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Pela palavra

por Nelly Novaes Coelho

A minha atividade como crítica literária começou em 1961 no jornal O Estado de S. Paulo. Vejo, hoje, como foi importante ter sido convidada por Décio de Almeida Prado para começar a escrever resenhas. No início, fiquei com muito medo. Estava terminando a faculdade, já casada e com filhos. Na minha geração, isso era total exceção. Tanto que quando eu dizia para as minhas amigas que iria voltar a estudar, elas me perguntavam se eu tinha me separado, se o meu marido tinha permitido. Eu respondia que achava que sim, porque nem sequer tinha perguntado a ele.

Aliás, quando terminei a faculdade, achava que seria algo negativo ser recém-formada com trinta e tantos anos de idade. Mas aconteceu exatamente o contrário. Foi excelente. Devido à minha idade, eu tinha uma formação dos anos de 1930, 1940 e 1950. Quer dizer, eu lia muito. Já tinha feito o serviço militar da literatura lendo Dostoievski, Balzac, Machado de Assis, entre outros, e tudo por prazer. As nossas conversas eram sobre personagens... mas não personagens da Malhação. Eram figuras que viviam grandes dramas, paixões e verdades humanas. Gosto da grandeza. Se é tristeza, que seja grande. Se é erótico, que seja assim também. Não gosto de vulgaridade. Creio que esses valores precisam ser redescobertos. O mundo da literatura precisa voltar a ser visto como um mundo de experiência existencial. Um mundo onde você entra e fica muito mais rico do que era antes de entrar.

Na faculdade, então, eu via os meus colegas. Eram todos muito inteligentes e dedicados. Mas era uma juventude que já não lia mais. Eram pessoas que tiveram muita dificuldade para se ajeitar, pegar o ritmo e saber o que era preciso fazer. Mas a experiência foi fascinante. Ao contrário do que aconteceria se eu tivesse ido para a faculdade na hora "certa", quando eu teria pego a geração de 45, down e silenciosa; cheguei nos anos 1960, e tive uma sorte enorme porque as vibrações que recebi já eram de jovens que queriam arrebentar com tudo para construir uma coisa nova. Fui com um lastro de cultura cuja base era a leitura e me deparei com a revolução das idéias.

Mas, voltando a Décio... Eu vejo, hoje, como é importante ter uma oportunidade. Acredito que se ele não tivesse me convidado para começar a escrever resenhas, com base em alguns escritos meus que ele tinha visto, não teria me descoberto crítica literária. Seria somente uma professora, que tem, evidentemente, uma área de ação mais limitada. Como crítica, pude chegar a veículos muito mais abrangentes. Sempre penso nisso. É importante ter a sorte e a oportunidade. Quantos talentos não existem por aí, mas sem oportunidade?

Isso tudo serve para eu explicar a natureza da minha crítica. Como era professora, e não me passava pela cabeça ser crítica literária, sempre resenhava um livro, minha intenção era explicar para o aluno porque aquela obra era boa e o que ela acrescentaria ao seu conhecimento. Quando escrevia uma crítica, não pensava num público, pensava num aluno que estava buscando os seus caminhos. E quando o autor era vivo – passei a me especializar em literatura contemporânea –, ele também estava no meu horizonte. E é assim até hoje. Quando escrevo sobre um livro, a figura do autor está presente. Sei que se trata de uma pessoa que viveu determinada experiência e que tentou passar isso para os outros através da palavra. É essa a natureza da minha crítica. Procuro ver como aquele livro está sintonizado no contexto em que ele surgiu. Isso, para mim, é fundamental. Trabalhar com o enfoque histórico oferece muito mais elementos para julgar uma obra. Nunca abri mão da consciência histórica nas minhas aulas. É através da literatura que podemos formar essa consciência com maior facilidade e realidade.

A minha grande preocupação, hoje, é exatamente a formação do professor. Ele tem de ser o mediador. Os convites que me chegam para falar diretamente ao aluno, eu recuso. Mas se é para falar com o professor e para dar cursos a ele, eu vou. Devido às minhas viagens, tenho descoberto que em todos os lugares há pequenos grupos que estão arregaçando as mangas, trabalhando, experimentando e produzindo. O que nos leva a perceber que está havendo uma revolução silenciosa. Gente que consegue uma bolsa, estuda aqui e ali e está se organizando, cheia de projetos. Vejo isso tanto nas bancas das quais tenho participado como nos minicursos que tenho dado. Realmente, é animador saber que num momento em que está tudo caindo aos pedaços e a vulgaridade parece estar por toda parte, há pessoas resistindo, e muito, conscientes de que é preciso fazer frente a tudo isso.

Meus trabalhos de pesquisa em literatura também me proporcionaram descobrir que existe uma nova literatura infantil com um novo recado. Um gênero absolutamente sintonizado com a literatura adulta. Fato compreensível. Era preciso que alguns valores fossem vivenciados para que os escritores pudessem conseguir uma linguagem lúdica e acessível à criança. A literatura infantil já não é mais um gênero menor.

Fui dar um curso nos EUA e percebi que lá há uma movimentação na área de literatura infantil. Participei de várias reuniões para discutir esse gênero. Foi quando percebi que era preciso formar professores para trabalhar com essa nova literatura infantil. É uma nova visão de mundo, complexíssima, de total desconstrução do que está montado e que precisa atingir a criança desde o início do aprendizado. Ela precisa aprender a ver as coisas e não somente olhá-las. Criei uma área na USP em que os professores podem ter esse tipo de formação. Isso foi há vinte anos e hoje não estou mais nela. Consegui uma excelente sucessora, a professora Lúcia Góes, que também é escritora. Há duas disciplinas que precisam de senha para a matrícula porque as vagas não chegam para tanta gente: língua portuguesa e literatura infantil. Isso mostra o interesse dos professores em se preparar melhor. A minha crítica, na verdade, visa sempre mostrar caminhos dentro do problema de transformação que estamos vivendo. E a literatura está dando isso em forma de verdadeiras avalanches.