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Ficção Inédita
Noite Obscura

Joaquim Nogueira

Crédito: Marcos Garuti

Embora passe das nove horas, ainda tem muito trânsito nas ruas da zona norte. Além do mais, o asfalto está úmido e escorregadio, devido à chuva fina e persistente. Laércio vai levando a viatura devagar, esperando que nenhum morador solicite seus serviços, pois ele não terá tempo para atender. Quando chega a uma bifurcação, toma a rua da direita, avança mais alguns metros e pára, manobra e retrocede.
Estaciona na esquina atrás de uma caminhonete de feira e apaga os faróis. Dali pode ver a casa número 25 da rua Comendador Souza. Está fechada e todas as luzes estão apagadas. Não tem importância. Ele pode esperar. Aquela noite está escalado para o plantão no 13º DP, mas os demais membros da equipe (delegado, escrivão, outro tira, carcereiro) estão a postos. Por outro lado, o rádio da viatura está funcionando, coisa mais ou menos rara, e ele pode ser acionado a qualquer momento, caso haja necessidade de sua presença no distrito.
Acende um cigarro, a fumaça sobe no ar parado, espalha-se pelo carro grande e velho. Pessoas vêm vindo pela calçada, algumas de capa e boné, outras de guarda-chuva, duas ou três sem nenhum abrigo - simplesmente encarando o clima antipático e teimoso. Quando vêem a viatura, diminuem o passo e firmam a vista, tentando entender por que motivo está parada ali, o que faz o policial dentro dela. Laércio vira o rosto, como se dissesse "Não se preocupem comigo, me esqueçam", e puxa outra tragada.
A porta da casa 25 continua fechada. Talvez Dudu não esteja. A carta anônima que havia chegado ao distrito, endereçada a ele, Laércio, não dizia que o suspeito estaria em casa. Dizia: "Se quer pegar o Dudu, eu sei o mocó onde ele se esconde". E seguia-se o endereço. O tira vai esperar mais ainda. Não tem pressa. Aos 45 anos, com 23 de polícia, sempre no mesmo posto e na mesma situação econômica (sem carro próprio, morando em casa alugada), ele não tem mais pressa para nada.
A chuva continua caindo, atrapalhando a vida dos outros motoristas, molhando o pára-brisa da viatura, dificultando a visão. Laércio acaba o cigarro e joga a guimba na rua. Uma voz masculina e forte chega pelo rádio e ele apura os sentidos; entretanto, não vem da sua delegacia. Trata-se de um escrivão da zona leste retransmitindo um aviso de seqüestro. O tira continua esperando e vigiando a porta da casa.
É então que o homem vem vindo pela calçada, com um pacote nas mãos, como se tivesse saído da padaria ou do míni-mercado ali perto. Junto à casa, pára e olha em todas as direções. Não vê a viatura negra e grande na esquina, oculta pelo caminhãozinho. Ele não tem chapéu nem guarda-chuva e passa a mão livre pelos cabelos para escorrer a água. Abre a porta, entra e acende as luzes. Laércio desce do carro, fecha e caminha até a bifurcação, rápido, evitando os esparsos pingos de chuva, bate na porta com os nós dos dedos.
"Quem é?"
"Sou eu, Dudu. Investigador Laércio, do 13º DP. Quero falar com você."
"Agora não tenho tempo. Passe amanhã."
"Amanhã um cacete. Quero falar com você agora. Abra a porta e me deixe entrar. Além do mais, está chovendo... você sabe disso, não sabe? Não vou ficar aqui tomando chuva."
"Isso é problema seu. Quando veio aqui já sabia que estava chovendo. Não vou abrir."
"Ou abre a porta ou ponho ela abaixo. Que é que você acha? Escolha."
Agora não vem nenhuma voz lá de dentro. Só o ruído dos passos numa direção e noutra. Uma televisão é ligada, ouve-se a voz de um locutor esportivo, afinal é quarta-feira, dia de jogo, mas logo ela é desligada. Os passos continuam. Laércio vai perdendo a paciência. Bate de novo na porta, com mais força, de forma que seus dedos ficam vermelhos e doloridos. Grita outra vez: "Como é, vagabundo? Vai abrir ou não?". Afinal os passos se aproximam e a porta se abre.
