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Os segredos das águas catarinenses

Mergulhadores encontram embarcações antigas no litoral de Santa Catarina

MILU LEITE


Punhais no museu improvisado
do PAS / Foto: Felipe Obrer

Calcula-se que haja mais de 20 embarcações naufragadas nas águas que circundam a ilha de Santa Catarina (onde se localiza a porção maior e mais povoada da cidade de Florianópolis, que tem também uma parte continental). Cada uma delas certamente mereceria ter sua história contada. Ocorre, no entanto, que até o momento apenas duas foram encontradas: uma na praia dos Ingleses (no norte da ilha), outra na baía de Naufragados (no sul). Para aqueles que, desde então, se empenham em reconstituir os fatos para explicar esses naufrágios, a tarefa implica mergulhar num passado longínquo, repleto de intrigas, lutas, cobiça e aventuras tresloucadas, em que os grandes personagens são navegadores oficialmente reconhecidos, corsários e piratas.

Os trabalhos estão sendo tocados por equipes independentes entre si e encontram-se em estágios distintos. O Projeto de Arqueologia Subaquática (PAS), responsável pelo estudo do sítio descoberto em 2005 na praia dos Ingleses, está mais adiantado por múltiplas razões – licença já obtida para exploração subaquática, localização, aporte de verba, infraestrutura, mão de obra etc. – e vem colhendo resultados valiosos. Em novembro, o arqueólogo Francisco Noelli, coordenador científico do projeto, divulgou que foram reunidos elementos (físicos e históricos) que permitem chegar mais perto da identificação da nau estudada. Segundo artigo encaminhado pelo arqueólogo à reportagem de Problemas Brasileiros, “é grande a probabilidade de ser o barco arribado por Thomas Frins em 1687”.

É importante que se diga que foram necessários cinco anos de trabalho e pesquisas para chegar a essa afirmação. É fundamental acrescentar ainda que quem apontou o caminho para que a hipótese da nau de Frins, um pirata inglês, fosse considerada foi o historiador Amílcar D’Avila de Mello, colaborador do projeto e autor de uma das obras mais importantes sobre o tema. O seu Expedições e Crônicas das Origens – Santa Catarina na Era dos Descobrimentos Geográficos é hoje fonte de consulta obrigatória. Noelli, por sua vez, conseguiu descobrir as linhas que ligavam Frins aos piratas Edward Davis e François Groniet, conexão que foi indispensável para que, com o cotejo de documentos, se chegasse ao naufrágio de Frins.

Embora a equipe do PAS já tenha escavado 220 metros quadrados dos 600 necessários, ainda não foi encontrado nenhum artefato que identifique nominalmente o barco. É verdade que também não foram localizadas provas de que a embarcação comandada por Frins seja a mesma que está sendo explorada no sítio dos Ingleses, mas muitas evidências levam a crer que se trate da nau comandada por esse pirata. Assim, o que se tem são combinações de fatos com evidências. E o apaixonante nessa história é justamente acompanhar como os elementos históricos vão se juntando a objetos e fragmentos de modo a compor um todo.

O resultado é a formação de um painel da história de Santa Catarina, do Brasil, da Espanha, de Portugal e das rotas de navegação, revelado ora pelos achados, ora pelos documentos. “Estamos levantando a bibliografia internacional sobre naufrágios, armadores autônomos, companhias de comércio e suas diversas rotas, tráfico de escravos e outras”, informa Noelli em seu artigo.

Neste caso, a hipótese norteou as consultas feitas em bibliotecas no Brasil e no exterior, em busca de relatos e registros que indicassem, num primeiro momento, se uma nau ibérica – já que o barco havia sido capturado dos espanhóis –, com o presumido tamanho da que fora encontrada no fundo do mar, teria de fato passado pela praia dos Ingleses.

Os registros náuticos e depoimentos acerca da viagem de Frins afirmam que o barco viajava isolado e tripulado por oito ingleses; procurava por outros do mesmo país, dos quais tinha se perdido na costa peruana; carregava uma carga de vinho (em botijas de cerâmica de 1 arroba); voltaria para o mar do Norte (Atlântico) pelo estreito de Magalhães, e, por fim, a embarcação havia sofrido vários reveses entre junho de 1686 e junho de 1687. Não há nenhum registro direto da passagem do barco pela praia dos Ingleses.

