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Brasil em mudança

Um projeto de poder

ROLF KUNTZ


Rolf Kuntz / Foto: Nicola Labate

Rolf Nelson Kuntz, jornalista há 49 anos, é formado e doutorou-se em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-graduação em administração de empresas pela Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas.
Na área acadêmica, é professor de filosofia política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Como jornalista, trabalhou em diversos órgãos de imprensa, entre eles “Folha de S. Paulo” e “Jornal do Brasil”, principalmente na área econômica, e hoje é ligado ao jornal “O Estado de S. Paulo”.
Publicou os livros “Qual o Futuro dos Direitos?”, em coautoria com José Eduardo Faria, e “Capitalismo e Natureza – Ensaio sobre os Fundadores da Economia Política”, e participou de diversas outras obras, entre as quais “Da Revolução à Globalização”, “A Organização Nacional” e “Estado, Mercado e Direitos”.
Esta palestra de Rolf Kuntz, com o tema “Brasil em mudança – Economia e poder”, foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio, Sesc e Senac de São Paulo, no dia 15 de outubro de 2009.

Começo pelo ponto mais pacífico ou menos polêmico. Como qualquer pessoa pode perceber, o país mudou nos últimos 20 anos. Poderia dizer 15 anos, se quisesse realçar o lançamento do Plano Real em julho de 1994, que foi o ponto inicial da estabilização. Após uma longa fase de inflação endêmica, desordem nas contas públicas e insegurança no balanço de pagamentos, mesmo quando o país acumulava superávits comerciais, o peso da dívida mantinha ameaça constante sobre a estabilidade das contas externas. Mas prefiro mencionar um prazo mais longo, 20 anos, porque uma parte relevante da mudança começou com a abertura dos mercados, isto é, com a desmontagem parcial do enorme aparato protecionista. Esse pode ser considerado, de fato, o ponto inicial da transição.

É possível sintetizar a grande transformação em meia dúzia de sinais. O Brasil acaba de enfrentar uma recessão, em meio a uma crise internacional, sem pressão cambial, sem surto inflacionário e sem ter sido forçado a um aperto fiscal devastador e a um ajuste penoso das contas externas. Ao contrário, a inflação se mantém próxima do centro da meta, que é 4,5%, o câmbio valorizou-se e houve acumulação de reservas, hoje em torno de US$ 230 bilhões. Do lado fiscal houve espaço para a concessão de incentivos e, apesar dessa renúncia e também da arrecadação menor ocasionada pela retração econômica, ainda há um pequeno superávit primário. Poderia acrescentar alguns comentários menos otimistas a respeito das contas públicas, mas prefiro concentrar a atenção nos dados positivos.

Pelos números até agora conhecidos, a recessão brasileira durou dois trimestres e foi relativamente benigna. O mercado financeiro estima uma variação próxima de zero para o Produto Interno Bruto em 2009. As estimativas de crescimento para 2010, feitas por analistas brasileiros, oscilam entre 4% e 5%. O FMI [Fundo Monetário Internacional] calcula para 2009 uma retração de 0,7% e para 2010 um crescimento de 3,5%. São números bastante razoáveis diante da contração observada na maior parte dos grandes mercados. Se quiséssemos escolher um fato para simbolizar a metamorfose dos últimos 20 anos, a decisão não seria difícil: a abertura de um crédito de até US$ 10 bilhões ao próprio FMI, para reforçar seu potencial de ajuda aos países em desenvolvimento mais afetados pela crise.

Vejamos alguns detalhes desse quadro. Depois de crescer durante anos bem mais velozmente que o produto global, em 2009 o comércio internacional encolheu. O FMI estimou para esse ano uma contração de 11,6% no volume do intercâmbio mundial de bens e serviços. Para 2010 está prevista uma expansão de apenas 2,5%. É claro que depois de uma retração de 11% um crescimento de 2,5% não significa nada. As estimativas podem variar, mas de modo geral indicam uma recuperação muito lenta do comércio na primeira fase da reativação econômica. Além disso, o maior mercado de consumo do mundo, o americano, deverá crescer devagar depois da crise, porque o consumidor estará endividado, propenso a poupar mais e com menos crédito à disposição. Em outras palavras, as economias emergentes vão depender mais do mercado interno e também do intercâmbio sul-sul para sustentar seu crescimento nos próximos anos.

