Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Presença brasileira em terras africanas

Em Angola e Moçambique, influência do Brasil vai além das novelas

JULIANA BORGES


Luanda, a capital angolana / Foto: Juliana Borges

Na redação do “Jornal de Economia e Finanças”, localizada no primeiro andar de um prédio residencial da Rua Rei Katyavala, em Luanda, capital angolana, o que há de mais moderno coexiste com o precário – assim como em praticamente toda a cidade. Os equipamentos eletrônicos que fazem o jornal funcionar às vezes têm de ficar desligados forçosamente. O fornecimento de energia na cidade, que hoje tem cerca de 5 milhões de habitantes – dez vezes mais do que 35 anos atrás –, ainda é instável. Praticamente todos os dias a luz vai embora, especialmente quando é fechamento, ou fecho, como se diz por lá. A redação, então, passa a ser alimentada pelo barulhento gerador que fica na varanda. Só que os computadores, as impressoras e o ar-condicionado sobrecarregam o gerador, que, frequentemente, superaquece. Quando isso acontece, não há o que fazer, a não ser esperar a energia voltar.

A redação é dividida em três blocos de mesas. No fundo, uma televisão de plasma pendurada na parede fica ligada boa parte do dia, quase sempre sem som. Na programação, “O Melhor da Tarde”, “Beth, a Feia”, “Mutantes”, “Vale a Pena Ver de Novo” e “Malhação”. É o que a maioria dos cerca de 20 jornalistas, designers e fotógrafos que trabalham ali gosta de assistir. Na sala da recepção do jornal, logo ao lado, a cena se repete. “Aqui preferimos mesmo os programas brasileiros”, diz Yara, a secretária da redação, sempre impecavelmente vestida com uma camisa de seda ou de algodão colorida, que geralmente é da mesma cor que os sapatos, a sombra dos olhos e a bolsa.

Na casa do universitário Cláudio Oliveira, que vive com a família próximo do Aeroporto 4 de Fevereiro, também em Luanda, o que costuma passar na televisão da sala também é a programação brasileira, e não a que é transmitida pelas três emissoras locais – duas públicas e uma privada. O menino franzino de óculos escuros de marca e cinto de fivela dourada assusta-se com as cenas de violência retratadas em alguns telejornais brasileiros e pergunta à repórter: “Você não tem medo de morar em São Paulo?” A jornalista, que está acostumada a ouvir a pergunta inversa (se ela não tem medo de estar numa cidade perigosa como Luanda) responde que a realidade no Brasil não é nem tão sanguinária como os jornais sensacionalistas gostariam, nem tão colorida como as novelas mostram.

Esses dois exemplos ilustram a penetração e a influência que as maiores emissoras de TV brasileiras – a Globo e a Record – têm em Angola, o país da África lusófona que possui ligações mais estreitas com o Brasil. Nas outras nações do continente que também têm o português como idioma oficial – Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, o fenômeno se repete. Sem que a maioria dos brasileiros se dê conta, do outro lado do oceano Atlântico, principalmente devido ao alcance da televisão, cada vez mais africanos compram as roupas que aparecem em nossas novelas, imitam os penteados de nossas atrizes, adotam nossas novas gírias e cantam nossas músicas.

Tal fenômeno não é recente. Nos países africanos de fala portuguesa já se assiste aos programas brasileiros há pelo menos duas décadas. Mesmo antes de a Globo e a Record começarem a transmitir para o continente, em 1999 e 2003, respectivamente, algumas novelas eram exibidas pelas emissoras de Angola – e já influenciavam os hábitos locais. Prova disso é o célebre caso do mercado Roque Santeiro, uma gigantesca feira ao ar livre em Luanda que foi batizada assim devido ao grande sucesso da novela homônima da Globo exibida na década de 1980.

A novidade é que agora as emissoras brasileiras parecem estar percebendo o potencial desse mercado além-mar. Nos últimos dois anos, na luta por fidelizar os milhões de novos telespectadores, as redes passaram a ter uma postura mais ativa em relação a esses países – e a criar programas e eventos especialmente para essa audiência.

Os números explicam o porquê. A Record Internacional, que emite sinais para os Estados Unidos, Canadá e Europa, além de todos os 54 países africanos, tem cerca de 30% de seu faturamento total proveniente da África. “É um de nossos principais mercados”, diz seu presidente, Aroldo Martins. Na Globo Internacional, que transmite para 114 países dos cinco continentes, a situação é semelhante: quase 40% dos mais de 500 mil assinantes da emissora estão em Angola e Moçambique. Trata-se de seu principal mercado fora do Brasil – a participação é maior até que em Portugal ou Miami, dois outros locais em que a rede tem forte penetração.

Há um ano, a maior emissora de televisão brasileira criou o “Revista África”, uma atração semanal de variedades voltada exclusivamente ao público africano, apresentada pela ex-miss Angola Lesliana Pereira. O programa é o terceiro no mundo feito em um país estrangeiro, para um grupo de assinantes local. A própria emissora já produz o “Planeta Brasil”, nos Estados Unidos, e o “Cá Estamos”, em Portugal.

