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As terras indígenas

Em defesa da soberania nacional

ROBERTO MAGALHÃES

 


Roberto Magalhães
Foto: Francesco Barale

O deputado Roberto Magalhães, natural de Pernambuco, é diplomado em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, atualmente Universidade Federal do Rio de Janeiro, com doutorado em direito privado pela Faculdade de Direito do Recife, onde lecionou direito comercial.
Em Pernambuco foi procurador do estado, secretário de Educação, vice-governador e governador, além de prefeito da cidade do Recife. Exerce atualmente seu quarto mandato como deputado federal.
Recebeu a Ordem do Mérito Judiciário, concedida pelo Superior Tribunal Militar, a Medalha da Ordem do Mérito Eleitoral Frei Caneca, do Tribunal Regional de Pernambuco, a Medalha da Ordem do Mérito, do estado do Rio Grande do Norte, a Medalha da Ordem do Mérito dos Guararapes, do estado de Pernambuco, o Colar da Inconfidência Mineira, do estado de Minas Gerais, a Medalha Juscelino Kubitschek, também de Minas Gerais, e a Medalha do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, entre inúmeras outras premiações.
Esta palestra de Roberto Magalhães, com o tema “Demarcação das terras indígenas”, foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio, Sesc e Senac de São Paulo, no dia 10 de setembro de 2009.

A demarcação das terras indígenas é um assunto que nos preocupa há muitos anos. No município de Pesqueira, em Pernambuco, houve mortes e hoje metade da cidade pertence aos índios xucurus. Lá há uma barragem, no rio Ipojuca, que está com os índios. Eles fecham e abrem as comportas quando querem, criando problemas sérios para os ribeirinhos. Sem falar daqueles que foram desapropriados e dos quais a Constituição – que é chamada de “cidadã” – confiscou terras, algumas com títulos muito antigos, até de 80 ou cem anos, sem nenhuma indenização, só para as prefeituras. Os brasileiros de modo geral não conhecem esse problema. Ele fica escondido na Funai [Fundação Nacional do Índio], que é um mundo à parte – no qual a Fundação Ford age há muitos anos, financiando todo tipo de atividade, sobretudo de estrangeiros –, e no Cimi, o Conselho Indigenista Missionário, que pertence à Igreja Católica.

Esse assunto foi e certamente ainda é tratado no estrangeiro com certo desprezo em relação à soberania brasileira. Basta ver as afirmações de pessoas como o general Patrick Hugles, chefe do órgão central de informações das Forças Armadas dos Estados Unidos, em 1998, ou Pascal Lamy, quando presidente da OMC [Organização Mundial do Comércio], ou ainda o ex-vice-presidente Al Gore, em 1989. François Mitterrand, quando presidente da França, também se referiu a isso e certamente não falou por si só. Johan Eliasch, o sueco criador da ONG Cool Earth, disse que apenas US$ 50 bilhões bastariam para comprar toda a Amazônia. Ele possui muitas terras e algumas áreas que anuncia como suas estão em regiões ricas em ouro e diamantes.

John Major, primeiro-ministro britânico em 1990, foi direto: “As nações desenvolvidas devem estender o domínio da lei ao que é comum de todos no mundo. As campanhas ecológicas internacionais sobre a Amazônia estão deixando a fase propagandista para dar início a uma fase operativa, que pode definitivamente ensejar intervenções militares diretas sobre a região”. Mikhail Gorbatchov, o ex-premier soviético, Henry Kissinger e a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher também expressaram sua opinião sobre o tema. Não podemos esquecer que Roraima, com as demarcações que houve, sobretudo Raposa-Serra do Sol, tem 47% de seu território como área estadual, o restante são terras indígenas. No Brasil, as terras demarcadas já atingem 12,41%, um espaço em que cabem França e Espanha juntas.

A questão política indigenista tem sido debatida em consequência dos problemas acarretados pelas demarcações, primeiro da reserva indígena ianomâmi, em 1991, envolvendo 9,4 milhões de hectares, área equivalente ao estado de Santa Catarina, e mais recentemente da Raposa-Serra do Sol, em Roraima, que ocupa uma faixa de 1,7 milhão de hectares junto à fronteira com Venezuela e Guiana. Absurdos praticados na demarcação de terras indígenas levaram 400 mil índios brasileiros a ocupar quase 15% do território nacional. Diante desse descalabro, é imperiosa a participação do Judiciário para arbitrar os conflitos, como fez o Supremo Tribunal Federal [STF] na Raposa-Serra do Sol, estabelecendo ressalvas que em parte minimizam os efeitos danosos da demarcação.