Jogo novo

O quadro, porém, é um pouco mais complicado. Na reunião de cúpula de 24 e 25 de setembro em Pittsburgh (EUA), os chefes de governo do Grupo dos 20 fixaram como objetivo para os próximos anos um crescimento mais equilibrado. Essa é uma descrição abstrata do assunto. Em termos mais concretos, entenda-se que as economias superavitárias, a começar pela China, devem aceitar excedentes comerciais menores, consumir mais e importar mais das deficitárias. A principal destas últimas, naturalmente, é a americana. Esse novo jogo dependerá de mudanças tanto nos Estados Unidos quanto na China. Em qualquer caso o mercado internacional ficará mais difícil para os brasileiros, sejam quais forem a extensão e a natureza do ajuste. É claro que ninguém sabe se e como isso vai ocorrer. Para que pudesse acontecer seria preciso de um lado que os americanos reduzissem de fato seu consumo ou pelo menos fizessem com que crescesse muito mais lentamente do que nos últimos 30 ou 40 anos. E seria necessário que o ajuste fiscal dos Estados Unidos fosse razoavelmente rápido. O país fechou o último ano fiscal com um déficit de US$ 1,6 trilhão. Para o próximo período, que começou no dia 1º de outubro, a previsão é um pouco menor, mas o ajuste deve levar entre 8 ou 9 anos.

Do outro lado há o ajuste chinês. Nos últimos dez anos a China urbanizou mais ou menos 24 milhões de pessoas por ano, uma monstruosidade. Eles teriam talvez de acelerar essa urbanização para poder aumentar o consumo interno. O fato é que os dados imediatos mostram que depois do impulso fiscal inicial – desde o início da crise, o governo chinês jogou mais ou menos US$ 580 bilhões no mercado –, a economia chinesa retomou força e as exportações também estão em recuperação. De qualquer maneira, vamos supor que haja algo parecido com o que foi proposto pelo Grupo dos 20. Isso vai tornar o mercado internacional muito mais complicado. Se o ajuste for feito dessa maneira, vamos ter um mercado americano mais estreito e os chineses importando mais, só que esse mercado será disputado por exportadores americanos. Externamente a briga vai ficar muito mais feia.

Nessas condições, mais do que nunca os brasileiros, governo e setor produtivo, terão de cumprir uma agenda voltada para a competitividade. Essa é uma palavra de sentido muito amplo, um guarda-chuva que remete a uma extensa lista de tarefas: ampliar e modernizar a infraestrutura, reformar o sistema tributário, reduzir os entraves burocráticos, investir em capital humano, criar e importar tecnologia, multiplicar os acordos comerciais relevantes etc. Mas não basta recitar essa lista de palavras, porque não se resolvem problemas dessa natureza com a repetição de um mantra. Tudo se torna muito mais complicado quando se trata de traduzir essas ideias em propostas mais definidas e mais concretas.

Na área educacional, por exemplo, onde estão os gargalos mais importantes? No Brasil, 63% dos estudantes abandonam a escola antes de concluir o ensino médio, segundo dados da última Pnad [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios]. No entanto, o governo federal tem se empenhado muito mais na tentativa de universalizar o acesso à educação superior por meio de cotas, ProUni [Programa Universidade para Todos] etc. Daí a multiplicação de faculdades e universidades federais, de utilidade muitas vezes duvidosa, as políticas de cotas e de bolsas e o discurso em torno da democratização do ensino universitário.

Contudo, esse não é, segundo tudo indica, o grande gargalo. Nos momentos de maior dinamismo econômico nos últimos anos, as empresas tiveram dificuldade para encontrar não apenas pessoal treinado, mas, muito mais importante, pessoal em condições de receber treinamento no ambiente de trabalho. A CNI [Confederação Nacional da Indústria] publicou alguma coisa a respeito do assunto há uns poucos anos; estamos procurando gente para treinar na fábrica e não estamos encontrando pessoas em condições disso. Se quisermos dramatizar um pouco mais o quadro, basta lembrar um número: cerca de 20% dos brasileiros com idade igual ou superior a 15 anos são considerados analfabetos funcionais. Entram nessa classificação as pessoas dessa ampla faixa de idade, isto é, 15 anos ou mais, com menos de quatro anos de escolaridade. Não é preciso, dados os padrões de ensino dominantes há algumas décadas, submeter esses brasileiros a testes mais diretos para confirmar a sua incapacidade de ler e de entender mensagens simples. Mais do que isso, a aplicação dos testes provavelmente identificaria essa mesma incapacidade ou algo muito próximo entre pessoas com quatro anos ou mais de escolaridade. Suspeito que a porcentagem de analfabetos funcionais seja muito maior, e isso inclui gente que tem lá o seu diplomazinho ou pelo menos mais de seis anos de escolaridade.

A educação, no entanto, é só um exemplo de como a agenda atual, aparentemente clara, se torna complicada quando se trata de atribuir um sentido concreto aos objetivos, eleger prioridades e executar programas e projetos. A distância entre o discurso oficial e a prática da ação transformadora fica mais visível a cada dia. Quanto maior ela for, menos provável se torna a execução das tarefas necessárias para um impulso de crescimento prolongado.