No ano passado, a Globo também criou um evento chamado Dia da Amizade Angola-Brasil, que é celebrado com um grande show com artistas de ambas as nacionalidades no Estádio dos Coqueiros, em Luanda. Em novembro de 2008, a emissora levou a banda Calypso, que é sucesso absoluto nas paradas angolanas, e o apresentador Luciano Huck para comandar o espetáculo. Em 2009, foi a vez da apresentadora Xuxa e sua filha Sacha atravessarem o Atlântico para cantar. Tudo foi transmitido ao vivo aos assinantes do continente africano. O calibre dos artistas levados a Angola para uma exibição local evidencia bem a importância que a Globo dá a esse novo mercado.

A Record, que, ao contrário da concorrente, tem seu sinal aberto e gratuito, também está apostando forte na programação local. Dos 15 escritórios da Record fora do Brasil, cinco estão na África. Em Moçambique, a TV Miramar, sua afiliada, possui dez emissoras, que cobrem todo o território do país, e, por exigência da legislação, 50% de sua programação é feita localmente, com atrações como “Bom Dia, Moçambique” e “Madzungula Ya Miramar”. Em Cabo Verde a situação é análoga.

Na batalha entre a Record e a Globo pela audiência de angolanos, moçambicanos e cabo-verdianos, a emissora do bispo Edir Macedo leva uma importante vantagem. A igreja evangélica é cada dia mais popular nesses países. Em Luanda, no bairro nobre do Alvalade, um templo enorme com altas janelas de vidros coloridos e um salão imenso não fica atrás dos que se veem no Brasil. Em Maputo a história se repete: as igrejas evangélicas estão espalhadas por toda a cidade.

Contexto econômico

O maior interesse da Record e da Globo nesse mercado está relacionado ao contexto político e econômico de Angola e Moçambique, os dois maiores e mais populosos países da África lusófona. Ambas as nações, cada uma à sua maneira, atravessam um período de estabilidade política combinada com crescimento econômico.

Angola, que tem cerca de 17 milhões de habitantes, viveu uma guerra civil que durou de 1975, ano de sua independência, a 2002. A partir de então, o país deu início a um intenso processo de reconstrução da infraestrutura destruída pelo conflito e de reorganização de seu setor produtivo. Tudo isso está sendo financiado pela atividade petrolífera, que responde por cerca de 70% do PIB nacional, e, em menor escala, pela indústria diamantífera.

Reconstruir um país não é tarefa fácil, muito menos de curto prazo. As dificuldades são imensas e, no caso, típicas de uma nação jovem e recém-saída de uma guerra: dependência de tecnologia estrangeira, falta de todo tipo de mão de obra qualificada, regulamentações imperfeitas e pouco claras, burocracia excessiva, infraestrutura precária e corrupção. Porém, é inegável que os avanços estão acontecendo, ainda que de forma um pouco caótica. O país é o maior produtor de petróleo da África subsaariana e, nos últimos anos, sua economia cresceu, em média, 15% ao ano. No entanto, não há eleições presidenciais desde 1992 e o presidente José Eduardo dos Santos, do partido Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), está no poder desde 1979.

A situação em Moçambique é um pouco diferente. O país, de 22 milhões de habitantes, também se tornou independente de Portugal em 1975, mas os conflitos só terminaram em 1992. Em outubro passado, foi realizada a quarta eleição presidencial desde a independência. O atual presidente, Armando Guebuza, da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), foi reeleito, com 75% dos votos, para mais um mandato de cinco anos. Menos dependente do petróleo, a economia de Moçambique cresce lentamente, mas de forma estável – a previsão para 2009 é de aumento de 5% do PIB. As principais atividades são a exploração de minérios, a agricultura de subsistência, o turismo e uma indústria ainda incipiente.

Em virtude do crescimento de ambos os países, a presença das empresas brasileiras no continente é cada dia maior. Segundo a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil), as relações comerciais entre Angola e Brasil aumentaram 500% de 2004 a 2007. A Associação dos Empresários e Executivos Brasileiros em Angola (Aebran) calcula que a participação de empresas brasileiras na economia angolana corresponda a mais de US$ 5 bilhões por ano, o que representa quase 10% do PIB. Em Moçambique, onde as companhias brasileiras também estão cada vez mais presentes, a Vale iniciará um dos maiores projetos de exploração de carvão do mundo – os investimentos podem chegar a 40% do PIB do país.

Caminho diferente

Se a televisão brasileira tem forte alcance nos países da África de fala portuguesa, a imprensa escrita não segue o mesmo caminho. Primeiro, porque nesses países a taxa de analfabetismo é elevada, há dificuldade de montar operações de distribuição e é pouco difundido o hábito da leitura de jornais. “A televisão e o rádio são muito mais populares, tanto pela questão da facilidade quanto pela tradição oral dos povos africanos”, diz o professor angolano Carlos Serrano, do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo (USP).

