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Os reis do asfalto, na hora da verdade

Transportadoras e caminhoneiros enfrentam pulverização do setor e sucateamento da frota

ALBERTO MAWAKDIYE


Foto: Henrique Pita

Preocupado com a precarização aparentemente sem fim do transporte rodoviário de cargas brasileiro – hoje, dos mais de 100 mil transportadores, apenas 46,3 mil são empresas formalmente constituídas, e a idade da frota já resvala a média de 20 anos, não sendo nada difícil ver nas estradas caminhões fabricados ainda na década de 1970 –, o governo federal resolveu finalmente entrar no jogo e estabelecer regras mais rígidas para esse segmento, que é responsável pela movimentação de cerca de 60% das cargas do país e por quase 90% do transporte de produtos de consumo.

Um amplo programa de recadastramento de empresas e de caminhoneiros (além de cooperativas) foi desenvolvido pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) durante todo o segundo semestre do ano passado, com o objetivo não só de separar o joio do trigo – detectando e futuramente tirando do mercado as firmas menos estruturadas e estimulando a formalização da maior quantidade possível de transportadores clandestinos – como também de rejuvenescer a frota.

Sem o recadastramento, as empresas e os autônomos não podem obter o chamado Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Carga (RNTRC), documento cujo porte será obrigatório para todos os motoristas daqui para a frente. A ANTT concedeu um prazo até 18 de dezembro último para regularização. Os transportadores que não dispuserem da RNTRC e forem flagrados pela fiscalização estarão sujeitos a multas pesadas (de até R$ 5 mil) ou mesmo à apreensão do veículo.

“Queremos não só moralizar o mercado como também distinguir quem é caminhoneiro de quem é transportador de carga”, explica o diretor-geral da ANTT, Bernardo Figueiredo. “Conhecendo melhor o setor, teremos ainda uma base para elaborar mais políticas de incentivo à renovação da frota. A informalidade predominante está dificultando o maior acesso às linhas de financiamento.”

As exigências para a obtenção da RNTRC foram duras – apesar de meio óbvias – e é evidente que milhares de transportadoras e de caminhoneiros não tiveram como cumpri-las. As empresas e cooperativas, além de demonstrar que têm como atividade principal o transporte de cargas e que contam com pelo menos um caminhão em seus ativos, foram obrigadas a provar capacidade financeira, idoneidade jurídica e que dispõem de um responsável técnico encarregado de zelar pela qualidade do serviço.

Já dos motoristas autônomos foram exigidas a carteira de habilitação e toda a documentação civil de praxe, afora a comprovação de três anos de experiência na função ou de que foram aprovados em algum curso específico (doravante, os que desejarem ingressar na categoria serão obrigados a participar de cursos oficiais de capacitação). Era obrigatória ainda a apresentação da guia de contribuição sindical e o motorista também deve ser proprietário, ou arrendatário, de pelo menos um caminhão.

O programa da ANTT não se resume, porém, às formalidades. O órgão pretende, com base nos registros, vigiar mais de perto a carga horária dos caminhoneiros, em geral desumana e tida como a principal razão da espantosa quantidade de acidentes que vitimam a categoria: eles respondem sozinhos por 15% dos óbitos nas estradas e por 7% dos casos de invalidez permanente. A lei diz que, a cada quatro horas na direção, o caminhoneiro deve ter um período de repouso, mas essa determinação não é cumprida por praticamente ninguém – por razões econômicas e também porque os postos de descanso são raros nas rodovias do país. É intenção da ANTT multiplicar esses postos o mais breve possível.

A boa notícia é que o recadastramento proposto pela ANTT foi bem recebido pela “parte saudável” dos transportadores, também fartos, como é compreensível, da situação quase que de caos em que mergulhou o segmento em que atuam. “O registro trará inúmeros benefícios para os caminhoneiros, principalmente a melhoria das condições de trabalho”, afirma Diumar Bueno, presidente da Federação Interestadual dos Caminhoneiros Autônomos (Fenacam). “Vamos passar a atuar sob uma legislação que protege melhor nossos interesses.”