O que quero dizer é que o país está crescendo com combustível que foi acumulado antes, há vários anos. Ele não está sendo criado para uma nova etapa. Vejamos como exemplo a formulação e a execução do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento], a proposta mais vistosa do governo no segundo mandato de Lula. A lista de projetos, como ficou claro já em 2007, foi feita não por um grupo que tenha identificado gargalos e estabelecido um programa estratégico, mas pela justaposição de obras previamente programadas, a maioria delas já no papel. A maior parte dos R$ 600 e tantos bilhões previstos de investimento ficaria a cargo da Petrobras, mas o plano de investimentos da empresa já existia antes do PAC e continuaria existindo independentemente dele. Ou seja, o plano de investimentos da Petrobras foi simplesmente capturado e introduzido no PAC. Puseram no PAC o que puderam.

Para se ter uma ideia do que é concretamente o PAC, vejamos alguns dados de 2009. Nesse ano as estatais federais investiram R$ 52,68 bilhões. Desse valor, o grupo Petrobras entrou com R$ 49,09 bilhões, ou seja, 93,18%. Em 2010 as companhias estatais deverão investir R$ 60,61 bilhões, segundo o anexo da mensagem orçamentária do governo. Desse total, a Petrobras deverá participar com R$ 55,5 bilhões, ou seja, 91,63%. Elimine-se a Petrobras e o PAC das estatais murcha.

O cenário é pior quando se trata dos investimentos incluídos no Orçamento Geral da União, o chamado PAC orçamentário. Em 2009, até 28 de setembro, o Tesouro empenhou R$ 20,62 bilhões, que correspondem a 40,8% do previsto. Mas os desembolsos correspondentes não passaram de R$ 5,88 bilhões, isto é, 11,6%. É claro que nos relatórios de execução orçamentária há o registro de um volume maior de dinheiro desembolsado, que se deve aos restos a pagar. Há um evidente problema de gerência.

Em sete anos, entre o primeiro semestre de 2002 e de 2009, a folha de salários da administração direta e das autarquias, fundações e estatais aumentou 49% em termos reais, já descontada a inflação, segundo levantamento da organização Contas Abertas, uma ONG altamente qualificada que recebe os dados orçamentários do Siafi [Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal] e os transforma em tabelas que um ser humano normal pode ler. É um trabalho magnífico. Apesar desse crescimento da folha, não há sinal de melhora na gestão pública. Ao contrário, a tentativa de aparelhamento e a politização puseram em risco algumas das chamadas ilhas de excelência da administração federal. O exemplo mais notório é a transformação do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] num organismo de combate ideológico e de apoio a ações como a ampliação dos quadros de pessoal.

Competência

A economia brasileira tem potencial para crescer sem desajustes graves durante algum tempo. Não vai acontecer nada de muito sério nos próximos dois anos, provavelmente. Mas como essa economia vai enfrentar os gargalos já conhecidos? A maior parte dos problemas de infraestrutura continuará sem solução nos próximos anos, se a execução dos projetos continuar no ritmo observado até agora. Poderia acrescentar que, se os projetos estão emperrados, não é só por problemas de licenciamento ambiental, ou porque o Tribunal de Contas da União [TCU] está cheio de gente birrenta, mas por incompetência. Se houvesse competência, os projetos seriam feitos de tal maneira que passariam pelo TCU. Pode haver empecilhos nas questões relativas ao Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], mas isso também depende da articulação de objetivos, o que nunca foi feito. Ao contrário, deixou-se durante algum tempo que o Ibama fosse controlado por ONGs.

Do lado fiscal, o espaço de manobra tende a ficar cada vez mais apertado por causa do engessamento contínuo das contas federais. O anexo 5º da proposta de lei orçamentária para 2010, encaminhada ao Congresso em agosto, contém umas tabelas interessantes. Menciona a criação de mais 77,7 mil postos na administração federal, a maior parte, 58 mil, destinada ao Executivo. O quadro não é muito diferente quando se examinam outros itens da agenda de competitividade. A reforma tributária continua empacada e sua aprovação dependerá de entendimentos difíceis entre os governos federal, estaduais e municipais. Há o risco de aprovar uma reforma caricatural, condicionada muito mais a interesses de arrecadação destes ou daqueles estados do que às necessidades de uma economia exposta à competição internacional. O velho sistema tributário, implantado a partir de 1967, não tem o menor sentido numa economia aberta. A situação, em relação ao encaminhamento da reforma tributária, poderia ser diferente se o governo assumisse a liderança e se procurasse articular os diferentes interesses, sem perder de vista os objetivos centrais.

