 1941. O primeiro, dinamarquês e meio judeu, e o segundo, alemão e chefe do projeto nuclear alemão. Além disso, o físico alemão era o que podemos chamar de “cria” do Borh. Esse encontro durou 10 minutos e ninguém sabe ao certo o que aconteceu. Por exemplo: será que Heisenberg foi pedir a Bohr a bênção para poder se sentir melhor por fazer parte do projeto de desenvolvimento de uma bomba nuclear nazista? Talvez. Afinal, Heisenberg tinha profundo respeito por seu mestre. Ou será que ele foi tentar descobrir se os aliados tinham um projeto de bomba nuclear? Bohr tinha contato com os aliados que, se tivessem tal projeto, a Alemanha teria de ter o seu. Mais uma hipótese: teria ido Heisenberg tentar convencer Bohr a boicotar o projeto em escala universal? Ou seja, o alemão boicotaria o projeto nazista e o judeu boicotaria o projeto aliado. Se isso acontecesse, Heisenberg se tornaria, de certa forma, o grande herói da guerra, salvando a humanidade da destruição. Mas há, ainda, a última das alternativas: tratar-se-ia de um encontro apenas para uma conversa entre velhos amigos? O gênio do autor, Michael Frayan, foi construir a partir dessa situação, na qual existe uma incerteza básica, um enredo em que todas as possibilidades são encenadas.

A ciência do Bem e do Mal
Um ponto que eu gosto de explorar muito na ciência é o seu lado luz e seu lado sombra. A ciência não tem só aquela proposta inocente, apolítica e pura de quem vai resolver todos os problemas do mundo, fingindo não estar engajada em processos políticos e não fazer parte da cultura em que ela é criada. Ela tem esse lado também, que eu chamo de lado luz. Nos últimos 400 anos, a humanidade se transformou profundamente justamente por causa do desenvolvimento da ciência moderna. A ciência trouxe a qualidade de vida que temos hoje. Ela é responsável pelos avanços da medicina, pela longevidade etc. Mas, tem outro lado também, que é o que eu chamo de lado sombra. É o lado destrutivo que pode ser usado para o mal, que cria armas de destruição coletiva. A história da humanidade se transformou justamente durante a II Guerra Mundial, quando foi desenvolvida a bomba atômica. A partir daquele momento, pela primeira vez, o ser humano teve a capacidade de se destruir. E isso é uma coisa que não respeita fronteiras. Tem a ver com a humanidade. Muitas pessoas têm a tendência de pensar que em países como o Brasil, onde não existem bombas, não é necessário se preocupar com esse tipo de problema. Só que isso não existe. Einstein disse uma vez que se houvesse uma terceira guerra mundial, a quarta seria travada com pedras. Muitas pessoas se sentem traídas pela ciência. Encaram-na como uma faca de dois gumes.

Ciência e política
A politização da ciência não é novidade e não aconteceu pela primeira vez na II Guerra Mundial. Arquimedes, o sujeito que saiu pelado pelas ruas gritando “eureka” quando descobriu por que as coisas flutuam, trabalhava para o rei. Uma de suas funções era justamente criar armas para defendê-lo. Assim era Leonardo Da Vinci, que idealizous o submarino e criou armas de defesa para seu patrono. Outro notável foi Galileu Galilei. O homem que descobriu que a Terra não era o centro do universo também começou sua carreira fazendo objetos de defesa para o governo de Veneza.
A quem pertence a ciência?
Toda a descoberta, uma vez pública, pode ser apropriada por poderes tanto construtivos quanto destrutivos. De quem é a ciência? A gente ouve falar na Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e pensa “será que é do Governo?”. Mas de onde vem o dinheiro que financia as pesquisas? Vem de quem paga impostos. Ou seja, a ciência pertence à sociedade. Porém, o cientista tem família e tem de sobreviver. Assim, eis suas opções: o Governo lhe oferece um trabalho no Ministério de Defesa com um bom salário, ou então dar aulas num cursinho pré-vestibular. Existe um compromisso com necessidades concretas e individuais que tornam certas propostas muito tentadoras. Eu mesmo tenho um amigo que deixou o corpo docente de uma universidade para trabalhar numa grande indústria química norte-americana que, entre outras coisas, fabrica armas. Ele não foi trabalhar na divisão “sombria” da empresa mas fez a escolha por um trabalho mais lucrativo. Se daqui a um tempo alguém da Divisão de Armas o chamar para trabalhar com projetos de defesa, usando o argumento de que ele estaria defendendo sua pátria, como ficaria a situação dele?

Escolhas morais
Uma das coisas mais bonitas da ciência, e da qual pouco se fala, é a sua universalidade. Quando tratamos de questões religiosas, cada povo tem a sua religião, cada um tem uma versão para a origem e o fim do mundo. São versõe0s baseadas na fé. Já a ciência tem uma universalidade intrínseca. Se pensarmos nos escritos de Einstein, eles podem ser compreendidos por qualquer pessoa que detenha a linguagem científica, independente de sua nacionalidade ou religião. A pesquisa científica transcende as questões que dividem a sociedade. Esse valor democrático é muito importante. Por outro lado, a ciência é muito competitiva. É uma corrida na qual todos querem chegar em primeiro lugar. O prazer de ser o primeiro a descobrir o que quer que seja é muito importante. Não adianta ser o segundo. Existe, evidentemente, o prazer de poder compreender o processo criativo dos cientistas e suas grandes idéias, mas quando se é um cientista, você quer chegar primeiro. Aí volta a pergunta: será que Heisenberg queria ter o prazer de ser o primeiro a entender o processo nuclear? Outro ponto dentro dessa questão de escolhas morais é o papel da ciência no século 21. Todos sabemos que não há mais como escapar da ciência. Achar que o que está acontecendo nos laboratórios não é importante para a nossa vida é ingenuidade. Um bom exemplo disso são os alimentos transgênicos. Eles estão sendo desenvolvidos nos laboratórios de pesquisa genética com dois fins: o “bom”, que é resolver o problema da fome; e o “mau”, que é a complicada e perigosa manipulação genética do que é vivo. A partir do momento em que nós ingerimos esses alimentos transgênicos, estamos participando desse processo.

Copenhagen, em cartaz no Teatro Sesc Anchieta