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Vida e artes de um grande sedutor

Há cem anos morria Joaquim Nabuco, político, diplomata e escritor de renome

CECILIA PRADA

Quando, do fundo de suas fotografias, encasacados e encartolados varões ilustres de outros tempos nos encaram, pedindo ou exigindo – parece – que ainda nos ocupemos de suas pessoas e feitos, uma pergunta incômoda vem logo se esboçar: como trazer do passado algum material interessante e vivo, de preferência original, que nossos leitores possam ler com proveito e interesse? Pois estratificados muitos deles parecem estar, imóveis, perdidos em uma avalanche de material laudatório e oficial – nos antigos compêndios de história pátria que nós, mais antigos, nos vimos compelidos a engolir. Ou nos verbetes das enciclopédias.

Entretanto, uma figura do porte do político, diplomata e escritor Joaquim Nabuco (1849-1910), cujo centenário de morte é lembrado neste ano, continua a provocar a curiosidade de muitos – há nas circunstâncias de sua vida, em sua personalidade, muito mais material a explorar, ainda, do que no legado dos livros e documentos que nos deixou para perpetuar sua ação política. O belo homem de 55 anos, alto, magro e elegante, que nos olha lá dos longes de 1905 na sua fotografia oficial de embaixador do Brasil em Washington, parece nos dizer apenas: “Sim, este sou eu, eis-me aí” – mas com tal segurança narcisista, tão fortemente resguardado dentro daquela “impressão aristocrática da vida” que confessava nortear toda a sua existência, que nos sentimos tentados a puxar alguns fios soltos da tessitura autobiográfica que pretendeu espessa.

Sendo apenas uma jornalista dotada de curiosidade, e não historiadora, deixo para os especialistas a análise dessa figura histórica, limitando-me a colocar algumas perguntas: como teria sido construído, e a que custo, aquele seu personagem, o “protótipo do perfeito diplomata”, que nos transmitiu como a prova inegável do sucesso de uma trajetória existencial baseada em um extraordinário poder de sedução pessoal?

E mais: quais os elementos biográficos que teriam determinado esse seu propósito de construir-se como tal?

Quincas, o Belo

O quarto filho dos cinco que teria o aristocrático casal José Thomaz Nabuco de Araújo Filho e Ana Benigna de Sá Barreto Nabuco de Araújo, nascido no Recife em 19 de agosto de 1849, na pia batismal recebeu, em honra do padrinho, o nome de Joaquim Aurélio. Até os 28 anos de idade, porém, seria conhecido nos círculos familiares como Quinquim, menino bonito, inteligente e arteiro, mimado, mas que fora entregue aos quatro meses pelos pais, que estavam de mudança para a Corte, a um casal de padrinhos idosos, ricos e sem filhos. Como se fosse algum gatinho supérfluo de ninhada numerosa, com o qual não precisariam mais se preocupar. O padrinho morreu logo, e o menino foi criado até os oito anos pela madrinha, com exagerado mimo e amor, no engenho Massangana, no interior de Pernambuco. Só então, após a morte de dona Ana Rosa Pereira de Carvalho, de quem se sentiria órfão a vida toda, foi conhecer os pais verdadeiros e os irmãos, e com eles viver.

Embora seja grande o número de biografias de Nabuco, como a escrita por sua filha Carolina em 1929, ou a de Luís Viana Filho, de 1973 (ampla e detalhada), ou mais recentemente, para citar somente uma, a de Angela Alonso, Joaquim Nabuco – Os Salões e as Ruas (Companhia das Letras, 2007), limitam-se seus autores a relatar esse fato biográfico sem comentá-lo, a exemplo do que o próprio Nabuco fizera em sua autobiografia, Minha Formação, escrita em 1900. Sem perceber, parece, a importância que a rejeição tivera na formação de sua personalidade, a qual certamente persistiu por toda a sua vida como uma sombra que o impeliu a estruturar como defesa uma personalidade de grande sedutor, um ser superior, disposto a vencer todas as circunstâncias para impor sua vontade (e seus caprichos), capaz como nenhum outro de estabelecer complicadas negociações diplomáticas ou políticas – para sua maior glória ou em proveito de uma causa nobre, no seu caso, a da Abolição.

