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O centenário do mestre Miguel Reale

Jurista, filósofo, educador, escritor e político, ele teve papel ativo na vida do país

HERBERT CARVALHO


Miguel Reale / Foto: Arquivo pessoal

Jurista reconhecido internacionalmente pela autoria da Teoria Tridimensional do Direito e nacionalmente como supervisor da comissão que elaborou o atual Código Civil Brasileiro, em vigor desde 2003, Miguel Reale (1910-2006) tem seu centenário de nascimento comemorado neste ano por todos aqueles que travaram contato com a vida e a vasta obra multifacetada deste brasileiro que também como filósofo, educador, escritor e militante político influenciou alguns dos principais acontecimentos do Brasil no século 20.

Miguel Reale nasceu na pequenina cidade de São Bento do Sapucaí, vizinha de Campos do Jordão, “que teima em ser paulista além da Mantiqueira”, como ele próprio define no capítulo de abertura do primeiro volume de suas memórias (Destinos Cruzados, Editora Saraiva, 1986). Descendente de imigrantes que vieram do sul da Itália com o propósito de aqui instalar uma colônia de fruticultores, que não chegou a vingar, era filho do médico Brás Reale e de Felicidade da Rosa Góis Chiaradia.

Após uma infância tranquila na mineira Itajubá, onde o pai atuava como clínico e cirurgião, Reale veio para São Paulo como interno daquele que até hoje é um dos principais colégios particulares da cidade (na Alameda Jaú, a dois quarteirões da Avenida Paulista), o Dante Alighieri. Ali, na época, além da rígida disciplina, só se falava italiano, já que fora concebido como escola preparatória para cursos superiores a realizar na Itália. Estudando matérias como história da filosofia e tomando contato com textos e autores clássicos que iam de Platão a Karl Marx, Reale amadurece a ideia de prestar exames vestibulares para ingressar na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a velha e sempre nova Academia, com a qual estabeleceria laços que não se romperam sequer com a morte: hoje uma das salas de aula leva seu nome e nela figura seu busto em bronze. Uma decisão que, se por um lado frustrou o desejo paterno de ter um filho médico para manter a tradição mais que centenária da família, de outro correspondia à vocação natural e à bagagem cultural do jovem que não teve a menor dificuldade em passar por uma banca de cinco professores que examinavam latim, português e literatura brasileira, história da filosofia, análise lógica, história geral e do Brasil.

Integralismo

Sua entrada na faculdade coincide com a Revolução de 1930 e com o declínio da Burschenschaft, ou Bucha, a sociedade secreta de estudantes e antigos alunos que comandou o Brasil durante toda a República Velha, fornecendo de seus quadros quase todos os presidentes da República do período (ver PB nº 388). Imbuído de ardor juvenil e de convicções “marxistas revisionistas”, como as definiu meio século depois – detalhando seus esforços para conciliar liberalismo com socialismo –, Reale alista-se como voluntário no batalhão universitário durante a Revolução Constitucionalista de 1932, atuando como sargento na linha de frente.

Findos os combates, ele adere, em 1933, ao Movimento Integralista, lançado pelo escritor Plínio Salgado, um dos expoentes da Semana de Arte Moderna de 1922, oriundo, como Reale, de São Bento do Sapucaí, embora não tivessem chegado a se conhecer na cidade natal.

Desmantelada em 1938 após uma tentativa de golpe de Estado, a Ação Integralista Brasileira (AIB) teve vida efêmera, porém marcante, pois dela participaram figuras que iriam se destacar até mesmo no lado oposto do espectro político, como San Tiago Dantas e dom Helder Câmara.

Seus integrantes se organizavam em milícias, usavam camisa verde para evocar as matas brasileiras, saudavam-se com a mão espalmada para o alto aos gritos de “Anauê!” (“Eis-me aqui”, em tupi), tinham como símbolo o sigma – escolhido por Reale –, letra grega usada em matemática como sinal de somatório, e participavam de combates de rua contra os comunistas. Entretanto, para Miguel Reale, que ocupou a posição de secretário nacional de doutrina do movimento – a terceira na hierarquia, ao lado de Plínio Salgado e do também escritor Gustavo Barroso –, o integralismo brasileiro, embora organizado em moldes semelhantes e na mesma época do nazismo e do fascismo, destes diferia por não ser antissemita nem admitir em suas milícias o porte de revólveres ou porretes.