As empresas transportadoras consolidadas ficaram igualmente satisfeitas. Isso porque, com a vigência obrigatória do RNTRC, elas deixarão de sofrer, ao menos em parte, o que chamam de “concorrência predatória” das transportadoras irregulares e dos caminhoneiros clandestinos, que está fazendo desabar ano após ano o preço médio dos fretes. De acordo com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), este equivalia em 2007 – quando a economia brasileira estava voltando a crescer, depois de anos seguidos de semiestagnação – a apenas 43% do cobrado nos Estados Unidos.

As transportadoras também esperam que com a maior formalização do mercado diminua a quantidade de roubos e desvios de cargas no país, uma prática antiga que vem crescendo a uma velocidade espantosa. No primeiro semestre do ano passado houve, somente no estado de São Paulo, por exemplo, 23% mais ocorrências do que no mesmo período de 2008, chegando ao absurdo total de R$ 134,2 milhões em cargas roubadas.

Crescimento

De qualquer forma, é bem possível que o governo acabasse deixando as coisas mais ou menos como estão – afinal, o problema não vem de hoje, e uma medida saneadora como essa poderia ter sido tomada bem antes – se a confusão reinante no transporte rodoviário de cargas já não estivesse, de algum tempo para cá, pondo em risco a própria vitalidade da economia do país, que está bem mais dinâmica nestes últimos anos e é extremamente dependente desse modal.

De fato, embora não faltem no país transportadoras e caminhoneiros, e a frota de caminhões some cerca de 1,4 milhão de veículos, a verdade chocante é que, quando o Brasil voltou a crescer num ritmo mais acelerado, em 2007 e em boa parte de 2008, o que se viu foi que o setor não conseguiu, literalmente, dar conta da encomenda.

Faltou caminhão, e num nível assustador. Uma pesquisa feita em julho de 2008 pelo Centro de Estudos Logísticos do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Coppead) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mostrou que, nos 12 meses anteriores, 82% das 65 transportadoras entrevistadas tinham recusado clientes por falta de capacidade ou porque haviam optado por outro carregamento, por conta de uma proposta de frete mais alta.

Isso ocorreu porque, em 2007, a economia brasileira apresentou um bom nível de crescimento, de 6,1%. Nos dois anos seguintes, devido aos efeitos da crise, a expansão do PIB foi menor, o que provocou uma retração na movimentação rodoviária de cargas. Para 2010, com a retomada do crescimento, é muito provável que a situação vivida pelo setor em 2007 venha a se repetir.

“É um mercado que está totalmente distorcido e desorganizado, do começo ao fim da cadeia”, afirma Peter Wanke, coordenador do Centro de Estudos Logísticos e professor do Instituto Coppead. De acordo com ele, existem poucas transportadoras realmente grandes e de ponta, o preço do frete quase não dá margem para investimentos, há uma enorme quantidade de mão de obra avulsa, mas muito mal equipada e pulverizada, além de o Brasil ter uma produção de caminhões relativamente pequena, de cerca de 150 mil unidades por ano – em 2007 e 2008, quem quis comprar um deles teve de enfrentar filas de até seis meses. “Trata-se de um segmento que mais inchou do que realmente cresceu, e que já não consegue atender as necessidades do país”, sentencia.

Para Wanke, a principal causa dessa distorção é a maneira como o setor se estruturou principalmente de meados dos anos 1990 para cá, à base de terceirizações e até de quarteirizações meio às cegas do serviço – ou seja, as transportadoras, para engordar o portfólio, pegam o máximo possível de viagens e distribuem pelo mercado as que sabem que não conseguirão bancar, pagando comissões ou dividindo proporcionalmente os lucros. Até mesmo as empresas de fundo de quintal procedem assim. O resultado é uma luta desesperada por maiores receitas e um jogo de empurra-empurra para ver quem, no final, fica com o mico – o prejuízo.

Embora, em essência, essa prática seja histórica entre os transportadores do mundo inteiro, no Brasil ela passou a ocupar um espaço desproporcional e deletério devido, especialmente, à estabilização da economia e ao período de estagnação econômica que se seguiu.