Omissão

Vejamos algumas das 19 ressalvas do STF, que mostram como tem havido omissão e conivência do Poder Executivo e também do Legislativo:

• O usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas pode ser relativizado sempre que houver, como dispõe o artigo 231, parágrafo 6º, da Constituição, relevante interesse público da União na forma de lei complementar.

Isso estava em aberto e foi preciso que o STF legislasse. Ele invadiu a área legislativa e fez muito bem, já que o Legislativo se omite em questões tão relevantes.

• O usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional.

• O usufruto dos índios não abrange a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando aos índios participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

• O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério de órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho da Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas e à Funai.

• A atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica assegurada e se dará independentemente de consulta.

• O usufruto dos índios não impede a instalação, pela União Federal, de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e educação.

Tudo isso era vedado, estava sem norma jurídica que o disciplinasse.

• O ingresso, o trânsito e a permanência de não índios não podem ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias por parte das comunidades indígenas.

• As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício do usufruto e da posse direta pela comunidade indígena.

Isso é importantíssimo, porque o arrendamento poderia ser o início do processo de internacionalização dessas terras.

• É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada.

• É assegurada a efetiva participação dos entes federativos em todas as etapas do processo de demarcação.

Na Raposa-Serra do Sol, em Roraima, até municípios foram extintos.

Essas ressalvas e outras nove revelam quanto tem sido frágil a política indigenista no que diz respeito aos interesses nacionais. Mas a participação do Judiciário não será suficiente enquanto não se reconhecer ao Legislativo a decisão final sobre tais demarcações, já que, nos termos do disposto no artigo 231 da Constituição, elas implicam restrições à soberania do país. Essa é uma afirmativa que pode sofrer contestação, mas estou disposto a discuti-la quando necessário.

Soberania

Em relação à soberania nacional, a grande preocupação do governo federal hoje parece ser a instalação de efetivos militares americanos em bases colombianas. Não se pode negar que isso também seja um problema, ainda que se considere que sempre houve essa presença lá. Uma ameaça à soberania nacional maior do que os efetivos americanos na Colômbia é a subscrição pelo Brasil da declaração das Nações Unidas sobre direitos dos povos indígenas, em matéria de desapreço pela soberania de países do Terceiro Mundo ou mesmo em desenvolvimento. A ONU [Organização das Nações Unidas] aprovou a declaração de direitos dos povos indígenas, reconhecendo a eles o direito à autodeterminação, a vetar operações militares e a estabelecer instituições políticas, sociais, econômicas e jurídicas em suas terras.

Quantos de nós leram com atenção os termos dessa declaração? Há índios sendo doutrinados por ONGs e pelo Cimi para que não se declarem brasileiros, porque sua nação é outra. Isso é verdade, estou me baseando em especialistas e em fontes militares que não têm nada a ver com o Planalto. A não declaração assegura aos povos indígenas a liberdade para decidir sua condição política, com direito a autogoverno e a fortalecimento de suas próprias instituições políticas, jurídicas, econômicas, sociais e culturais, e a participar plenamente, se desejarem, da vida política, econômica, social e cultural do Estado. Traz claramente outras entidades políticas para dentro de nosso território, diferentes das instituídas pela Constituição, além de deixar ao alvitre desses povos a manutenção ou não dos laços com o Estado brasileiro.

Entre outras pérolas contra a soberania nacional, essa declaração diz que os Estados assegurarão o reconhecimento e a proteção jurídica dessas terras, território e recursos, o que dá margem à intervenção de outros Estados que não o brasileiro, já que vários países participam da Amazônia. Ela reza que os povos indígenas têm direito a assistência financeira e técnica dos Estados por meio de cooperação internacional para que desfrutem dos direitos enunciados na declaração. Diz que os órgãos e organismos fiscalizados pelas Nações Unidas e outras organizações intergovernamentais contribuirão para a plena realização das disposições da declaração e que a ONU, incluindo o fórum permanente das questões indígenas e os organismos especializados, assim como os Estados, promoverá o respeito e a plena aplicação das disposições da declaração e zelará por sua eficácia, o que dá margem a todo tipo de intervenção externa, inclusive pela presença militar dos Estados que resolverem usar desse poder para assegurar tais direitos.