A regra é simples, inexorável: todo ser que não se sente naturalmente amado, de duas, uma – ou se faz tirano e conquista seu espaço pela força, ou tem de exercer compulsivamente seu poder de sedução para se fazer amar. Para felicidade geral e glória de seu país, o narcisismo de Joaquim Nabuco o fez escolher a segunda opção. Viana Filho, sem aprofundar o tema da rejeição, fala da grande dificuldade de adaptação do menino à família que lhe era estranha, aos irmãos com quem pela primeira vez na vida tinha de disputar o lugar que lhe cabia. Só então, também, começou a se inteirar da alta posição política do pai, Nabuco de Araújo, que de 1850 a 1878 (data de sua morte) ocuparia sucessivamente os cargos de deputado federal, governador da província de São Paulo, ministro da Justiça em três períodos, e ascenderia à função de conselheiro de Estado. Após dois escassos anos de uma convivência bastante difícil com a família, Quinquim teve novo trauma – foi enviado a um colégio de Petrópolis, mais tarde descrito por ele como “uma caserna infantil”. Dali voltou ao Rio de Janeiro, mas somente para outro internamento, desta vez no tradicional Colégio Pedro II, onde – como diz Angela Alonso – esteve dos 10 aos 15 anos, “formando-se para cortesão”.

Curiosamente, foi do filho “rejeitado” que se ocuparia mais o pai, desde o momento em que reconheceu nele qualidades físicas e intelectuais capazes de transformá-lo em seu sucessor político, seu alter ego – segundo a tradição da família, que pertencia à aristocracia dita “do talento”, ou “do trabalho”. Isto é, composta por homens que exerciam profissões e ocupavam cargos importantes – políticos, juízes e juristas, senadores, altos funcionários do Império –, sem contar, entretanto, com uma sólida fortuna. Na juventude, o jovem mostraria certa rebeldia, em desacordo com as opiniões políticas do pai – se proclamaria mesmo “positivista”, enquanto o pai era conservador, mas logo mais faria dele seu modelo, seu principal guia, sua referência principal na vida. Com sua mãe biológica, dona Ana Benigna, manteria uma atitude bastante distante e fria.

Foi aluno mediano, apenas, no curso secundário e no de direito, iniciado em São Paulo e terminado no Recife, em 1870. E teria contado mesmo com certa indulgência dos docentes, que não se atreviam a reprovar o filho de tão ilustre pai... Desde 1866, porém, exercia, amadoristicamente, um jornalismo de tipo político. Em São Paulo, foi colega de Ruy Barbosa e de Castro Alves – dizem que desenvolveu com este uma rivalidade, seja pela aparência física, seja pelo poder de fazer versos. Mas o poeta do Navio Negreiro, morto aos 24 anos, teve tempo para entrar para sempre na literatura brasileira, ao passo que Nabuco foi apenas poeta frustrado – uma de suas grandes desilusões se deu aos 15 anos, quando mostrou suas poesias a Machado de Assis, dez anos mais velho e já em pleno exercício profissional. Machadinho não o encorajou a continuar a versejar. Permaneceriam sempre amigos, contudo, e juntos fundariam a Academia Brasileira de Letras, em 1897.

Recebeu de alguns colegas o apelido irônico de Quincas, o Belo, pelo exagerado apuro e narcisismo demonstrado no vestir. Com seu irmão Sizenando, sete anos mais velho, fez parte daqueles dândis seguidores do estilo “chique vaidoso” que vinha da Europa e do qual foram expoentes os escritores Oscar Wilde e Marcel Proust. Desse grupo faziam parte inclusive Juca Paranhos – futuro barão do Rio Branco – e outros rebentos de famílias ilustres, caracterizados na mocidade pela boemia, aventuras galantes e boa vida, mas que com a maturidade se transformariam em homens públicos sisudos e importantes. O jovem Joaquim sabia valorizar suas qualidades físicas – tinha um metro e oitenta e seis, coisa rara, na época, para nosso povo tropical, corpo bem-proporcionado, fronte ampla, belos olhos e traços finos, um tanto femininos, diziam. Mas exagerava na dose: usava constantemente uma pulseira de ouro, definida pelos inimigos como “cousa de senhoras”. E mandava o criado buscar todos os dias uma rosa para ornar sua botoeira, por trás da qual fizera afixar um minúsculo cálice com água, para manter o viço da flor.