Além disso, a influência dos meios impressos portugueses é bem mais forte em Angola e Moçambique. “Talvez isso tenha a ver com a língua escrita, já que, nesses países, usa-se o português de Portugal”, arrisca o jornalista brasileiro Antônio Alberto Prado, que viveu em Angola por um ano, onde foi consultor na implantação de um jornal local. “A presença dos portugueses nos países africanos nunca se dissolveu, mesmo depois da independência.”

Um sinal de aproximação da imprensa escrita brasileira com o continente africano foi o licenciamento de um dos principais títulos da Editora Abril, a revista “Exame”, para circulação em Angola. Quem comprou a licença foi o grupo angolano Media Nova, que é dono da única emissora de televisão privada local, a TV Zimbo, de uma rádio e de um jornal. A equipe será toda angolana e haverá aproveitamento de parte do material produzido pela edição brasileira. A previsão é que a “Exame Angola” comece a circular ainda em 2010.

Reciprocidade

A influência excessiva das emissoras brasileiras nos hábitos dos países da África lusófona começa a incomodar os mais críticos, o que é mais do que compreensível. Da mesma forma que nós, brasileiros, não vemos com bons olhos o excesso de interferência e a imposição de um padrão cultural externo em nossa sociedade – como atualmente acontece em relação aos americanos –, moçambicanos, angolanos e cabo-verdianos defendem o fortalecimento de seus próprios costumes em detrimento de algo externo. “Tudo isso que passa na televisão brasileira não nos pertence”, diz o jornalista angolano Pedro Cardoso, que trabalha no “Novo Jornal”, um dos mais importantes de Angola. “Temos de criar uma identidade própria. Mas entendo que seja difícil competir com a estrutura e o poder das emissoras estrangeiras.”

Enquanto a África lusófona está bem informada sobre o que se passa no Brasil – e a televisão brasileira certamente tem um papel destacado nisso –, o mesmo não acontece no sentido oposto. Aqui, sabe-se muito pouco sobre o continente africano, que tem uma importância histórica central na formação de nossa nação. Como diz Gilberto Freyre em sua obra-prima Casa Grande & Senzala, “todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo [...] a influência direta, ou vaga e remota, do africano. Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam os nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo o que é expressão sincera da vida, trazemos quase todos a marca da influência negra”.

Na opinião do diplomata e historiador africanista Alberto da Costa e Silva, é como se a relação com aquele continente tivesse ficado parada no tempo dos escravos. “Preocupados com nós próprios, com o que fomos e somos, deixamos de confrontar o que temos por herança africana com a África que ficou no outro lado do oceano, tão diversificada na geografia e no tempo”, afirma ele em seu livro Um Rio Chamado Atlântico. Para o professor Serrano, a imprensa tem sua parcela de responsabilidade. “A mídia brasileira fala muito pouco sobre a África e, quando o assunto é abordado, é normal ocorrer de forma equivocada, superficial e cheia de clichês”, diz o acadêmico. “Geralmente fala-se apenas de tragédias, ditadores ou do lado selvagem do continente, como se isso fosse tudo.”

No noticiário e nos meios intelectuais da Europa e dos Estados Unidos, ao contrário, a África tem espaço cativo. Prova disso é que quase todos os grandes jornais europeus e americanos têm correspondentes no continente, e com frequência são publicados nessas regiões estudos sobre a história da África. Já no Brasil, onde o negro teve papel mais relevante na fecundação do território e na formação do povo, não há o mesmo entusiasmo.

Já existem, porém, tentativas de mudar essa realidade na imprensa brasileira – e a Copa do Mundo na África do Sul está colaborando para acelerar esse processo. Em 2010, as atenções se voltarão para o continente africano. Motivadas tanto pelo evento quanto pelo alcance de sua programação, as TVs Globo, Record e Bandeirantes criaram, pela primeira vez, o posto de correspondente local. “O mundo está mudando, o jeito de vermos o mundo está mudando, e a posição do Brasil também. É natural que a imprensa brasileira passe a olhar mais para a África, e acho que isso será bom para todos”, diz Renato Ribeiro, correspondente da Globo em Johannesburgo.

A primeira emissora nacional a enviar um correspondente para a África foi a TV Brasil, que pertence ao governo. Desde abril deste ano, o jornalista Carlos Alberto Júnior vive em Luanda e percorre vários países cobrindo os principais acontecimentos. “O objetivo é mostrar, com um olhar brasileiro, um pouco da realidade desse continente que fica em frente ao Brasil”, diz ele. “Hoje, quando se fala da África, é sempre com a visão europeia.” A TV Brasil também vem trabalhando para apresentar o continente africano ao Brasil com a “Nova África”, uma série de 26 programas produzida pelo jornalista Luiz Carlos Azenha.

“Isso já é um avanço. Porém, por enquanto são iniciativas isoladas”, diz o professor Serrano. “Nem sempre os jornalistas conseguem, embora tentem, fugir dos clichês. Ainda há muito que avançar.”

 

Comente

Assine