Qualquer iniciante em direito internacional sabe que três elementos caracterizam um Estado independente: povo, território e soberania. Essa declaração diz que os índios são um povo possuidor de territórios e dotado de autonomia política. Falta-lhes apenas a soberania. A autonomia, particularmente em bolsões étnicos como os que estão sendo criados, é meio caminho para a soberania, como aconteceu nos Bálcãs com a antiga província autônoma de Kosovo, após a intervenção da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] e da ONU com a missão de proteger a população de origem albanesa. A rigor, a declaração atribui tacitamente independência aos povos indígenas, ao dizer que eles têm direito a celebrar tratados, acordos e outros acertos com os Estados, ato próprio das pessoas jurídicas caracterizadas por povo, território e soberania.

Estados Unidos, Austrália e mais outros dois países não assinaram essa declaração, mas o Brasil sim. Desde então, corre o risco de ver as terras indígenas decretarem sua autodeterminação. Se isso ocorrer, o país se dividirá em ilhas e não podemos prever qual será a reação das grandes potências. É claro que isso não é para amanhã, não é para o ano, talvez não seja para o próximo presidente da República, mas talvez para 50 anos ou mais. Em Kosovo, na antiga Iugoslávia, a opção foi a intervenção militar. Os sérvios abandonaram a região, que aos poucos foi ocupada por albaneses, até que se deram as condições para a declaração unilateral de independência. Parece que não tardará muito para termos a ONU ou quaisquer outras organizações políticas intervindo nas áreas indígenas com a “nobre” finalidade de assegurar proteção às populações nesses bolsões étnicos criados sob o signo da Carta de 1988.

O papel do Congresso

No ordenamento jurídico brasileiro há uma grande lacuna, que é não reconhecer ao Congresso Nacional a prerrogativa de aprovar ou negar a demarcação de terras indígenas. Será que a Funai, um órgão de segundo escalão, pode ter esses poderes?

Especificamente sobre o papel do Congresso Nacional, a Constituição põe em relevo sua atribuição de dispor sobre todas as matérias que sejam da competência da União, destacando-se aqui o inciso que trata dos limites do território nacional – haja vista as terras indígenas na faixa de fronteira – e dos bens do domínio da União – haja vista as áreas indígenas se incluírem entre os bens da União. Eles têm o usufruto, mas a propriedade é da União.

Como é competência privativa da União legislar sobre populações indígenas (artigo 22, inciso 14, da Constituição Federal) e se a competência para legislar é do Poder Legislativo, é a este que cabe o estabelecimento das normas legais que alcancem essas populações, só tendo por limitação os mandamentos constitucionais, que ainda assim também poderão ser alterados pelo Congresso Nacional. Por outro lado, em um exercício de lógica jurídica, se constitucionalmente cabe ao Congresso Nacional decidir sobre a remoção de grupos indígenas (artigo 231, parágrafo 5º, da Constituição Federal), muito mais será da alçada do Congresso Nacional a demarcação das terras onde esses grupos se encontram, por ser um ato revestido de perpetuidade. O usufruto dos indígenas sobre essas terras é perpétuo.

Finalmente, como último argumento em favor de trazer para o Congresso Nacional os atos de homologação da demarcação das terras indígenas, ressalte-se que entre os 27 incisos do artigo 84 da Carta de 1988 não consta como sendo do presidente da República a competência para homologação da demarcação de terras indígenas. Isso foi estabelecido por um decreto de Fernando Collor. Essa atribuição ao presidente da República hoje é feita por lei, podendo ser mudada por outra lei.