Enquanto o quadro não muda, o produtor continua forçado a competir globalmente, seja no exterior, seja no mercado nacional. Só os créditos fiscais acumulados devem corresponder hoje a pouco mais de R$ 30 bilhões, sendo dois terços de responsabilidade dos estados. É um valor que está parado, um peso no orçamento das empresas.

Por que então Lula não se dispõe a assumir a liderança? Quando se faz essa pergunta, é impossível deixar de observar este dado: não houve nos últimos sete anos nenhuma inovação do porte da Lei de Responsabilidade Fiscal, que foi aprovada no ano 2000, ou da renegociação das dívidas de estados e municípios, na segunda metade dos anos 1990. Esses foram os fatos políticos mais importantes dos últimos 20 e tantos anos. A renegociação com os estados permitiu que surgisse uma política monetária, que não poderia haver enquanto bancos estaduais continuassem criando moeda e financiando os estados, com operações sancionadas pelo socorro constante do Banco Central.

Não houve nos últimos sete anos nenhuma inovação institucional desse porte. A economia cresceu com base num quadro formulado até o começo da década. Como o governo anterior deixou de cuidar da reforma tributária, porque Fernando Henrique Cardoso também não quis se meter nessa coisa complicada, o sistema de impostos e contribuições continua tão inadequado às necessidades da economia brasileira quanto era nos primeiros tempos da abertura econômica. Todas as mudanças ocorridas nos últimos sete anos foram remendos, produzidos de forma descontínua e sem atenção a um desenho geral. A Lei Kandir já havia sido um remendo, que deveria ter sido eliminado em poucos anos. No entanto, ela não só continua aí como o esquema de compensações foi prorrogado permanentemente, e por razões discutíveis.

Lula respeitou, contra as pressões de seus colaboradores e aliados, a autonomia de fato do Banco Central. Isso permitiu manter a inflação em níveis quase civilizados. Sem isso, a redução da pobreza e da desigualdade teria sido certamente bem menor. Os valores destinados aos programas de transferência de renda, assim como os aumentos nominais do salário mínimo, teriam sido corroídos muito mais rapidamente. Lula deve ter percebido que o controle da inflação era fundamental para sua política de redistribuição e combate à pobreza. Mas na área fiscal a atitude foi mais frouxa e a política se tornou perigosamente permissiva de um ano para cá. Uma ação corretiva será em breve necessária.

Congelou-se a pauta de reformas para a modernização, mas ganhou corpo um projeto de poder, não de governo. À primeira vista ele parece conduzir a uma reestatização, com o apoio de pelo menos alguns partidos aliados e também de sindicatos e movimentos ditos sociais. Minha percepção é diferente. Muito mais do que a ampliação das funções e dos poderes do Estado, as ações do presidente Lula visam ao fortalecimento do governo, não do Estado, e à centralização de um conjunto importante de decisões econômicas. É a concentração de um enorme poder de decisão no Palácio do Planalto. A tendência não é nova, ela vinha se manifestando havia algum tempo, mas ficou mais evidente a partir do agravamento da crise, quando Lula tentou intervir nas demissões da Embraer e da Vale. As pressões sobre esta última continuaram depois – quando a empresa anunciou a redução de seu programa de investimentos, o presidente da República não se privou de cobrar explicações dos dirigentes da companhia, como se estivesse tratando com executivos sujeitos a seu comando. O passo seguinte foi tentar obter o controle da empresa para demitir o presidente e assim determinar a pauta de investimentos. A tentativa só não deu certo até agora porque o Bradesco se recusou a vender as ações necessárias à formação do novo bloco de controle.

O jogo não terminou. Não vejo uma tentativa de reestatização, mas um esforço de subordinação da empresa ao comando do Planalto. Se Lula tiver sucesso, será apenas o primeiro passo para a intervenção direta e pessoal em outras empresas de grande valor estratégico. A interferência pessoal do presidente já ocorre de modo aberto na administração da Petrobras. Bem antes de se anunciar a descoberta do pré-sal, Lula tentou forçar a estatal a comprar equipamentos pesados de fornecedores nacionais. O plano só não foi adiante porque os velhos estaleiros não tiveram condições de atender a empresa, mas as pressões voltaram e a nova legislação proposta para o pré-sal transforma a Petrobras em instrumento de política industrial. Trata-se claramente de uma alteração dos objetivos da empresa, definidos legalmente. Significa uma mudança dos propósitos societários, e até agora nenhum acionista protestou.

A criação de uma estatal para comandar a exploração do pré-sal, acima da Petrobras e concorrendo com a Agência Nacional do Petróleo, define o esquema de subordinação.

