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Clandestinidade: como sair dela

Apesar da anistia, restrições legais dificultam regularização de estrangeiros

ANDRÉ CAMPOS


Atendimento no Centro Pastoral, em São Paulo
Foto: André Campos

Em julho de 2009, após anos de reivindicações e espera, entrou em vigor a Lei da Anistia Migratória. Por meio dela, o governo federal autorizou a regularização dos estrangeiros indocumentados que entraram no Brasil até 1º de fevereiro do ano passado. Embora faça restrições – por exemplo, àqueles que tivessem antecedentes criminais –, o dispositivo não previu multa ou sanções às pessoas que buscassem as autoridades para assim obter o documento de identidade, que torna legal sua permanência no país durante dois anos.

Com toda a pompa e circunstância, Luiz Inácio Lula da Silva vestiu um casaco típico dos indígenas bolivianos na cerimônia em que sancionou a medida. “Defendemos que a questão da migração irregular tem aspectos humanitários e não pode ser confundida com criminalidade”, discursou o presidente. Romeu Tuma Júnior, secretário nacional de Justiça, disse, por sua vez, esperar que a iniciativa gere reciprocidade. “Os países estão criminalizando, e o Brasil, humanizando”, comparou.

Até o fechamento desta reportagem, ainda não havia sido divulgado o total de agraciados pela anistia, cujo prazo para solicitação terminou em dezembro. Segundo projeções iniciais do Ministério da Justiça, em torno de 50 mil pessoas poderiam ser beneficiadas – outras fontes, no entanto, estimavam na época em até 200 mil o número de estrangeiros irregulares. São indivíduos oriundos de diversas regiões do planeta, como África, Ásia e, principalmente, América Latina, que buscam melhores condições de vida e trabalho, mas também há casos distintos, como o daqueles que fogem de conflitos em outros países (ver a reportagem “Longe da Pátria”, PB nº 385).

A anistia do ano passado não foi a primeira realizada pelo Brasil – em 1981, 1988 e 1998 também foram implementadas políticas do gênero. Na década atual, o Acordo Bilateral Brasil-Bolívia, firmado em 2005, é outro exemplo de medida que visa regularizar imigrantes. A mais recente ação nesse campo é o Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul, Bolívia e Chile, promulgado em outubro de 2009, que torna possível, entre esses seis países, a concessão de visto de dois anos a qualquer um dos nacionais que, estando em seu país de origem, deseje estabelecer-se no território de outra parte.

Com tantas iniciativas sazonais para tirar estrangeiros da clandestinidade, por que os imigrantes indocumentados ainda são uma realidade no Brasil? Falta de divulgação de anistias e acordos, burocracia para acessar tais benefícios e novas levas migratórias ajudam a explicar o fenômeno. Há, no entanto, outras razões mais profundas. É preciso levar em conta que esses regulamentos em geral oferecem uma legalização com os dias contados – vistos temporários cuja conversão no tão sonhado documento permanente, pela lei, só ocorre mediante comprovação de profissão ou emprego lícito. Algo distante de uma grande massa de imigrantes que ganham a vida em atividades associadas ao mercado informal, como o comércio ambulante e as pequenas confecções.

“Clandestino e informal são duas categorias que andam juntas”, explica o padre Mário Geremia, do Centro Pastoral do Migrante (CPM) em São Paulo. A informalidade empurra estrangeiros de volta à situação de indocumentados, que, por sua vez, veta o acesso ao mercado formal – círculo vicioso que provoca desânimo entre eles quanto aos reais benefícios da regularização. “A verdade é que acordos e anistias são paliativos”, analisa o padre. Para piorar, o binômio informalidade/clandestinidade mantém na sombra violações de direitos humanos, uma vez que muitos temem ser deportados caso denunciem trabalho degradante e escravo ou mesmo o tráfico de pessoas.