Vamos ao concreto. O que podemos fazer? O projeto de lei número 4.791, de 2009, de autoria dos deputados federais Ibsen Pinheiro [PMDB/RS] e Aldo Rebelo [PCdoB/SP], tem por objeto o que acabamos de demonstrar, a submissão ao Congresso Nacional da demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, de modo que, no exercício de sua competência constitucional de fiscalização e controle da administração pública, possa homologar a demarcação, determinar diligências suplementares, realizar audiências, conhecer impugnações, alterar a área demarcada ou rejeitá-la no todo ou em parte. Determina o projeto ainda que as demarcações em faixa de fronteira exigirão previamente a manifestação do Conselho de Defesa Nacional. Os autores destacam a necessidade de “aprimorar a sistemática de demarcação de terras indígenas no Brasil, com base na experiência acumulada ao longo dos 20 anos de vigência da Constituição de 1988”.

Hoje a demarcação é feita pela Funai, cabendo ao Ministério da Justiça a elaboração do decreto e ao presidente da República a homologação. O Judiciário se diz incompetente para tratar das terras quando o proprietário alega que elas não são indígenas, não há uma instância negociadora. É também importante lembrar que a Constituição de 1988 aprovou dispositivo no artigo 231 que considera nulos e extintos atos que tinham por objeto o domínio e a posse das terras indígenas, gerando a extinção do direito a indenização ou a ações contra a União. É negado aos proprietários o direito de recorrer a qualquer juízo ou tribunal. Isso não é confisco? Essa exclusão de tutela do Judiciário está na raiz dos graves problemas das demarcações.

A par dos enormes prejuízos territoriais que as reservas indígenas trouxeram para Roraima, não são menores as ameaças futuras a que fica exposta a nação, principalmente na Amazônia. Em 2005, o senador Mozarildo Cavalcanti, de Roraima, denunciou a interferência de organizações europeias e da OEA [Organização dos Estados Americanos] para que a delimitação da reserva Raposa-Serra do Sol fosse em terras contínuas. Não nos esqueçamos de que em 1904 o Brasil perdeu para a Inglaterra, por laudo arbitral, a planície do Pirara, numa questão que teve por pano de fundo justamente a ocupação dessa área por tribos independentes, os macuxis, atraídos para ali pelos ingleses. O advogado do Brasil foi Joaquim Nabuco.

Não nos esqueçamos também do idealismo do marechal Rondon, ele próprio um índio e pioneiro da causa indígena, que pregava a integração e não a segregação. Hoje é imperioso que os ministérios da Defesa e da Justiça supervisionem rigorosamente, se já não o fazem, a atuação das ONGs, sobretudo as estrangeiras, e de outras entidades que conspiram contra os interesses nacionais particularmente na Amazônia, mostrando que o país está disposto a repelir de vez a contestação da soberania nacional e as ameaças a sua integridade territorial.

Debate

MOACYR VAZ GUIMARÃES – Vivemos no Brasil uma onda de modismos. Cito dois deles, a defesa do meio ambiente e os indígenas. Transformaram-se em pastos de demagogia. É muito popular dizer que é preciso defender o meio ambiente, sem saber em que medida e em que proporção, e essa defesa pode se transformar até em ataque. É igualmente bonito e popular arvorar-se em defensor dos índios, sem meditar nas consequências que esse modismo poderá trazer. Em face do que foi exposto, pergunto se as ressalvas aprovadas pelo STF e o projeto de lei citado seriam suficientes para evitar que se chegue a uma soberania de nações indígenas.

MAGALHÃES – É uma pergunta oportuna, mas de difícil resposta. O que o tribunal fez foi tentar cobrir esse vazio de proteção mínima. O Supremo tentou expungir as aberrações. O projeto de Ibsen Pinheiro e Aldo Rebelo permite que daqui para a frente se assegure o controle ao Poder Legislativo. Mas tenho apreensão em relação à aprovação desse projeto, em primeiro lugar por causa da esquerda, que de modo geral, pelo menos 80%, fecha com os índios. Tenho receio também por causa do que a Igreja Católica faz na Amazônia, sobretudo através do Cimi. Mais nocivos do que o Cimi só os que estão comprando as terras. Existe no Congresso uma bancada católica militante.