Esses fatos dão um novo sentido às tentativas do governo, desde o início do primeiro mandato, de eliminar a ideia de autonomia das agências de regulação para subordiná-las de forma irrestrita aos interesses políticos do Executivo. Note-se que agências de regulação são órgãos de Estado. Se houvesse algum interesse em fortalecer o Estado, elas seriam fortalecidas. Se derem certo as tentativas de enfraquecer o TCU e de afrouxar a Lei de Responsabilidade Fiscal, o poder de arbítrio do Executivo federal aumentará tremendamente e os avanços institucionais iniciados nos anos 1990 irão para o ralo.

Se essa interpretação for verdadeira, para quem o presidente estará preparando essa nova configuração de poder? A resposta me parece clara: para si mesmo. Se seu sucessor for eleito por um partido de oposição, terá muita dificuldade para retomar e desenvolver o esquema criado a partir da pauta de reformas da última década. Terá de enfrentar a resistência de um funcionalismo público engordado e moldado segundo os interesses políticos do atual governo. Terá de conviver, além disso, com a pressão constante e possivelmente violenta de grupos articulados em movimentos de rua. Para isso deverá servir o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra], secundado naturalmente por uma recém-criada categoria de pelegos estudantis.

Os mais otimistas dirão que é pura fantasia, que isso não tem base na realidade. Talvez os mais céticos que eu tenham razão, espero que tenham. Mas permito-me chamar a atenção para mais um detalhe. Trata-se da formação, com o apoio explícito de Brasília, de um anel de governos com indisfarçável vocação autoritária em torno do Brasil. Não falo apenas de Venezuela, Equador e Bolívia. A nova legislação de controle dos meios de comunicação aprovada pelo Congresso argentino parece-me tornar um pouco mais sombrias as perspectivas políticas dessa região. Suspeito que o apoio a esses governos não seja simplesmente consequência de maluquices ou das fantasias de alguns assessores do Planalto. Penso que é algo mais claro, é parte de um projeto político, talvez mal formulado e ainda não totalmente explicitado, com a diferença de que o governo brasileiro usa mão mais leve para agir nessa direção.

Não creio que seja apenas uma alucinação. Os fatos estão aí, podemos juntá-los ou não. Continua não havendo um projeto claro de governo e é bem identificável um projeto de poder.

Debate

JOSUÉ MUSSALÉM – O aparelhamento político do Ipea é verdadeiro e ocorre também no Itamaraty. Estive na Fundação Alexandre de Gusmão, que pertence ao Itamaraty, e encontrei muitos diplomatas com uma visão chavista, um pensamento ideológico que pensei não existir mais, principalmente em diplomatas.
Há provavelmente um projeto de América Latina. Só que ele usa a democracia exatamente para bani-la. E vou mais além nessa questão do aparelhamento, como também na do MST, contra o qual ninguém consegue abrir uma CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] séria. E existe um processo de aprisionamento das Forças Armadas, que são lembradas constantemente como autoras do golpe militar, aquelas que torturaram. Foi criado um programa de memorização do regime militar e até filmes estão fazendo com recursos do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] e da Petrobras. Acontece que se referem ao período de 1957 para cá. Por que não pegam a partir de 1935? Penso que devemos ficar atentos e ativos em relação a essa situação do Brasil.

ROBERT APPY – Quero apenas dizer de minha preocupação em relação ao prestígio que Lula tem no exterior. Internamente se entende, pois ele conquistou uma grande parte da população pobre, embora isso vá ter um preço mais tarde. Mas como pode enganar a todos no exterior? Aos outros presidentes ele fala o que querem ouvir. Na Venezuela tem uma conversa, nos Estados Unidos outra, na França outra. O que impressiona é ele enganar até os jornais do exterior. Minha grande preocupação é o preço que vamos pagar por essa política no futuro. A herança maldita vamos ver daqui a dois ou três anos.

ISAAC JARDANOVSKI – Você, Rolf, que acompanhou a reunião do FMI, onde deve ter encontrado a nata do jornalismo internacional, tem alguma explicação para o prestígio de Lula no exterior?