Levando em conta essa conjuntura, tornam-se cada vez mais urgentes ações amplas para integrar os imigrantes à vida nacional – voltadas não apenas à regularização da presença, mas também do trabalho. Trata-se de uma tarefa complexa, que esbarra inclusive em restrições à vida civil impostas aos estrangeiros pela legislação brasileira. Além disso, como se verá adiante, persistem dificuldades para que essas pessoas acessem direitos já garantidos pela Constituição federal. São situações que demonstram como, apesar dos discursos elogiosos à política imigratória do país, ainda há muito a fazer para garantir um tratamento verdadeiramente digno.

Oficinas dos “patrícios”

O setor de confecção é o ganha-pão de grande parte dos imigrantes que entram ilegalmente no país. Notadamente na capital paulista operam diversas das pequenas oficinas que empregam bolivianos, paraguaios, peruanos e asiáticos, entre outros. São locais frequentemente improvisados, onde residência, refeitório e ambiente de costura confundem-se num só recinto, em geral comandado por um “patrício” já há mais tempo em terras brasileiras.

Invisíveis aos olhos do Estado, tais oficinas são fornecedoras terceirizadas – quando não quarteirizadas – de confecções donas de marcas próprias. Além de informais, apresentam problemas de segurança, higiene e trabalho excessivo, num arranjo em que os costureiros recebem por peça produzida. Em casos mais graves, há inclusive restrição à liberdade dos trabalhadores. Um exemplo típico é a coação para que fiquem presos ao serviço até pagar supostas dívidas da viagem ao Brasil, financiada pelo “oficinista” – como é chamado o dono desses pequenos empreendimentos.

“Não é mais possível continuarmos com esse sistema de pagamento por produção e trabalho das 7 da manhã às 10 da noite”, afirma Renato Bignami, auditor fiscal da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do estado de São Paulo (SRTE/SP). Em julho de 2009, o órgão lançou, juntamente com outras entidades, o Pacto Municipal Tripartite contra a Fraude e a Precarização, e pelo Trabalho e Emprego Decentes em São Paulo. Através de negociações com outros elos da cadeia produtiva, a articulação quer criar um ambiente propício para que as pequenas oficinas saiam da informalidade – proporcionando aos trabalhadores, dessa forma, o emprego lícito que abre as portas para o visto permanente.

A Associação Brasileira de Coreanos, uma das entidades signatárias do pacto – os coreanos são donos de muitas das confecções maiores que repassam serviços aos oficinistas –, comprometeu-se a orientar seus empresários para que apenas se relacionem com empreendimentos legalmente constituídos. A Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio), por sua vez, buscará certificar empresas através do Selo Fecomercio de Qualidade – que objetiva promover a sustentabilidade e a inclusão social em cadeias de distribuição. Outras ações da articulação preveem a própria capacitação dos proprietários de oficinas para que regularizem seus negócios.

Devido aos custos tributários e trabalhistas, um dos principais obstáculos à formalização é a pequena margem de lucro comum a esses empreendimentos. Por conta disso, Bignami defende a união da categoria para negociar melhores preços com seus clientes – objetivo que esbarra na pulverização desse mercado e na falta de comunicação entre oficinistas de diferentes nacionalidades. “Se não houver uma organização que surja da base, o Estado não vai conseguir dar dignidade a esses trabalhadores”, diz ele. Os obstáculos para que isso ocorra, porém, não são apenas culturais e práticos. O próprio Estatuto do Estrangeiro – principal marco regulatório sobre a situação legal dessas pessoas – proíbe a participação de não nacionais em sindicatos ou associações profissionais.

Além disso, essa lei também veta ao imigrante titular de visto temporário “estabelecer-se com firma individual, ou exercer cargo ou função de administrador, gerente ou diretor de sociedade comercial ou civil”. Isso afeta, por exemplo, pessoas como o boliviano Carlos Aguilera (nome fictício), há sete anos no país. Beneficiado pelo Acordo Bilateral Brasil-Bolívia, ele diz que, ao tentar formalizar sua confecção – onde trabalham outros quatro estrangeiros – obteve uma negativa da Junta Comercial devido à proibição. Com isso, queixa-se inclusive de ter perdido clientes não mais interessados em manter relações informais. “Eu gostaria, um dia, de ter um trabalho próprio, vender as minhas roupas no comércio. Mas desse jeito não há como”, afirma. Segundo entidades ligadas aos imigrantes, o problema atinge diversos oficinistas – entre eles pessoas beneficiadas pela anistia.