OZIRES SILVA – Sinceramente, não esperava que o Brasil pudesse viver, não somente nessa questão, mas em todas as demais, um esgarçamento da ordem jurídica. Isso está generalizado. E o que causa espanto é a permissividade das lideranças e dos formadores de opinião. Diante disso, o que podemos fazer? Tive a oportunidade de participar, em 1989, de uma reunião na China para discutir o plano de desenvolvimento daquele país. Lembro-me da expressão do presidente chinês, Deng Xiaoping, que afirmou: “O gato pode ser preto, pode ser branco, não interessa, o que importa é que pegue o rato”. Ele queria dizer com isso que podemos discutir à vontade a cor do gato, mas não esquecer nunca de que precisamos mudar a situação. O Brasil tradicional e culturalmente é um país de diagnósticos e em geral as discussões não passam disso. Precisamos é de ações pragmáticas, não basta conhecer o problema.
A questão mais geral é restaurar o prestígio da Casa legislativa, fazer com que os poderes constituídos funcionem. Não é mais possível no mundo moderno trabalhar sem previsibilidade. E esta passa por uma ordem jurídica constituída e obedecida, com instituições que garantam a cada cidadão ter sucesso na sociedade.

MAGALHÃES – O que o conselheiro Ozires verbalizou é o que todo brasileiro quer, mas é muito difícil. A revista “Veja” publicou recentemente um artigo sobre corrupção, dizendo que o problema é que antigamente havia corruptos, mas o mais grave agora é que eles estão assumindo posições estratégicas. Isso é uma coisa extremamente preocupante, porque o país vai perdendo a seriedade. Essa coisa de o presidente Lula, com sua enorme popularidade, colocar a mão sobre todo aquele que está sob suspeição e respondendo a processo está dando ao povo, a seu grande eleitorado, a ideia de que a corrupção não existe ou, se existe, não tem importância. É uma situação muito difícil, não há massa crítica, os movimentos sociais estão na mão do governo.

OZIRES – Volto a insistir que temos de cuidar da questão central. Não vamos levantar o país seguindo por essa estrada. Precisamos mudar.

ROBERT APPY – Pergunto-me o que vai ser do Brasil se temos de dar terra a todos os que reclamam, quer sejam pretos ou índios. Como jornalista especializado em economia, sei quanto esse culto aos índios já custou ao país. Quantas vezes eles impediram os vagões da Vale de chegar a tempo no porto, para exportação do minério? Sobre a questão política, penso que o STF herdou o poder que existia no império, o Poder Moderador. Quanto à popularidade de Lula, deveríamos lembrar que Garrastazu Médici foi mais popular. A aprovação a Lula não me impressiona, é fácil ter popularidade com a demagogia que faz. Quanto à ação dos grupos católicos, fomos nós, por falta de uma política inteligente e assistencial, que criamos esse problema. Eles preencheram o vácuo.

MAGALHÃES – Nós tratamos os índios muito melhor do que os Estados Unidos, que dizimaram quase todos, e a Austrália também. Em matéria de redução das florestas primárias, a Europa é campeã, mais de 80% desapareceram, e agora querem que sejamos os pulmões que destruíram há muito tempo.

JOSEF BARAT – Sei que o assunto é muito delicado, porque envolve paixões, um lado emocional. Mas a verdade é que o mundo está diante de uma questão ambiental de grande amplitude e poucos estadistas estão envolvidos nesse debate. Ele está surgindo mais como uma demanda de cientistas, de pessoas preocupadas. O Brasil poderia ter uma política ambiental responsável e com isso se colocar diante do mundo de uma maneira muito séria e até muito competitiva. Outra questão em que poderíamos nos situar numa posição de vanguarda é a convivência étnica, religiosa etc. No entanto, estamos na contramão nos dois casos, e a questão indígena envolve ambos. A visão das políticas governamentais é predatória mesmo. Pavimentar uma estrada como a de Manaus-Porto Velho é uma loucura, pela destruição do meio ambiente. Então a questão tem de ser colocada de uma maneira muito consistente, senão vamos ficar eternamente nessa discussão de que o Brasil está sendo vítima da cobiça internacional etc.
Outro lado da questão é a maluquice da política de cotas. Justamente onde o Brasil tem uma posição de vanguarda perante o mundo é que estamos andando para trás, como estamos regredindo também na questão ambiental. Nesse embate vamos enfrentar a resistência não só da esquerda, que é primitiva, mas também das elites econômicas, que têm igualmente uma visão predatória. Como é que se resolve isso no futuro?