De modo a reduzir custos, as empresas contratantes começaram a pressionar para baixo os preços dos fretes (uma preocupação que não existia na época da inflação alta, já que bastava repassar os custos para o preço final) e a racionalizar o trabalho de logística, articulando os níveis dos estoques com os prazos de entrega, por exemplo. Mercados foram remapeados para reduzir a necessidade de viagens de longa distância. Ao mesmo tempo, os custos aumentaram de forma vertiginosa, como, aliás, em todos os segmentos da economia. Não foi difícil para as transportadoras perceber que os bons tempos, quase que de esbanjamento, tinham terminado definitivamente.

A reação foi simétrica à dos contratantes: redução de custos, enxugamento dos quadros e terceirização. Departamentos inteiros foram desmontados, com a transferência das tarefas para prestadores de serviços. Ao mesmo tempo, os desempregados da indústria que sabiam dirigir – e que se contavam aos milhões no auge do processo de saneamento econômico do Plano Real – vieram reforçar esse exército de reserva. O mercado explodiu. As 12,5 mil transportadoras existentes em 1992 transformaram-se nas 46,3 mil de hoje, sem contar os autônomos. Estima-se que, atualmente, 85% das cargas rodoviárias sejam movimentadas por terceirizados, uma parte significativa de maneira inadequada ou sem muita qualidade operacional.

Enfim, para não soçobrar, as transportadoras acabaram proletarizando o setor, transformando-o, de passagem, em um dos menos lucrativos da economia. Dados levantados pelo Coppead sobre essa questão são arrepiantes e mostram a força com que o tiro saiu pela culatra.

De acordo com Peter Wanke, das 46,3 mil transportadoras formalizadas, apenas 2,9 mil têm mais de 20 funcionários, ou seja, quase a totalidade é constituída por microempresas. O faturamento médio é de R$ 51 mil por ano, mas 25% dos empreendimentos auferem apenas cerca de R$ 27 mil por ano – uma renda pequena mesmo para uma pessoa física. Em 2007, cerca de 20% das companhias operaram com prejuízo.

Já a média de faturamento anual das grandes transportadoras fica em torno de R$ 205 mil. Uma minoria absoluta daquelas de maior porte apresenta faturamento médio de cerca de R$ 1,7 milhão.

“Não é difícil concluir que boa parte das empresas é constituída por um motorista que dirige o próprio caminhão, e que ele leva a vida praticamente no vermelho”, diz Wanke. “É uma situação de tamanha pulverização e desorganização – e de concorrência tão feroz – que sabemos de casos de motoristas que estão aceitando fazer transportes, por assim dizer, em troca de um prato de comida ou de 2 quilos de feijão. O setor acabou engolfado num drama social.”

O jogo ficou pesado inclusive para os profissionais de ponta que decidiram abrir uma empresa para lucrar com o avanço da terceirização. Até meados da década de 1990 José Luiz Moreira era um executivo de uma grande transportadora paulistana – da qual inclusive foi representante durante alguns anos em Belém do Pará –, mas não tem lembranças muito boas de sua Transcold, especializada no transporte de carnes. Como outros, ele abriu a empresa confiando apenas na rede de relacionamentos que conquistou ao longo da carreira, não tendo sequer investido na compra de um caminhão.

“Não tinha dinheiro para isso. O meu capital era o meu conhecimento”, relembra Moreira, que de fato conseguiu bons lucros nos primeiros anos, operando tanto para transportadoras maiores como intermediando embarques para motoristas autônomos. “Mas havia tanta concorrência desleal, tantos roubos de carga e tantos seguros e impostos que, quando dei por mim, tudo o que entrava acabava se destinando a saldar dívidas cada vez mais impagáveis. Tive de fechar a Transcold.”

Hoje, Moreira é gerente de uma transportadora de porte médio de Guarulhos, na Grande São Paulo, um emprego que lhe dá segurança e renda suficiente para ir pagando as dívidas.