Cada um dos aspectos levantados tem ressonância com as descobertas feitas até o momento. A escavação arqueológica revelou “provas materiais originárias da costa pacífica, do noroeste da América do Sul e da América Central, que coincidem com a rota dos piratas em questão”, informa o artigo. A mais evidente é um metate retangular, de pedra calcária, empregado na América Central para moer vegetais. Há ainda cacos de botijas cuja procedência coincide com as da nau de Frins e, no lastro, foi descoberto um fragmento cerâmico de vasilha indígena, “com características que remetem às costas do Panamá, Colômbia e Equador”. As escavações mais recentes trouxeram à luz objetos que comprovam a presença de ingleses no barco. O mais relevante deles é uma tampa de peltre (um tipo de liga metálica) com signos heráldicos da Rosa Tudor, símbolo da realeza britânica.

Ponto estratégico

A história da chegada da embarcação à baía catarinense seria a seguinte: ela teria se aproximado da baía norte já avariada, muito provavelmente para fazer os reparos necessários. Era bastante comum àquela época barcos pararem para consertos na ilha, mas em geral o faziam na baía sul. Segundo narra o historiador João Carlos Mosimann, no livro Porto dos Patos – A Fantástica e Verdadeira História da Ilha de Santa Catarina na Era dos Descobrimentos, logo a ilha assumiu “a condição de ponto estratégico na rota das expedições exploradoras pela sua localização privilegiada”.

Frins e seus homens navegavam há meses, desgarrados de uma frota maior, composta por ingleses e franceses, e tentavam reencontrar as outras naus. Cruzaram com alguns navegadores a quem relataram esse fato e outros. Há registros de depoimentos com esse teor. Em certo momento, foram atacados. Supõe-se que, em seguida, tenham tentado aportar na ilha, e que a nau tenha então batido num banco de areia e afundado. Os homens teriam sido capturados e a carga (pilhada de outros barcos), confiscada por Francisco Dias Velho, fundador oficial do primeiro assentamento da ilha. Não se sabe quando teriam sido soltos. O que se conhece, porém, é que em 1689 Frins retornou à ilha e matou Francisco Dias Velho. Sendo verdade todo o resto, a descoberta da nau de Frins viria explicar a razão do crime cometido pelo pirata: vingança.

Não restam dúvidas a respeito da importância da descoberta. No entanto, o PAS ainda luta para sobreviver. Os recursos repassados ao projeto pela Fapesc (Fundação de Apoio à Pesquisa Científica e Tecnológica do Estado de Santa Catarina), cerca de R$ 2,5 milhões, não são suficientes para a totalidade das pesquisas, exploração, escavações e conservação do sítio e dos artefatos. Segundo Marcelo Moura, coordenador-geral do PAS, seriam necessários ainda cerca de R$ 2 milhões. “Nós só exploramos 40% do sítio. Imagine o que ele ainda tem!” Os pesquisadores não tocaram na área central nem na proa, que estão enterradas.

Em um giro pela sede do projeto (dividida em laboratório de restauro, três contêineres enormes transformados em escritório e minissalas de acondicionamento, e um pequeno museu, além de enormes tanques na área externa), é possível ver uma infinidade de artefatos de tamanhos variados passando por diferentes etapas de avaliação: desde enormes pedaços de madeira (carvalho vermelho, entre outras) até minúsculas miçangas ainda misturadas a muito cascalho. O trabalho de separação desse material miúdo exige paciência. Os custos com o processo de limpeza das concreções são elevados (R$ 40 para cada exame de raios X).

Quebra-cabeças

No laboratório de restauro, Cristiane Christakis já tem os olhos bem treinados para analisar os cacos de cerâmica e destiná-los às botijas que monta como se fossem quebra-cabeças. Rodeada por cerca de 13 mil fragmentos, ela conta que já foram identificados mais de 200 gargalos. Foram mais de 1,2 mil mergulhos, divididos em duas etapas de escavação: março de 2004 a fevereiro de 2005 e fevereiro a maio de 2009, com dois a quatro mergulhadores em ação. A equipe tem apoio logístico fora da água, que inclui o uso de tanques de oxigênio com tubos que chegam até os mergulhadores no sítio subaquático. Isso só é possível porque ele está localizado próximo à praia (a cerca de 70 metros).