Em julho de 2009, o Planalto enviou à Câmara dos Deputados uma proposta para substituir o atual Estatuto do Estrangeiro, aprovado em 1980, ainda durante a ditadura militar. Ela remove o veto à abertura de empresas pelo imigrante temporário e assegura direitos de associação e sindicalização mais amplos. “Quando da promulgação dessa lei, o foco era precipuamente a segurança nacional”, destacou o ministro da Justiça, Tarso Genro, em mensagem encaminhada ao Congresso com o projeto. “Essa realidade, nos dias atuais, encontra-se em descompasso com o fenômeno da globalização.”

Há também queixas quanto aos trâmites para estrangeiros que, estando em seu país de origem, firmam contratos para trabalhar em empresas no Brasil. “Cada visto demora no mínimo três meses, e é preciso pagar de US$ 1,5 mil a US$ 3 mil a um despachante, devido à complexidade da papelada exigida”, informa o deputado federal William Woo (PPS-SP). Autor do projeto de lei que deu origem à última anistia, ele também propõe, no Congresso Nacional, uma nova legislação que garanta às companhias que operam no país a concessão automática de vistos de trabalho a estrangeiros numa proporção de até 5% sobre o total de funcionários brasileiros.

No caso dos sul-americanos, o Conselho Nacional de Imigração (CNIg) – órgão coordenador e orientador das atividades de imigração no país – publicou uma norma em outubro de 2008 que reduz, durante dois anos, a burocracia para emitir vistos de trabalho. Além disso, ela torna a concessão automática, para esse grupo específico, quando há vínculo trabalhista com empresa estabelecida no Brasil – no procedimento padrão, a autorização é fruto de análise do Estado e tende a ocorrer apenas quando não há mão de obra equivalente no território nacional. “Eu acho isso fantástico, é uma abertura em prol dos estrangeiros”, avalia o advogado Grover Calderón, presidente da Associação Nacional de Estrangeiros e Imigrantes no Brasil (Aneib). Segundo ele, no entanto, falta ainda uma melhor divulgação desse benefício.

Obstáculos cotidianos

Para além da esfera trabalhista, outros aspectos burocráticos da vida dos imigrantes geram descontentamento. Segundo Calderón, a obtenção da segunda via do Registro Nacional de Estrangeiro (RNE) – documento equivalente ao RG dos nacionais – chega a demorar até oito meses. Lentidão semelhante enfrenta quem entra com pedido de residência permanente por ser casado com pessoa de nacionalidade brasileira ou ter filho natural do país – ambas as situações previstas em lei. “Espera-se até um ano e meio para receber o documento”, reclama. Durante esse período, diz ele, tudo o que o indivíduo possui é um protocolo, não aceito pela maioria das instituições públicas e privadas. “Consequentemente, ele não pode abrir uma conta corrente, tirar uma carteira de motorista e, às vezes, nem mesmo obter uma carteira de trabalho com facilidade.”

Também há obstáculos para que estrangeiros empreguem-se em órgãos estatais – direito já previsto na Constituição, que atesta serem acessíveis tanto a brasileiros quanto a estrangeiros os cargos e funções públicos. Apesar disso, editais de concursos permanecem exigindo nacionalidade brasileira, situação que, de acordo com Paulo Sérgio de Almeida, presidente do CNIg, ainda ocorre por falta de uma lei que regulamente esse dispositivo constitucional. “Atualmente, apenas universidades e centros de pesquisa públicos podem contratar estrangeiros, desde que sejam professores, cientistas ou exerçam ocupação correlata”, informa.