ROLF KUNTZ – Não é fácil dar uma resposta. Alguns fatores explicam. No início Lula era uma figura atraente, folclórica, exótica. Era um operário que tinha chegado ao poder. Depois, muitas coisas deram certo no Brasil nos anos seguintes, o país continuou com uma relativa estabilidade monetária e fiscal, a economia voltou a crescer e houve melhoras de fato na distribuição de riqueza. As políticas sociais tiveram algum efeito e tudo isso chamou a atenção. O problema é que a maior parte das pessoas fora não sabe como essas coisas se processaram. Recentemente a revista “Foreign Affairs” publicou um artigo no qual Celso Amorim é classificado como o melhor ministro de Relações Exteriores do mundo. Amorim não ganhou uma disputa em toda a carreira, e posso enumerar tudo o que foi perdido. Cito a última eleição para diretor-geral da OMC [Organização Mundial do Comércio], do BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] e da Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura]. Foram feitas muitas concessões em troca de um apoio cada vez mais duvidoso em relação à cadeira permanente no Conselho de Segurança, e nada de concreto se conseguiu até agora. E há uma série de outras questões, a política comercial em torno de vizinhança etc. Não houve nenhum sucesso diplomático, apenas o da propaganda que funcionou, atingindo até uma revista habitualmente séria, como a “Foreign Affairs”.
Há um trabalho de propaganda que funciona e a visão superficial ajuda. Enfim, muita coisa melhorou nos últimos anos e isso é atribuído a Lula. Há alguma justiça nessa atribuição, mas não é de 100%. Quem conhece um pouco mais a história do Brasil sabe que algo importante ocorreu, por exemplo, quando Maílson da Nóbrega extinguiu a conta movimento.

MOACYR VAZ GUIMARÃES – Enquanto ouvia a palestra visualizei a Constituição e me lembrei, com estranheza, de que ali está escrito “República Federativa do Brasil”. Melhor seria se houvesse uma emenda constitucional para que se afirmasse de maneira menos hipócrita que temos a República Unitária e Imperial do Brasil, pois é evidente o grande projeto pessoal do presidente. Ele desenvolve seu plano com tranquilidade. Hoje os ditos três poderes perderam a personalidade própria, não correspondem aos objetivos que deveriam nortear sua ação. Em relação à educação, o presidente imperial jogou para o agrado de todos a questão das cotas, favorecendo alunos oriundos do ensino público. Isso significa afirmar: já que o ensino público é de péssima qualidade, em vez de melhorá-lo, como deveria ser feito, damos uma vantagem para que estudantes ingressem nos cursos superiores pelas portas do fundo. Da mesma forma a cota racial significa criar um ódio racial que não existia no Brasil. Discordo de Robert Appy, a herança maldita não será sentida daqui a três anos, pois já comprometeu toda a nova geração.

JOSÉ ROBERTO FARIA LIMA – A direita e a esquerda se confundem quando demonstram seu ódio à democracia. Nosso presidente não se destaca pela intelectualidade, mas está sendo muito bem assessorado por aqueles que leram Gramsci e que o levaram a criar o Foro de São Paulo. Estou entre aqueles que pensam que vamos ter mais algumas gerações perdidas, porque na escala de valores tudo foi destroçado pela desmoralização das instituições. Neste mundo globalizado, gostaria de saber até que ponto as forças que compõem a elite intelectual política e econômica do mundo estão interessadas no que está acontecendo na América Latina. Até onde a Igreja, o Congresso, as Forças Armadas, essas forças vivas da nação, estariam dispostos a levar isso adiante? O povo está aparentemente hipnotizado pelas bolsas família e não está se preocupando com o que vem depois.

ROLF KUNTZ – Publicações que têm a tradição de acompanhar os fatos de perto e com seriedade, como o “Financial Times” e “The Economist”, produzem material de alta qualidade a respeito do Brasil, registrando não só o que ocorre de positivo, e chamam a atenção para fatos que são mais visíveis interna do que externamente. O “Financial Times” mais de uma vez mostrou os sinais de deterioração da situação fiscal. Outros meios de comunicação têm uma visão mais distante, confusa e superficial e, portanto, têm sua atenção chamada para os fatos mais vistosos, como as melhorias na área social ou a permanente discussão a respeito da Amazônia e assim por diante.
Algumas instituições, como o FMI e a OMC, têm informações muito precisas a respeito do que ocorre aqui. Outras nem tanto. O que leva uma agência de classificação de risco a conferir a um país um grau maior ou menor? Em parte isso decorre da análise dos dados macroeconômicos, mas a decisão também é tomada com base na avaliação de solvência do país, nada mais que isso. Enquanto ele se mostra solvente, a classificação pode ser boa. Não são fontes confiáveis de informação. Há múltiplas visões estrangeiras sobre o Brasil e mesmo nos meios de comunicação existem variados níveis de percepção. Até que ponto os brasileiros colaboram para isso? O governo contribui com certo tipo de propaganda, mas não atua necessariamente nos pontos em que sua ação seria mais útil. A informação, por exemplo, sobre o sistema de produção agrícola brasileiro é altamente deficiente no resto do mundo, mas também internamente. Ou seja, os brasileiros têm uma visão meio esquisita de sua realidade. Não vamos esquecer que nos últimos 20 anos os índices de custo de vida foram alterados duas ou três vezes, porque o peso relativo da alimentação caiu de forma importante. Isso não acontece por acaso, e as pessoas não têm percepção disso. A discussão sobre política agrícola é importante e não se resume a uma questão entre a bancada ruralista, pela qual não tenho a menor simpatia – vive assaltando o Tesouro com negociações que não têm a menor justificativa –, e o MST. O problema é de interesse público. Se não somos capazes de discutir a questão nesses termos, vamos esperar que uma publicação estrangeira, que muitas vezes não tem sequer correspondente aqui, possa acompanhá-la corretamente?