A proximidade, no entanto, também tem aspectos negativos. A área está submetida aos impactos causados por banhistas, barcos e pela pesca artesanal de arrasto. Além disso, “o balanço sedimentar do local é influenciado pelos ventos do quadrante sul, que alimentam a enseada com areias das dunas das Aranhas”, informa Noelli. Esse conjunto de fatores age sobre o sítio e tem implicações não apenas sobre os trabalhos como também sobre o material escavado.

Como alerta Moura, ainda falta muita coisa – tanto do ponto de vista físico quanto teórico. Para afirmar com certeza que se trata do barco de Thomas Frins é necessário estender a base de dados do sítio e terminar o levantamento das fontes escritas. É preciso também concluir a análise do lastro (para elucidar as rotas e paradas feitas pela nau) e das cerâmicas de que são feitas as botijas (para determinar sua procedência), e dar prosseguimento à coleta e análise de artefatos. Há necessidade ainda de localizar e consultar fontes escritas de valor inquestionável, como, por exemplo, as listas de tripulantes de duas embarcações que zarparam oficialmente da Inglaterra em 1683.

Vale ressaltar que os “descobridores” da nau abriram mão da porcentagem a que teriam direito (40%) sobre os achados e pretendem construir o Museu de Arqueologia, História e Cultura Marítima de Santa Catarina. A iniciativa traria lucros em todos os âmbitos: cultural, científico e econômico. Para ter uma ideia de quão valiosa ela é, basta saber, por exemplo, que o pequeníssimo museu improvisado que funciona na área já recebeu, sem a ajuda de nenhuma propaganda, mais de 20 mil visitantes, segundo dados divulgados pelo PAS.

Clima de disputa

Porém, se a maré está para peixe no norte, no sul o cardume ainda não apareceu. O pessoal envolvido no Projeto Barra Sul aguarda desde 2007 a licença para exploração do sítio arqueológico localizado na baía de Naufragados. Em 2005 eles obtiveram o documento que autoriza apenas pesquisar na área, e é o que têm feito desde então. As expectativas a respeito da identificação da nau são enormes e revelam um clima de disputa com o grupo de pesquisadores dos Ingleses. E, se as especulações forem mesmo comprovadas, a descoberta será a mais importante de toda a história da arqueologia subaquática do Brasil.

O mergulhador Gabriel Corrêa não tinha a menor ideia disso quando avistou, em 2004, uma âncora de mais de 4 metros de comprimento no fundo do mar e resolveu contar ao amigo Nei Mundi (especialista no tema) a descoberta. Passados cincos anos de muita dedicação e estudos, é o próprio Gabriel quem afirma hoje, já como coordenador do Projeto Barra Sul: “Alguns indícios levam à suspeita de que se trata da nau capitânia do veneziano Sebastião Caboto”, um dos maiores navegadores do século 16, piloto-mor da Espanha que, sucedendo a Juan Díaz de Solís (e este a Américo Vespúcio), teve papel fundamental na descoberta e exploração do Novo Mundo. “De uma dúzia de armadas espanholas organizadas oficialmente com essa rota do Atlântico Sul [pela costa do Brasil e adiante, sempre com a ideia de encontrar uma passagem que facilitasse o comércio de especiarias com as Índias], de 1515 a 1540, oito tiveram embarcações estacionando e abastecendo-se no Porto dos Patos”, afirma o historiador João Carlos Mosimann em seu livro.

Isso não quer dizer, contudo, que outras embarcações não pararam no mesmo lugar. No começo do século, sabe-se, ocorriam muitas viagens secretas, sem registros de aportamento. Afinal, havia uma gama de interesses em jogo e os reinos de Portugal e Espanha disputavam a corrida lançando mão, muitas vezes, de meios pouco ortodoxos. Era comum, por exemplo, navegadores portugueses jurarem fidelidade à coroa e viajarem secretamente para nobres espanhóis em busca de ouro e prata no Novo Mundo. A notícia de que, em 1516, Solís tinha se deparado com riquezas na serra do rio da Prata corria pelos quatro cantos e não tardou que muitos outros saíssem em busca do mesmo destino, de forma clandestina ou declarada. A passagem pelo Porto dos Patos (ilha de Santa Catarina) se fazia obrigatória, ainda que não registrada. O local abrigava um número cambiante de náufragos, que se somavam aos índios.