Má condição das estradas é complicador

Parte da culpa pelo cenário de entropia do setor de transporte rodoviário de cargas deve ser debitada às más condições das rodovias brasileiras. Hoje, perto de 75% das estradas do país apresentam algum tipo de imperfeição, e só 13% delas são pavimentadas. Para as transportadoras, isso significa um gasto adicional de 60% em combustíveis, 40% em custos operacionais e de manutenção e, às vezes, 100% em tempo de viagem.

“Na área de infraestrutura, não é só o mau estado das rodovias que nos prejudica. É muito comum um caminhão ficar mais de 24 horas parado num porto por falta de uma operação mais eficaz de descarga e armazenagem”, diz Flávio Benatti, presidente da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC&Logística).

A predominância do modal rodoviário no transporte de cargas brasileiro, em detrimento da ferrovia e da navegação de cabotagem – um absurdo logístico, já queé o mais caro de todos –, começou depois da 2a Guerra Mundial (1939-45), quando as primeiras rodovias dignas desse nome foram abertas. Até a década de 1960, porém, apenas 40% das cargas eram despachadas por caminhão.

Com o aumento dos investimentos em rodovias nas décadas seguintes, a participação cresceu para 60%, na média brasileira, embora em estados como São Paulo ela seja de 93,3%. A extensão da malha rodoviária paulista é de cerca de 200 mil quilômetros, a da ferroviária é de 5,1 mil e a da hidroviária de 2,4 mil.

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal prevê investimento em rodovias de R$ 13,6 bilhões até o final deste ano, contando desde 2007. A prioridade é o trabalho de manutenção. No final do ano passado, havia obras em andamento em 51 mil quilômetros de rodovias de todo o país.

Os recursos destinados a infraestrutura no Brasil diminuíram dramaticamente de duas décadas para cá. Até 1988, o país investia acima de 5% de seu Produto Interno Bruto (PIB) no segmento. Desde então, esse índice raramente foi maior que 2%. Em 2007, por exemplo, foi de 2,3%, metade da porcentagem da Índia.


Nicho logístico

Os grandes empresários do setor de transporte rodoviário de cargas não estão, obviamente, esperando sentados pelo fim de seu modelo de negócio, que ruma com os pneus já bastante carecas para o abismo. Cientes de que o velho sistema baseado na simples cobrança de fretes se esgotou, eles estão migrando rapidamente para o patamar mais alto e lucrativo do segmento, a operação logística.

É um nicho para poucos, já que exige caminhões mais modernos e adaptados aos públicos-alvo, investimentos em informatização para controle de embarque, percurso e desembarque, presença em outros modais e a destinação de pesados recursos a armazenagem e movimentação, além da eventual adoção de serviços porta a porta e do obrigatório gerenciamento do negócio por áreas de atuação.

A Brasspres, pertencente ao segmento de cargas expressas, é uma das que partiram nessa direção. Com 4,1 mil funcionários, 88 filiais no país, 170 mil clientes e uma frota de quase mil caminhões com idade média de 3,5 anos, a empresa tem hoje até uma linha aérea, a Air Minas. Já em 2004, implantava um sistema de esteiras móveis com separação automática de cargas em seu terminal de São Paulo. No ano passado, inaugurou um terminal ainda maior e mais moderno no Rio de Janeiro, com investimentos de R$ 35 milhões.

“Ali, a operação de descarga de uma carreta, a seleção e identificação dos volumes e o despacho para os veículos que farão a distribuição não levam mais que sete minutos”, diz Urubatan Helou, presidente da empresa. “Em uma operação manual, isso poderia demandar até seis horas. As mercadorias não passam mais de 30 minutos dentro de nosso armazém”.

As empresas que se encontram no cume do mercado também estão convergindo para a concentração, quando não simplesmente comprando concorrentes. Algumas delas representam as cada vez mais numerosas operadoras logísticas multinacionais presentes no país, como a holandesa TNT, que no ano passado comprou o Expresso Mercúrio e o Expresso Araçatuba. Pouco antes, cinco tradicionais transportadoras do ABC paulista se juntaram para criar uma nova empresa de logística e armazenagem, a Mestra Log.

 

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