A bela de ouro maciço

Para o dândi dotado de um romantismo tardio que o fazia sonhar somente com amores ilustres (o de uma rainha, talvez?)... a grande paixão amorosa só poderia surgir encarnada em outra personagem igualmente complicada e narcisista: Eufrásia Teixeira Leite, herdeira riquíssima que tanto do lado materno como do paterno inseria-se em famílias de grandes cafeicultores do vale do Paraíba e era neta e sobrinha de barões do Império. Seu pai, um grande capitalista que de fazendeiro passara a banqueiro, formara-a, por não ter herdeiro homem, para administrar a imensa fortuna da família. Dizem que no leito de morte ele a fizera jurar que nunca se casaria, para que seus bens não caíssem nas mãos de algum marido dissipador.

Quincas, com 24 anos, e Eufrásia, com 23, iniciaram o namoro em um navio que os levava à Europa, em 1873. Ele para passar um período de regalo financiado pelo pai, antes de escolher alguma carreira, e ela para fixar residência em Paris, onde permaneceria durante 38 anos, sendo conhecida na alta sociedade como “a dama dos diamantes negros”, valiosíssimas joias que para maior segurança fazia as empregadas coserem nos seus vestidos e cabelos. Noivaram várias vezes e tornaram-se depois amantes, no intervalo de 14 anos (de 1873 a 1887), entremeados de grandes crises, rompimentos, reatamentos – uma paixão bastante detalhada por seus biógrafos e transformada agora em romance por Claudia Lage (Mundos de Eufrásia, Record, 2009).

Enquanto Nabuco pai encorajava o casamento com a herdeira rica, a família desta opunha-se totalmente – a irmã mais velha de Eufrásia, Chiquinha, que morava com ela em Paris, foi elemento preponderante de discórdia na questão, zelosa de que a irmã não descumprisse o juramento feito ao pai. Mas não foi esse o único motivo de desacordo entre os amantes. Embora quisessem se casar, nem um nem outro conseguia vencer um dilema: Eufrásia não desejava de jeito nenhum residir no Brasil, ao passo que Joaquim, embora dado a viagens e aventuras, perpetuamente com a mala desfeita, sabia que somente no Brasil fixaria raízes. Anos mais tarde, registrava ainda essa contradição em seu diário, em 1891, quando chefiava nossa legação em Londres: “Morrer de nostalgia? Aqui nos falta a pátria, lá nos falta a liberdade. Comment faire? [como fazer?]”

Além de não querer abrir mão de sua carreira de eterno sedutor, Joaquim sentia-se humilhado pela perspectiva de se tornar apenas o consorte daquela grande mulher de negócios que já ia conseguindo, apesar da juventude, duplicar o grande patrimônio que lhe fora legado. Entre ires e vires, tormentos e delírios amorosos, o caso foi prosseguindo até que, próximo dos 40 anos, Joaquim resolveu encerrá-lo definitivamente para casar-se, em 1889, sem grande paixão, com outra herdeira, certamente, mas de muito menor relevo quando comparada a Eufrásia – a tímida e doce Evelina Soares Ribeiro, também filha e neta de barões. Dezesseis anos mais nova do que ele, ela se dispôs a tornar-se a “âncora” de sua vida, dando-lhe cinco filhos e levando-o inclusive de volta à religião. Em suas reflexões (publicadas apenas em francês), confessaria Nabuco: “Nas coisas fundamentais sobretudo, em que ninguém escolhe por si, família, nacionalidade, religião, amor, vocação, o melhor é conformar-se”.

Está tudo dito aí: “...em que ninguém escolhe por si”.

Fiel à sua paixão, Eufrásia nunca se casou. Morreu em 1930, já octogenária – regressara ao Brasil somente dois anos antes –, deixando em títulos, propriedades, apólices, depósitos bancários, uma fortuna que correspondia ao preço, na época, de 1.850 quilos de ouro. Sua profissão era declarada (fato único) a de “milionária”. Mas, segundo disposição testamentária, levava consigo, escondido no caixão, seu maior tesouro: as muitas cartas apaixonadas de um belo homem chamado Joaquim Nabuco.