MAGALHÃES – Vou contar uma história que ocorreu comigo há muitos anos. Conheci o jornalista Câmara Cascudo, que esteve na África cobrindo a guerra civil de Angola. Voltando de lá, ele me convidou para um jantar com um major do exército português que atuava naquele país. A certa altura o militar disse: “Os senhores se preparem para enfrentar um problema grave no Brasil. Vai se iniciar aqui um movimento contra o racismo”. Fiz ver a ele que se existe no mundo uma democracia racial, ainda que mambembe, é o Brasil, porque no final somos todos mesclados. Ele disse: “O senhor está enganado, esse movimento não tem nada a ver com o negro, mas com os índios”. Não se passou um ano e a questão se levantou e não parou mais. Isso surgiu de fora para dentro. Houve foi uma campanha geral, porque esse homem não ia adivinhar isso. Em matéria de marketing político e de estratégia, a esquerda é mestre. Perdi a reeleição para prefeito do Recife enfrentando uma estratégia elaborada, inteiramente gramsciana. Saíram conquistando tudo, imprensa e tudo o mais – o que, de resto, Lula está fazendo sem ter lido Gramsci. Dominou toda a sociedade civil e agora vai conquistar os militares, com a compra de armas.

ÁLVARO MORTARI – Hoje não se fala mais em segurança nacional. O que aconteceu com ela?

NEY PRADO – Um aparte. Quando da elaboração do projeto Afonso Arinos, estigmatizaram a expressão “segurança nacional”. Hélio Jaguaribe dizia: “Se não podemos punir objetivamente os militares, vamos puni-los pelo menos semanticamente”. É por isso que a segurança nacional saiu de nosso linguajar.

MORTARI – Sinto que o Brasil está entrando numa fase sindicalista. Vejo também que os próprios empresários não são contra Lula. Recebem financiamento do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], do Banco do Brasil, dos estados. Então não vejo nenhum interesse da sociedade em mudar, pois o empresariado e o povo estão satisfeitos. Nós também somos culpados, pois ficamos discutindo quais seriam as medidas a tomar, mas não enfrentamos a situação, como faz a CUT [Central Única dos Trabalhadores] com suas greves. Ficamos só na parte teórica. Com relação aos índios, se Lula tem 75% de aprovação, por que haveria interesse em mudar a situação deles? O empresário no Brasil é considerado o explorador, o aproveitador. E Lula é o porta-voz da classe miserável, de pobres. Penso que devemos nos unir, mas para enfrentar, não para ficar na teoria, fazendo estudos e palestras.

MAGALHÃES – Sua fala confirma duas de minhas teses. A primeira: quero que de repente se mude a política errada da segregação do índio. Por enquanto, quero preservar a soberania nacional e garantir que essa segregação não traga no futuro a possibilidade de que partes do território nacional se transformem, como Kosovo, em nações independentes. A segunda: não temos massa crítica, não temos como mobilizar ninguém. Por isso falei em Gramsci, a revolução pela conquista da sociedade. Isso teve início já no tempo da ditadura militar, quando começaram a tomar conta das principais estatais, da Igreja, das universidades. Nas universidades se deram ao luxo de influir na escolha dos professores, para poder colocar na cabeça dos alunos a história como acreditam que deve ser contada e formar juízo contra o establishment. E finalmente nas redações dos jornais, com exceção de “O Estado de S. Paulo”, “Folha de S. Paulo”, “O Globo”. Se bem que “O Globo” abriu a televisão, pois Roberto Marinho deve ter pensado: ou aceito os comunistas ou não faço televisão.

EDUARDO SILVA – Falamos muito das terras dos índios, mas pouco dos indígenas. Nossa tarefa é também saber o que vamos fazer junto com eles. Penso que o índio quer se aproximar, já aprendeu a falar português e daqui a pouco estará falando inglês ou qualquer outra língua.

MAGALHÃES – No episódio da Raposa-Serra do Sol ficou muito claro que havia dois grupos, um deles de indígenas que não queriam a demarcação, porque trabalhavam no plantio de arroz. Mas quem dominava a maioria era o Cimi, da Igreja Católica. Por isso prevaleceu a ideia de terra contínua.

LUIZ GORNSTEIN – As ONGs atuam devido à ausência ou omissão do Estado. Como explicar para o povo que o Estado é inchado e não funciona?