No momento, a Aneib é parte em um processo judicial contra o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) que pleiteia ao médico estrangeiro o direito de votar e ser votado nas eleições para representantes do colégio profissional – algo que já acontece, por exemplo, na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). As normas do CFM vetam tal participação, com base em trechos do Estatuto do Estrangeiro que proíbem aos imigrantes envolver-se em atividades de natureza política. Segundo o Cremesp, somente em São Paulo há cerca de 1,7 mil médicos naturais de outros países registrados na entidade.

O acesso ao ensino por parte dos filhos de imigrantes em situação irregular é outro ponto polêmico. Invocando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Secretaria Estadual de Educação paulista aprovou, em 1995, uma resolução que orienta as escolas da rede pública a aceitar a matrícula nesses casos – postura também seguida oficialmente pela rede municipal de ensino. Apesar dos avanços, porém, ainda há relatos de famílias que enfrentam dificuldades para matricular seus filhos – fato corroborado, em 2006, pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada na cidade de São Paulo para apurar violações de direitos humanos que envolvam imigrantes. As dificuldades certamente tendem a ser ainda piores em outras regiões. “Por aqui, muitas vezes a matrícula só ocorre quando há intermediação nossa com as autoridades”, afirma Rosa Maria Zanchin, coordenadora da Rede Solidária para Migrantes e Refugiados em Manaus.

Com o objetivo de reivindicar direitos e força política aos estrangeiros, o acesso ao voto é uma das bandeiras de lideranças dos imigrantes. De autoria do senador Alvaro Dias (PSDB-PR), tramita atualmente no Congresso uma proposta de emenda constitucional que faculta a participação daqueles domiciliados no Brasil em eleições municipais, tanto na qualidade de eleitores como de candidatos a vereador. Dispositivos similares já vigoram em países como Suécia, Irlanda e Holanda.

Em 2001, uma proposta semelhante de Alvaro Dias chegou a ser votada em primeiro turno no Senado. Teve 42 votos favoráveis e quatro contrários, mas foi rejeitada porque 28 parlamentares estavam ausentes na seção que a apreciou – seriam necessários três quintos dos votos em relação ao total de senadores para a aprovação. “Com quorum maior, provavelmente a iniciativa teria sido acolhida”, justifica o senador. Polêmica, a medida não é unanimidade nem mesmo entre políticos ligados aos imigrantes. “Quem quer escolher os governantes tem de adotar a pátria”, afirma William Woo, defendendo o voto apenas para os naturalizados brasileiros.

“Pouco se discutem os direitos dos estrangeiros, e falta interesse também”, argumenta Calderón, defendendo o direito ao voto. No entanto, ao mesmo tempo em que há imigrantes lutando para integrar-se à vida nacional, é certo que muitos estão no Brasil com mentalidade distinta: juntar dinheiro para, quanto antes, voltar à sua terra de origem. Segundo Sidnei Dornelas, pesquisador do Centro de Estudos Migratórios (CEM), isso ajuda a explicar a sazonalidade nas migrações, por exemplo, dos trabalhadores de confecções – onde, usualmente, opera-se a todo vapor quando se aproxima o Natal. “Há outras épocas do ano em que muitas pessoas vão embora”, ilustra.

Entre os que vêm pensando em voltar, diz Mário Geremia, há os que desejam permanecer na irregularidade devido aos custos de documentar-se e assumir encargos trabalhistas. “Eles não enxergam a questão mais ampla; a informalidade impede a ascensão social e mantém guetos”, pondera. Nesse contexto, garantir um ambiente propício à regularização é uma forma de legitimar a fiscalização daqueles que não buscam se enquadrar – mesmo porque, ao permanecer à margem da lei, tais pessoas colaboram com a concorrência desleal que mantém precárias as condições de trabalho de outros estrangeiros e brasileiros. “Não adianta os imigrantes só imporem seu esquema no Brasil. Eles têm de aceitar a regra do jogo”, afirma o padre.

 

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