Nasce o político

Com a morte do pai, Joaquim é obrigado a trabalhar para sustentar a si e à família – a mãe viúva não contava sequer com uma pensão. Embora detestasse a idéia da carreira política, não pôde fugir a seu destino e chegou ao Parlamento em 1878, após uma campanha tão dura que acabou contraindo febre tifoide. Assumiu sua cadeira com um atraso de dois meses, mas marcou a entrada na Câmara bem ao seu estilo, usando roupas claras e um chapéu de palha, em contraste absoluto com a sinistra sobriedade das sobrecasacas escuras e cartolas, obrigatórias na instituição. Permaneceu em silêncio durante quatro sessões, mas na quinta começou a discursar, com grande eloquência e magnetismo pessoal. E não parou mais. Em tempos em que um discurso de apenas duas horas não prestava, tornou-se orador inigualável – na descrição de Afonso Celso Júnior, foi reconhecido por seus pares como “nobre conjunto de força e graça, delicado gigante [...] desses que a natureza parece fabricar para modelo, com cuidado e amor”. E tinha sobre outro grande orador, Ruy Barbosa, uma vantagem: não fazia a audiência dormir.

Encontrou na Câmara aberta ainda uma agenda reformista datada da década anterior e que pretendia elaborar uma “modernização” econômica e política do país. Como liberal, embora monarquista, empenhou-se na causa da democratização eleitoral, pois queria estender o direito de voto aos analfabetos, agregados e dependentes (nunca se preocupou, porém, com a exclusão das mulheres...). Clamava pela extinção dos privilégios aristocráticos de sua própria classe e pela separação entre Igreja e Estado. Já em março de 1879, contudo, começou a concentrar esforços na grande causa da Abolição. Aliou-se a José do Patrocínio e André Rebouças e enquanto estes agiam diretamente sobre a população, nas ruas, tornou-se o porta-voz da causa dentro do Parlamento. Não a via isoladamente, como um item a mais da agenda parlamentar, mas como necessidade impreterível para que a economia do país não se desintegrasse, e ligava-a à reforma agrária, que dividiria os latifúndios em pequenas propriedades, segundo a teoria da “nacionalização da terra”, defendida por Rebouças.

A década que culmina com a efetiva Abolição, em 1888, é o período áureo de Nabuco – tanto em seus escritos como na oratória dá curso a uma ação política eficiente, que inclusive instrumentaliza aquele savoir faire que a vida social nos altos ambientes do poder lhe dera. Assim, consegue superar em 1882 a depressão por não ter sido reeleito deputado e aproveita para ampliar em mais um período de residência em Londres (até 1885) sua ação, tornando-se correspondente do “Jornal do Commercio” do Rio de Janeiro, publicando seu importante livro O Abolicionismo, em 1883, recrutando para reforço de sua causa os mais importantes políticos e intelectuais europeus – a começar pelos ingleses da Anti-Slavery Society, da qual foi membro correspondente. Retomando em 1885 uma vida parlamentar agitada por mil reveses, recrudesce seu ardor abolicionista até 1888. Após a Lei Áurea, sente-se momentaneamente “esvaziado”, mas concentra-se na defesa do periclitante regime monárquico. Proclamada a República, quer retirar-se da vida pública, mas seu temperamento não permite resistir ao convite do presidente Campos Salles, e aceita passar seus últimos anos como embaixador, em Londres e em Washington.

Os que desejam mergulhar na sistemática de sua ação política acharão em livros publicados recentemente, como a excelente tese de livre-docência de Izabel Andrade Marson pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – Política, História e Método em Joaquim Nabuco: Tessituras da Revolução e da Escravidão, Edufu, 2008 –, abundância de material para reflexão. Quanto a mim, jornalista curiosa, tenho ainda várias perguntas a colocar ao homem sensível, de uma vulnerabilidade que certamente procurava a todo custo esconder sob os requintes narcisísticos exagerados. E que em seus livros principais, o autobiográfico Minha Formação e Um Estadista do Império, biografia de seu pai, não expôs, nem sequer abordou, nenhuma das questões de foro íntimo que certamente mais o atormentavam. Deixou delas apenas precárias pistas, no imenso material escrito que nos legou. Como esta, lançada a esmo em seus volumosos Diários: “Posso eu no fundo ser inteiramente outro do que pareço em sociedade?”

 

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