FARIA LIMA – E há o fato de a Igreja ter se afastado do PT [Partido dos Trabalhadores], deixando-o numa situação delicada, pois já tinha perdido também o apoio ambientalista e dos intelectuais, ficando apenas com a estrutura sindicalista. Até que ponto esse fator vai afetar a eleição para implantação da ditadura fascista pelo voto em 2010?

ROLF KUNTZ – Não sei. Também não sei se a Igreja de fato se afastou.

JOSEF BARAT – O que preocupa, e talvez esse seja o legado do governo Lula, é a desmoralização e o enfraquecimento gradual das instituições. É a concentração de poder no Executivo, a subordinação do Legislativo e do Judiciário, o fortalecimento do governo em detrimento do Estado. Ao contrário do que ocorre em países hispânicos, mais truculentos, o Brasil segue o caminho da malandragem. Não se faz o que é feito ostensivamente na Venezuela ou agora na Argentina, mas vai se fazendo. É por isso que a percepção internacional é difícil. Para pessoas habituadas a um raciocínio mais lógico, isso é muito difícil de notar. Mas começamos a perceber com mais clareza esse projeto de poder, na falta de outra denominação, que é fascista no sentido clássico do fascismo. O Brasil não precisa de ditadura, pode ter algo menos perceptível e mais sutil.

ROLF KUNTZ – Gostei do resumo. Nada está sendo feito de modo claro, ostensivo ou desavergonhado, mas com a colaboração dos que deveriam representar parte das instituições. Eu não quero discutir aqui a competência do novo membro do Supremo Tribunal Federal. Talvez seja uma ótima pessoa, extremamente competente, mas não tem currículo. Seu currículo é de advogado de um partido, que por acaso estava no poder no momento em que foi indicado para integrar o STF. E não houve resistência no Senado, como ocorreria num país politicamente mais decente.

FARIA LIMA – Isso é um pouco confuso. Não consigo entender como é que o presidente de um grande banco internacional pode ocupar assento no Conselho da Petrobras. Ele não tem acesso a informações privilegiadas?

ROLF KUNTZ – Quem é?

FARIA LIMA – É Fabio Barbosa, presidente do Santander.

ROLF KUNTZ – Não sei qual é o critério, mas já tivemos presidentes de grandes empresas no Conselho Monetário Nacional. Hoje isso não ocorre, houve um avanço.

SAMUEL PFROMM NETTO – Permito-me retornar ao tema da fragilidade da educação. É claro que temos excelentes escolas privadas, há ilhas de excelência, mas a pergunta torturante diz respeito ao ensino proporcionado ao grosso da população. A formação de nossos professores e o trabalho docente nas salas de aula estão padecendo de uma doença mortal, o abandono da prática de habilidades de ensinar e aprender. Em lugar disso, nossas escolas e mestres estão afogados em um palavrório teórico estéril, fórmulas românticas ou revolucionárias sem pé na realidade. A despeito dos vários anos de escolarização, os alunos não sabem ler nem escrever. É um vazio imenso nosso ensino, particularmente o público, que se converteu numa ilha da fantasia. Lembro-me do doente de Molière, que geme, grita e agoniza enquanto os médicos, que teoricamente deveriam reduzir seu sofrimento, estão totalmente alheios a seus padecimentos e discutem o sexo dos anjos. Será que existe esperança para esse macrodoente chamado ensino público no Brasil?

ROLF KUNTZ – Não sou especialista em educação, só posso observar os fatos. Um dos mais visíveis e escandalosos é a inversão dos termos do problema. Criou-se no Brasil há algum tempo a convenção de que não se pode exigir um grande esforço de um aluno pobre numa escola pública, porque ele tem pouco apoio em casa. Penso que deveria ser exatamente o contrário, os que não têm apoio cultural deveriam receber o dobro de educação, o dobro de esforço. Isso começou com o regime militar, a destruição do ensino público no Brasil.

PFROMM NETTO – É anterior ao regime militar. Lembremo-nos de Darcy Ribeiro, da revolução educacional que precedeu o regime militar e que gerou um quase caos na educação brasileira. Nossas dores são antigas.