MAGALHÃES – As ONGs não trabalham nas áreas abandonadas pelo Estado, não. Foi o Estado que lhes deu status. Por exemplo, no governo Fernando Henrique elas foram regiamente tratadas e atualmente estão vivendo um momento dourado, sem fiscalização.

GORNSTEIN – Usam dinheiro público, não é?

MAGALHÃES – Algumas recebem ajuda também do exterior, sobretudo da Alemanha, França e Inglaterra. Os ingleses interferem muito na Amazônia. Qualquer CPI sobre ONGs o governo impede que prossiga, Lula interfere diretamente, assim como agiu na questão das centrais sindicais, para não serem fiscalizadas. A ONG é um ícone da esquerda brasileira. Há aquelas que são meritórias, mas a maioria é meio de vida de todo tipo de gente.

SAMUEL PFROMM NETTO – Estou regressando de uma viagem a Portugal. É bem sabido que se deu nesse país, na Idade Média, um dos mais notáveis processos de integração de celtas, suevos, árabes e outros à população e aos usos e costumes da gente do antigo condado portucalense. A população de hoje em Portugal é composta de descendentes não só de Viriato, mas de uma imensa mescla de inúmeros povos. É um ótimo exemplo de que o melhor caminho, tanto no passado distante como hoje em dia, não é o acirramento de disputas, não é a segregação, o cultivo do ódio e da divisão, a criação de reservas de terras, de guetos, mas um esforço, bem conduzido, orientado e inegavelmente árduo, para trazer nossos indígenas ao convívio efetivo e civilizado de toda a gente brasileira – com medidas eficazes e generosas de escolarização, no âmbito da justiça, da saúde, da preparação para o trabalho. Parece-me que se perde de vista que nossos índios são fundamentalmente cidadãos brasileiros. E grande parte de nosso povo é de origem indígena, são os caipiras mesclados ou não a povos como os europeus e os africanos. Grande parte, portanto, desse nosso povo é essa maravilhosa mescla que temos aqui. A impressão penosa é que os indígenas estão sendo tratados não como tais, mas como alienígenas, como se brasileiros não fossem.

MAGALHÃES – Eles estão sendo trabalhados há muito tempo para não dizer que são brasileiros, porque têm nação própria. A segregação interessa a quem pensa em criar adiante nações independentes. Esse trabalho vem de longe. Quanto à miscigenação, no sul há menos, mas no nordeste... Aliás, Getúlio dizia: “No Brasil, a monarquia, quando não vem da cozinha, vem do mato”.

NEY FIGUEIREDO – Quando vemos que a situação está ruim, alguém pensa em melhora? Não, achamos que vai piorar. Lula não está jogando suas fichas nesta eleição presidencial, mas na do Congresso e dos governos estaduais. Ele está com a máquina na mão, com o Estado aparelhado e, com o Congresso sob controle, seja eleito quem for para a presidência, terá um poder muito grande, por sua liderança carismática.

NEY PRADO – Inclua o STF aí.

FIGUEIREDO – Sim, já conquistou também o Supremo. Quando terminar o mandato, terá nomeado todos os ministros, coisa que nenhum presidente conseguiu. Colaborei com Fernando Henrique e nunca vi uma coisa tão triste como o fim de segundo mandato de presidente da República. Ninguém respeita mais, começa a nascer grama no tapete. Nunca vi um presidente em segundo mandato ter a força, o prestígio e a preferência popular que Lula tem. Vai enfrentar a próxima eleição com o poder de fazer o Congresso e o que quiser. O presidente eleito terá de negociar.

ZEVI GHIVELDER – Em 1983, a TV Manchete lançou a série “Xingu”, feita por Washington Novaes. Lembro-me de que tiveram de pagar pedágio aos índios para poder penetrar em seu território para fazer a matéria jornalística. Começaram por doar um trator e depois, a cada passo, eles tinham de pagar. Não há hoje uma equipe de televisão que vá gravar imagens em território indígena que não tenha de pagar aos índios das mais diversas formas, em dinheiro ou em equipamentos. Eles se tornaram senhores absolutos e têm leis próprias que nós, não índios, temos de obedecer quando estamos lá.

 

 

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