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A arte de Romero

Romero de Andrade Lima, que apresentou o espetáculo Presépio da Paz no Sesc Belenzinho, fala de seus novos projetos e de sua batalha para conciliar teatro e artes plásticas

Tenho duas vertentes de trabalho. Em Recife, onde passo no mínimo dez horas por dia pintando, desenhando ou fazendo capa de livros, realizo o meu trabalho de operário. Há momentos em que estou completamente inserido no ato da criação e há outros em que libero um pouco a cabeça para pensar em outras coisas. Neste tempo, que é também um tempo de criação, porque não posso estar ligado em coisas que tirem a minha concentração, é que tenho a possibilidade de pensar na arte de forma mais ampla. Por exemplo, quando estou no ato da pintura, a música pode percorrer a minha memória livremente sem interferir. Dentro desse monocórdio, essa coisa solitária, sinto vontade de fazer, pelo menos uma vez por ano, um trabalho coletivo, envolvendo-me com um grupo de artistas.

Teatro com pernas próprias

O Auto da Paixão, apresentado em 1999 no Festival de Avignon, na França, foi, de certa maneira, um marco para as minhas atuações no teatro. Ele tinha sido pensado para ser uma exposição de esculturas que seriam vendidas. As cantorias que compunham o espetáculo eram uma espécie de complemento. Mas a coisa mudou. O teatro é uma arte veemente, é algo que tem de acontecer naquela data, ao vivo. Não é como uma escultura que você guarda numa caixa. Se por um lado o sucesso do espetáculo foi a prova evidente do que eu poderia propor como artista plástico, ou seja, obras de arte com uso teatral, por outro me vi envolvido em uma situação em que não poderia voltar atrás. As esculturas se incorporaram à ação teatral.

A sensação era de que eu tinha um caminho imenso aberto e de que muitos queriam que eu o seguisse. Mas nunca poderia abrir mão, como até hoje não abri, de uma atividade contínua que me desse serenidade como artista, que é a minha produção estritamente como artista plástico. A vida do artista de espetáculo é vulnerável. Para quem é do meio, é um dado, não é fatal, é natural. Mas, para mim, é impossível tocar as duas frentes, como artista e como diretor, ao mesmo tempo.

O fato de o meu trabalho em teatro ter dado certo gerou uma pressão para que eu produzisse mais. Então, houve uma espécie de conciliação com o meu grupo de trabalho. Propus que eles fossem por onde intuíssem. Como para viabilizar os projetos é necessário se apresentar muito, decidi trabalhar na retaguarda para não restringir o caminho de algo que é coletivo. Meu trabalho termina no momento da estréia. Aí posso voltar a produzir no meu ateliê em Recife.

Modo de produção

Discordo completamente da proposta de distribuição dos incentivos fiscais no Brasil. Se o dinheiro vem do imposto, quem deve reger o que está sendo produzido e o que vai ou não receber incentivo é o governo. O dinheiro não é do empresário, é da Receita. Hoje existe uma aura pesada quando se fala de cinema produzido no país, fruto de diversas histórias mal contadas. Mas essa regra vale para todas as artes que precisam de patrocínio. Não é possível que exista esse triângulo: quem tem o dinheiro é o Estado, quem agencia para chegar na mão do artista é o empresário. Quem gosta realmente de arte nessa história? Não dá para entender.

Eu prefiro trabalhar num campo restrito. Minhas produções de baixo custo não são uma reação a outra forma de produção, são uma ação própria. É uma adequação à minha possibilidade real. Tanto para o teatro como para o cinema, penso em algo que beira o artesanato.

Projetos em andamento

Estou preparando um espetáculo chamado Auto de são Gonçalo do Amarante ou Olinda Serenata do Tempo, resgatando a tradição dos nomes de folheto de cordel. De certo modo, é uma homenagem a são Gonçalo, músico e violeiro que, segundo a tradição popular, é o padroeiro e inventor do bumba-meu-boi. Queria também produzir um espetáculo que colocasse em evidência a dificuldade de o artista guardar o tempo, ou seja, a expressão do tempo dos projetos passados que ele quer guardar. A idéia é fazer um fio contínuo que cria um labirinto por onde a platéia segue; esse fio tem tudo o que se puder imaginar pendurado. Um pouco como os mendigos fazem, amarrando um monte de coisas, um monte de sacos de plástico, para rearranjar objetos que estão disponíveis.

Na pintura, sigo minha produção. Estou em um ateliê no Recife Antigo, trabalhando numa linha de pintura próxima da que os impressionistas faziam. Estou observando as ruas, os bares, os prostíbulos, o interior das casas e a vida cotidiana de um tempo passado que não teve um registro impressionista.

Também pretendo fazer cinema. Estou numa fase de pré-realização. A primeira parte está não engavetada, mas "embauzada". Está tudo guardado. São desenhos, fotografias, personagens, textos e encenações de trechos. É a história de um circo que, durante a invasão holandesa no século 17, se dispersa e se reúne depois de outra forma. A primeira sessão desse tipo de cinema deve ser numa sala escura, como manda a tradição, com projeções de fotogramas dos desenhos que faço, aquarelo e fotografo. Um quadro a cada cinco minutos. As artes plásticas projetadas, a música ao vivo e a presença do ator se fundem, como deve ter sido nas primeiras experiências de quem estudou cinema em sua nascença. E me perguntam se é cinema: na verdade, é um jogo entre estar e não estar em cena. É o que eu chamo de exposição de cinema.

Romero de Andrade Lima apresentou, em dezembro, o espetáculo Presépio da Paz, no Sesc Belenzinho