Da experiência integralista, que incluiu a direção do diário “Acção”, restariam obras como O Estado Moderno e O Capitalismo Internacional, além de ABC do Integralismo e Perspectivas Integralistas, duas prisões e um breve exílio na Itália, onde se desiludiria com o fascismo de Mussolini.

Em 1940, Miguel Reale escreve os livros Fundamentos do Direito e Teoria do Direito e do Estado, nos quais estabelece a teoria segundo a qual o direito é resultado de três elementos: o fato, a norma e o valor. De uma maneira simplificada significa que um juiz, ao julgar um caso (o fato), aplica não apenas a lei (a norma), mas também decide de acordo com valores morais, como ocorre nos casos em que os direitos de integrantes de casais homossexuais são reconhecidos pelos tribunais, embora não previstos expressamente pela lei.

Também nesse ano tenta ingressar como professor na mesma Faculdade de Direito em que se formara em 1934, mas é barrado pela Congregação dos Professores, ainda dominada pela Bucha, como denuncia o próprio Reale em suas memórias. Só é nomeado catedrático em 1941 por influência direta de Getúlio Vargas, que o recebe no Palácio do Catete acolhendo como aliado o adversário de outrora. Getúlio ainda indicaria Reale para o Conselho Administrativo do Estado de São Paulo, órgão que durante o regime ditatorial do Estado Novo exercia as funções da atual Assembleia Legislativa. Apesar dos cargos e funções políticas que ocupou, Reale nunca se afastaria do magistério, que começara a exercer ainda como estudante e que o levaria, por duas vezes (em 1949 e 1969), a envergar o colar de magno reitor da Universidade de São Paulo (USP).

A balança e a espada

Com a redemocratização do país, em 1945, não adere ao Partido de Representação Popular (PRP), que Plínio Salgado fundara para reunir os remanescentes do integralismo. Após uma frustrada tentativa de criar um Partido Popular Sindicalista, que não decola por falta de votos, Reale opta pelo Partido Social Progressista (PSP), capitaneado por Adhemar de Barros, que se elege governador de São Paulo em 1947 e o nomeia secretário da Justiça do estado. Nessa função, o ferrenho anticomunista Reale não titubeia em firmar aliança com os integrantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que com 11 deputados superava a bancada de apenas 9 do PSP na Assembleia Legislativa. Mais do que isso, nos anos seguintes ele atuaria ao lado do intelectual comunista Caio Prado Júnior no Instituto Brasileiro de Filosofia, que presidiu por duas vezes.

Na década de 1950, dedica-se a escrever livros sobre direito e filosofia, chefia a delegação brasileira que combateu o trabalho escravo em reunião da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e funda a Sociedade Interamericana de Filosofia. Em 1963, novamente secretário da Justiça nomeado por Adhemar de Barros, participa intensamente das articulações que derrubam o presidente João Goulart, no ano seguinte.

Durante a ditadura recusa, segundo afirma no segundo volume de memórias (A Balança e a Espada, Editora Saraiva), dois convites para ser juiz do Supremo Tribunal Federal, mas colabora com os militares na revisão da Constituição de 1967 e na elaboração do Tratado de Itaipu, com o Paraguai.

Eleito em 1975 para a cadeira número 14 da Academia Brasileira de Letras, participa do Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, Sesc e Senac durante as décadas de 1960 e 70, quando também escreve artigos para Problemas Brasileiros. Em 2002, aos 91 anos, profere uma palestra no conselho sobre o Código Civil que ajudara a elaborar, na qual afirma profeticamente: “Não pensem que porque houve a queda do Muro de Berlim tenha desaparecido do cenário humano a questão social”. Morre em 2006 de enfarte, deixando os filhos Miguel Reale Júnior, ex-ministro da Justiça e professor de direito penal, e a historiadora Ebe Reale.

 

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