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Estratégias para a verdadeira inclusão

Empresas investem em programas de capacitação para poder cumprir a lei

CEZAR MARTINS


Formandos em curso de preparação profissional
Foto: Divulgação

João Ribas, de 54 anos, formou-se na faculdade de ciências sociais e por 15 anos foi um professor comum, como todos os outros que lecionavam na Pontifícia Universidade Católica, em São Paulo. A única diferença é que, desde que nasceu, nunca andou e sempre se locomoveu numa cadeira de rodas. “Diferentemente do que muitos pensam, a cadeira não é uma prisão. Ela é a minha liberdade”, afirma o professor, que repudia a segregação dos deficientes e, há nove anos, é um dos responsáveis por ajudar cegos, surdos e outros cadeirantes a entrar no mercado de trabalho e ser tão valorizados quanto os colegas sem limitações físicas.

Chamado pela Serasa, consultoria que oferece produtos e serviços para análise de crédito principalmente a empresas do comércio, o antigo acadêmico assumiu em 2001 o cargo de coordenador do então pioneiro Programa de Empregabilidade, desenvolvido pela companhia para qualificar os novos funcionários com deficiência contratados por causa da Lei de Cotas. Promulgada em 1991, a lei nº 8.213 determina que todas as empresas com mais de cem funcionários reservem uma parcela das vagas para a contratação de deficientes físicos. A cota é de 2% para as que empregam até 200 pessoas, 3% para aquelas com até 500, 4% para as que têm até mil funcionários e 5% acima disso. Quem não cumprir essa imposição fica sujeito a multas que podem variar de R$ 1.195,13 a R$ 119.512,33, aplicadas pelo Ministério do Trabalho. Embora já exista há quase 20 anos, a legislação costumava ser ignorada até 1999, ano em que o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou o decreto 3.298, normatizando a fiscalização e a autuação dos infratores. “Pelos dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), de 2005 a 2007 o total de pessoas com deficiência ou reabilitadas empregadas cresceu mais de 70%. Apesar dos indicadores positivos, o número de contratações ainda é reduzido”, diz o diretor do Departamento de Fiscalização do Trabalho, Leonardo Soares de Oliveira.

Obrigados a preencher as vagas, os responsáveis pelos departamentos de recursos humanos de empresas de todas as regiões do país depararam-se com um problema: a reduzida qualificação educacional e profissional de candidatos que, na maioria dos casos, haviam deixado de frequentar a escola por causa das dificuldades de locomoção e acesso e do preconceito. É bem verdade que a baixa escolaridade atinge o grosso da sociedade brasileira, já que apenas cerca de 10% do total conclui o ensino superior. No entanto, tendo em vista que 14,5% da população tem algum tipo de deficiência física e a maioria faz parte das camadas mais pobres – onde a exposição à violência, a acidentes de trânsito e a lesões causadas por armas de fogo é maior –, a importância da questão aumenta ainda mais.

No começo, apesar de ser clara a boa intenção da lei, surgiram reclamações e contestações, e muitos empresários demonstraram sua insatisfação por ter de contratar funcionários que dificilmente alcançariam os resultados esperados. Aos poucos, o preconceito foi cedendo lugar a iniciativas de aperfeiçoamento da mão de obra, com cursos de capacitação e reciclagem voltados para deficientes. “Naquela época, poucas empresas sabiam da obrigatoriedade de ter uma parte do quadro de funcionários composta por pessoas com deficiência. A Serasa, após receber uma carta do Ministério do Trabalho cobrando o cumprimento da lei, decidiu ir além e propiciar meios para que esses empregados desempenhassem suas funções como os demais”, comenta Ribas. A iniciativa ficou mais conhecida por ser uma das pioneiras no país, embora atualmente existam experiências semelhantes em variados setores. Bancos, indústrias, empresas de telemarketing são apenas alguns exemplos de organizações que passaram a considerar a capacitação voluntária uma ferramenta útil na administração.

O resultado desse esforço, no entanto, ainda é pequeno. Segundo cálculos do governo federal, existem aproximadamente 320 mil vagas no mercado formal de trabalho para portadores de deficiências físicas, mas pouco mais de 1% delas estão preenchidas. A maioria das empresas pequenas e médias, embora também estejam obrigadas a respeitar as cotas, não cumprem a lei. Há ainda organizações de grande porte que não preenchem toda a sua cota e apontam a baixa qualificação como responsável por esse fato. Especialistas alegam que essa justificativa tem sido utilizada para mascarar a negligência de corporações em que continua a predominar a visão deturpada de que a contratação de deficientes representa um entrave aos negócios. As condições para empregar a parte da população que se enquadra na lei exigem investimentos em equipamentos e softwares especiais, reformas de instalações, para garantir a acessibilidade e a locomoção, além de um grande esforço de mudança cultural. “A lei funcionou como um pontapé inicial para a inclusão dos deficientes, e muitas empresas querem apenas cumprir a cota no primeiro momento. A inclusão, porém, deve ser feita com qualidade, porque a capacitação traz bons resultados para a própria companhia. Ter um funcionário desmotivado perturba todo o ambiente e tem impacto nos lucros”, diz Daiane de Paula, supervisora do Programa Inclusão Eficiente da Secretaria do Trabalho do município de São Paulo.