Evidências

E o que leva os pesquisadores à formulação de hipótese tão animadora? Três âncoras e um canhão de bronze, além de fotos e croquis da “massa” submersa e do pouco que se revela aos mergulhadores, que pesquisam o material nas águas mas não podem retirar nada dali enquanto a licença para exploração não sai. Por isso, eles fizeram fotos e enviaram pela internet para o arqueólogo Pedro Urbano, do Instituto Andaluz, na Espanha. De acordo com Gabriel, Urbano é especialista no tema e afirmou que há 99% de chances de tratar-se mesmo de uma âncora do século XVI.

A certeza, entretanto, não chancela a identificação do barco, pois a âncora em questão foi encontrada a 300 metros dos demais achados e estes, por sua vez, estão afastados do barco. Isso significa que ela e os demais artefatos podem pertencer a outra embarcação ainda não localizada. Porém, outras evidências dão suporte à primeira hipótese.

Segundo depoimentos prestados por sobreviventes do naufrágio da nau de Caboto, o barco, de cerca de 30 metros, bateu num baixio e perdeu três âncoras. As âncoras encontradas condizem com o tamanho da embarcação referida, e o mesmo se pode dizer da “massa” submersa na baía.

Suspeita-se que Caboto estivesse se dirigindo ao rio da Prata e tenha decidido fazer uma parada no Porto dos Patos, adentrando a baía sul. Por razões ainda não totalmente esclarecidas, ele resolveu ancorar “entre três pequenas ilhas que estavam junto à dita ilha de Santa Catalina”, conforme registro de época, em busca de um local onde pudesse conseguir madeira para construir um novo batel. Segundo Mosimann, as três ilhas referidas poderiam ser as duas que hoje compõem a do Papagaio e a Araçatuba, “contíguas à ponta dos Naufragados”. Durante o trajeto, a nau chocou-se com o baixio, tombou sobre o costado, encheu-se rapidamente de água e soçobrou. Não houve mortes e inúmeros tripulantes prestaram depoimento na investigação levada a cabo pela coroa espanhola. A atitude de Caboto, segundo os relatos, não foi condizente com o que se esperava de um comandante de armada. Ao ver que o barco afundaria, foi o primeiro a abandoná-lo, fugindo num batel junto com outros três oficiais para a ilha do Papagaio Grande. O salvamento ficou por conta de outros tripulantes. Quando tudo se resolveu, Caboto reuniu os homens e foram todos para a ilha de Santa Catarina, onde permaneceram por mais de cem dias. Durante a estada, conviveram com os índios carijós e com os náufragos que ali já viviam. Ergueram algumas construções, começando por uma igreja onde celebraram no dia 11 de novembro a primeira missa da ilha na “primeira igreja desta parte da América”, segundo o historiador argentino Enrique de Gandía, citado no livro de Mosimann.

Fica claro, portanto, que, confirmando-se as suposições até agora feitas, a exploração da nau colocaria pesquisadores brasileiros e espanhóis em contato com um dos mais ricos momentos da história das expedições no século 16.

A Fapesc destinou R$ 400 mil para o início dos trabalhos. A área onde está o sítio sofre o impacto de ventos e correntezas. Os pesquisadores só chegam até ela de barco e necessitam de equipamentos específicos. Na fase atual, a equipe está fazendo o mapeamento submarino de toda a área a ser analisada, aliando a metodologia arqueológica tradicional à prospecção com modernos aparelhos, entre eles um magnetômetro de prótons, detectores subaquáticos de metal e sonar de varredura lateral.

O aporte é irrisório se comparado aos R$ 2,5 milhões já concedidos ao PAS, que também são insuficientes para a totalidade do projeto dos Ingleses. De ambos os lados, o que se tem é entusiasmo e disposição. Resta saber de onde sairão os recursos para levar adiante as pesquisas.

 

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