JANICE THEODORO – Eu me pergunto em que medida a sociedade contemporânea não está conseguindo fazer uma crítica, nem interna nem externamente, a algumas ações de nosso presidente. Um elemento que caracteriza Lula na política internacional é a capacidade que tem de evitar conflitos. Isso fascina de certa forma os leitores internacionais. No mundo contemporâneo, em que não faltam conflitos extremamente graves e problemas ligados à sofisticação das armas, ter um presidente com a habilidade de desenvolver a negociação e não o conflito é uma característica importante. Estou tentando recuperar um lado otimista nessa política governamental repleta de defeitos, pois temos de ver os dois lados da situação. O lado negativo, que você colocou com precisão, não tenho condição de discutir. Penso que a semente está colocada. Quando Celso Amorim é valorizado no cenário internacional, isso não ocorre por ter perdido em todas as negociações. Perdeu, de fato, mas existe alguma coisa difícil de mensurar e que está sendo posta, ou seja, em vez de trabalhar em favor do conflito, vamos tentar a negociação.
A negociação pode ser malfeita, mas o conflito seria pior. O dano econômico gerado é mais nocivo ao equilíbrio internacional do que o próprio conflito. Agora pergunto: essa política está sendo bem encaminhada? Acredito que ela está em crise e que as próximas eleições vão anunciar o resultado das constatações que você fez. Nosso dilema é separar o campo da valorização e o da crítica, senão fica difícil conviver. Minha pergunta: onde está seu otimismo? Ele tem de existir em algum lugar.

BARAT – Só para complementar: a postura de negociar e de evitar conflito não faz parte da malandragem que é estrutural no Brasil?

EDUARDO SILVA – Vou falar de transporte. Os portos estão numa situação dramática, assim como as rodovias, muitos aeroportos e o sistema de trens. No que diz respeito à realidade da infraestrutura, poderíamos lançar não só críticas ao governo federal, mas uma oposição fortíssima, que não conseguimos fazer. Esse é o ponto que chama a atenção. Para os próximos anos, se não resolvermos o problema real, só para citar esse caso do transporte, não conseguiremos avançar. Quando falam que a economia do Brasil conseguiu se reabilitar muito rapidamente, não sei quanto tempo vai durar, pode ser muito pouco. Precisamos ter mais decisão, senão essa conversa fiada é que vai continuar ganhando.

LUIZ GORNSTEIN – O governo Fernando Henrique introduziu a privatização no Brasil. Foi uma boa ideia, mas manteve a mão pesada do Estado, por meio dos fundos de pensão. Esses fundos são de funcionários públicos e de estatais etc., e o governo escolhe os dirigentes e direciona os investimentos. Há uma evidência de que os eleitores querem mais Estado. Tanto é verdade que os dois pré-candidatos à presidência da República, Dilma Rousseff e José Serra, são francamente a favor de uma ação estatal mais forte. Qual a sua opinião?

ROLF KUNTZ – Quanto ao lado bom apontado pela Janice, com quem o Brasil iria fazer guerra? Há a ilusão de liderança regional, que não é de graça, tem um preço. Ela não existe, o que existe é um grande presunto pendurado, do qual cada um pode cortar um pedacinho. Vejam a situação do comércio com a Argentina, os acordos comerciais feitos com os países andinos, onde confecções brasileiras pagam 17% para entrar. E eles exportam para cá não só seus produtos, mas diversos outros originários da China e por aí afora. Todos os acordos comerciais feitos com a vizinhança são ruins.
Concordo que é razoável ter um desequilíbrio temporário nesses acertos, mas não é esse o caso. O que vemos é um cálculo malfeito como parte de um projeto fantasioso de liderança regional que não vingou. Ela não existe porque todas as vezes que o Brasil disputou alguma coisa internacionalmente nossos vizinhos votaram contra. Então essa tal conciliação não é tanto um lado bom, mas a consequência da incompetência da diplomacia brasileira e de um erro de visão. Até porque o Brasil não é tão conciliador quando se trata, por exemplo, das relações com a Colômbia.
Em relação à infraestrutura, os gargalos só tendem a se agravar daqui para diante. Na parte do PAC que depende das empresas, como vimos, 90% das despesas são cobertas pela Petrobras, a parte da Eletrobrás, que vem em segundo lugar, é muito pequena e o resto é irrelevante. São Paulo tem exemplos de parcerias público-privadas, outros estados também, mas o governo federal certamente não.
Não sei se os brasileiros querem mais Estado. Há uma grande parte da população que certamente gostaria de ter mais assistência, pois o Estado é deficiente em muitas áreas. Temos razão em pedir mais Estado em muitas coisas, o que não significa mais governo, são coisas diferentes.

 

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