Efeito multiplicador

O curso do qual Ribas é coordenador começou com uma turma de 12 alunos formada a cada ano. Em 2009 deu um salto, depois que outras empresas e a Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência, do governo estadual de São Paulo, uniram-se ao projeto, viabilizando a formação de 50 profissionais por semestre. Organizações conhecidas e importantes no cenário brasileiro, como Accor, Banco Itaú, Medial Saúde, PriceWaterhouseCoopers e Visanet são algumas das que se comprometeram a contratar os portadores de deficiência capacitados pela Serasa. O programa inclui 415 horas de treinamento, com dois módulos que abrangem temas que vão de equilíbrio emocional, raciocínio analítico e negociação até aulas de informática, português, contabilidade e matemática financeira. “Vejo que o medo, a insegurança e o constrangimento ainda são problemas maiores do que a baixa qualificação”, ressalta Ribas.

Buscar parcerias e a ajuda de especialistas parece mesmo ser a melhor e a mais barata estratégia para que as empresas consigam cumprir a meta prevista na lei com a qualidade desejada. A Whirlpool, uma das maiores fabricantes de eletrodomésticos do Brasil, conseguiu fazer com que 5,1% de seu quadro de funcionários seja constituído por deficientes físicos, graças a um curso de aperfeiçoamento desenvolvido em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) de São Paulo. Depois de o processo seletivo ter sido concluído, os aprovados ficaram seis meses nas salas de aula para entender suas funções, a história da empresa e de que forma poderiam crescer na estrutura organizacional da companhia. Antes da inserção dos alunos no ambiente profissional, os gestores dos diferentes departamentos também passaram por uma reciclagem para evitar que tratassem os deficientes de maneira diferenciada dos demais funcionários.

Outra experiência de destaque foi concluída no ano passado, quando a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) diplomou a primeira turma de seu Programa de Capacitação Profissional e Inclusão de Pessoas com Deficiência no Setor Bancário. Uma pesquisa realizada pelo órgão em 2006 detectou que quase 80% dos deficientes no Brasil têm menos de oito anos de estudo, o que dificultava às instituições financeiras a tarefa de adequar-se à legislação. Em fevereiro de 2009, 497 alunos iniciaram as aulas já com carteira assinada, salário de R$ 616,40 para uma jornada de quatro horas diárias, mais os benefícios previstos no acordo coletivo dos bancários. Os que não tinham o ensino médio foram encaminhados a um curso supletivo, antes de participar de um programa de três meses de qualificação técnica com término previsto para junho deste ano. Outros 350 terminaram a capacitação no mês de outubro e agora estão aptos a ser contratados pelos bancos que ainda não completaram sua cota. O Santander, por exemplo, até 2003 tinha apenas 1% de seu quadro de funcionários preenchido por portadores de limitações físicas. Hoje já são 4,4% e, segundo Maria Cristina Carvalho, superintendente de Recursos Humanos, “a meta é superar a cota exigida pela lei”.

A prefeitura de São Paulo foi uma das parceiras na preparação do curso da Febraban, por meio do Programa Inclusão Eficiente. Procurada por várias empresas preocupadas com a ameaça de ser multadas, a administração municipal percebeu a necessidade de montar uma estrutura diferenciada, que pudesse atender a demanda crescente. Hoje, o programa conta com cinco postos de atendimento especializados, que oferecem parte da capacitação desejada pelos empregadores, e um banco de dados com 12 mil candidatos portadores de deficiência – os interessados podem se inscrever no site www.prefeitura.sp.gov.br/eficiente. “As empresas nos passam as vagas disponíveis e fazemos uma seleção antes de encaminhar os candidatos. Eles recebem orientações sobre como proceder nas entrevistas e também têm aulas de capacitação”, explica a supervisora Daiane de Paula.

A qualificação dos deficientes físicos é a primeira etapa para a inclusão efetiva desses profissionais no mercado de trabalho. A segunda, e talvez mais difícil, é a mudança de mentalidade do empresariado brasileiro. “Todo funcionário, quando é contratado, passa por um período de avaliação e capacitação, como as semanas de integração. A empresa também compra computadores e programas para que ele possa desempenhar seu trabalho. O problema é que, quando o empresário precisa comprar um software para o deficiente visual usar o computador, considera aquilo como gasto e não investimento”, comenta Tânia Jung, que atua na Fundação Dorina Nowill, instituição voltada para a inclusão social de cegos. “No caso das pessoas com deficiência o incentivo não pode ser diferente.”