Laércio fica surpreso quando vê sua caça frente a frente, de perto, pois Dudu está usando barba e bigode, contrariando a descrição fornecida pelas vítimas - um homem ainda novo, de menos de trinta anos, até bonito, o rosto liso como o rosto de um menino. Talvez esteja tentando se disfarçar, o que só complica a situação dele.
"Que é que você quer?"
Sem dar resposta, Laércio empurra o homem para dentro, entrando logo em seguida e fechando a porta atrás deles. A sala é pobre e desarrumada. Debaixo da janela que abre para a rua está o sofá de courvim, negro e comprido, com jornais e revistas sobre o estofamento rasgado, perto ficam duas cadeiras simples de madeira, e a televisão grande, antiga, preto-e-branca, encostada na parede que separa a sala do cômodo próximo, talvez o quarto. Dudu tenta engrossar a voz.
"Que é que tá acontecendo, meu? Por que vem na minha casa, assim, de noite..."
"Tem um bocado de queixa na delegacia contra você. Estupro. Posso até dizer o nome das vítimas. Estela Maria, a professora, que você levou para um prédio em construção e seviciou, mais uma japonesinha dona de mercearia no Lauzane, que você estuprou dentro da própria loja, a manicure Rosana... Você sabe que eu não estou blefando, não sabe? Agora vou te deter. Te levo pra delegacia e apresento pro delegado, ele manda te indiciar e pede a tua preventiva... em outras palavras, meu prezado Eduardo: seus dias de gozo acabaram. Vamos andando."
"Vou te dizer uma coisa... Laércio, não é? Sim. Tudo bem. Vou te dizer uma coisa, Laércio. Eu já estive no fórum. Por causa de outros casos, outros inquéritos, em outras delegacias... você compreende. O juiz mandou me soltar. Disse que não podia me prender porque não tinha a representação das vítimas... Você tem?"
"Tenho. Está no distrito. Vamos andando. Tire essa roupa molhada - a menos que queira ir ensopado à delegacia - e pegue seus documentos."
"Não estou ensopado. Quanto aos meus documentos, estão no quarto."
"Vá buscar. Eu espero."
Eduardo vê o tira se aproximar do sofá, arriar o corpo calma e pacientemente, como se estivesse num consultório dentário, apanhar uma revista e abrir. Ele toma o corredor e entra no quarto. Está ligeiramente mais bagunçado que a sala. Roupa sobre a cama, sapatos e maços de cigarro vazios pelo chão, o único armário aberto, já que a porta, empenada, não fecha mais; nas paredes um calendário velho com fotografias de mulher nua. Pára junto à cama e pensa no que fazer. Não pode acompanhar o tira. Não pode entrar na delegacia. O investigador talvez não tenha a representação das vítimas, mas bem que pode conseguir, caso queira - e Laércio parece o tipo obstinado e cabeçudo que faz qualquer coisa para conseguir uma cana.
Oferecer suborno será arriscado. Aquele tipo de policial não costuma aceitar grana. Ainda por cima, ouvindo a proposta, pode dar voz de prisão pelo crime de corrupção passiva... duas ou três coisas sobre leis o estuprador sabe.
Pensa em fugir. Mas é difícil. Disparar até a sala e abrir a porta não dará certo, Laércio poderá saltar do sofá e o apanhar. Pular a janela dos fundos será um erro, além do quintal há o muro alto e sólido, impossível subir. A casa é geminada de um lado. Do outro fica o corredor, que é estreito, o chão quebrado, completamente escuro, Eduardo terá de caminhar com dificuldade, devagar, isso dará tempo para Laércio agir. Não. Fugir não dá pé.
Só tem um jeito. Homicídio. Isso mesmo. Matar o tira.
Afasta o armário da parede, abaixa-se e apanha uma sacola negra, de plástico, com propaganda de agência de viagens - Viagens Costa. Você Viaja, Você Gosta. Pesca lá de dentro o revólver grande e pesado, o mesmo que tinha usado para atemorizar suas vítimas. Abrindo o tambor, confere as balas. Tem quatro. Novas. Devem bastar. Fecha o tambor, engatilha a arma e caminha para o corredor. Na sua cabeça, será fácil. Apontar a arma e disparar. Só precisa ser rápido.
Chega à sala e aponta o revólver na direção do sofá. Só que não há ninguém sentado nele. Laércio ergue-se por trás da TV, levanta o revólver e dispara duas vezes. O chumbo acerta Dudu no lado esquerdo da cabeça.

Joaquim Nogueira é autor de Informações sobre a vítima (Companhia das Letras)