Cultura

Na opinião dos especialistas, a partir do momento em que uma organização passa a empregar pessoas com deficiência, é preciso que os outros funcionários também sejam treinados para que a aceitação dos companheiros ocorra sem problemas. “As dificuldades já começam no próprio processo seletivo. O profissional de RH que faz a entrevista tem vergonha ou receio de perguntar a um deficiente se ele consegue ir ao banheiro sozinho. Ora, se a pessoa não consegue se levantar da cadeira e usar o vaso sanitário sem a ajuda de alguém, a empresa não vai contratar um profissional, mas um pepino para resolver. Isso tem de ser questionado ao candidato com naturalidade”, afirma Ribas.

Outra dificuldade bastante comum diz respeito aos surdos, que aprendem a se comunicar em Libras, a Língua Brasileira de Sinais. Não são raros os casos de superiores que não conseguem entender o que um subordinado escreveu em um bilhete ou carta, simplesmente porque o funcionário tem dificuldade em se expressar na língua portuguesa. “É como se um americano, alfabetizado desde pequeno somente em inglês, tentasse escrever de uma hora para outra em português. Não é que o deficiente auditivo não saiba escrever, ele apenas foi educado em uma língua diferente. Então ocorre uma falha de comunicação que, se não for corrigida pela empresa, poderá atrapalhar o trabalho”, continua o especialista da Serasa. Em outubro de 2009, na Câmara dos Vereadores de São Paulo, foi realizado o 1º Simpósio de Inclusão e Empregabilidade de Pessoas Surdas. Uma das palestrantes foi Mônica Amoroso, diretora da Escola Municipal de Educação Especial Helen Keller, que atesta a dificuldade de integração dos deficientes no mercado de trabalho: “Quando você não conhece os surdos, a sua cultura, há uma barreira grande. Emprego existe, o que falta é gente capacitada. Precisamos qualificar nossos alunos”.

A acessibilidade é um dos aspectos fundamentais para o bom desempenho dos funcionários. Ao empregar deficientes físicos que utilizam cadeiras de rodas, por exemplo, a empresa deve checar se os corredores são largos o suficiente para permitir a passagem, se há rampas de acesso junto a escadas, além de adaptar banheiros e bebedouros. Esse investimento é a única maneira de garantir que o emprego de profissionais com deficiência ocorrerá da maneira correta, com dignidade e rentabilidade. Outra questão diz respeito ao real aproveitamento das capacidades do funcionário: “Muitas empresas oferecem vagas para funções não dignas da qualificação do profissional, apenas para escapar da multa”, opina Mônica Villa, diretora do Instituto Talentos Especiais, consultoria que auxilia as empresas no processo de conscientização e inclusão dos deficientes.

Uma das maneiras de evitar situações constrangedoras ou desconfortáveis, destaca a consultora, é descobrir quando é possível obter benefícios com a própria deficiência do candidato. Cadeirantes podem ser empregados em setores que exigem do profissional muito tempo sentado, como em departamentos de informática e monitoramento de câmeras. Já deficientes auditivos podem ser alocados em áreas com grande ruído e que requeiram concentração elevada, como linhas de produção de fábricas. Porém, em primeiro lugar, a análise do profissional deve passar por sua qualificação técnica e capacidade produtiva, independentemente do tipo de deficiência que tenha.

Um dos alunos formados no curso da Serasa é o advogado Marcos Rodrigues, de 28 anos. Empregado desde 2002, ano em que terminou o curso de direito, o rapaz utiliza um programa especial, chamado Virtual Vision, para ler e escrever no computador. Alfabetizado em braile numa escola estadual comum que tinha professores especiais, encara sua rotina profissional com grande naturalidade. “Nunca senti preconceito, mas tinha dúvidas sobre como seria minha carreira. Inscrevi-me pelo site e fiz um curso de um mês. Sempre tive claro para mim que queria ser advogado e consegui. Estou sempre à procura de coisas diferentes e desafiadoras.”

Obviamente, nem todos os profissionais contratados por causa da Lei de Cotas têm a mesma postura de Marcos, o que também contribui para aumentar a dificuldade do cumprimento das metas. Quando um portador de deficiência tem um comportamento profissional inadequado, apresentando faltas em demasia e descumprimento de horários, é comum uma empresa com pouca experiência e sem a assessoria de especialistas mostrar receio em fazer outro processo seletivo para substituir o mau funcionário. “Também temos de levar em conta a lógica do empresário, da organização, que tem o lucro como objetivo final. Se uma pessoa com deficiência não cumpre suas obrigações, o tratamento deve ser igual ao que é dado aos demais. Se for o caso, demite-se o funcionário e contrata-se um novo. O problema é que, muitas vezes, em vez de chamar um portador de deficiência, a empresa resolve preencher a vaga com outro tipo de candidato, porque já está mais acostumada”, afirma Ribas.

O fato é que, embora a Lei de Cotas e depois o aumento da fiscalização tenham criado um ambiente favorável à inclusão de deficientes físicos, os resultados alcançados nas quase duas décadas desde o surgimento dessa legislação estão ainda abaixo do esperado. O desafio é tornar cada vez mais efetivo o envolvimento tanto do setor público, responsável por garantir qualificação e educação adequadas, quanto da iniciativa privada, que não pode se furtar à responsabilidade de preparar seus funcionários para um ambiente de alta competitividade e pressão.

 

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