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Encontros e paixões

 

Crédito: Marcos Garuti

Das artes que me foram dadas a conhecer, a poesia foi a primeira. Recordo que toda a minha infância foi plena de poesia. Isto pelo fato de meu pai ser poeta. Juntamente com o amor de meu pai pela poesia, estava seu amor pela música, músicas saudosistas, belas valsas brasileiras.
Certamente este fato influenciou muito meu encanto pela arte de representar. O teatro tem a magia de transformar a obra literária em algo vivo, atual, instigante...
Federico Garcia Lorca tinha um conceito de teatro muito pessoal: encarava a representação como "a poesia que se levanta do livro e se faz humana. E ao fazer-se humana, fala e grita, e chora e se desespera". As personagens deveriam ser ao mesmo tempo poéticas e reais em seus sentimentos mais intensos, trágicos e profundamente vitais, num desabrochar incontido de emoções. Lorca tinha uma força real que brotava de sua "necessidade da expressão da forma gramática". A palavra simplesmente escrita não lhe bastava. Precisava sempre ler em voz alta seus versos e até mesmo seus artigos.
Muita coisa aconteceu desde aquela pequena cidade do interior de São Paulo, onde passei minha infância, até a primeira peça de Lorca que assisti em Lisboa, no Teatro Nacional Dona Maria II. A peça foi "A Casa de Bernarda Alba". Nesta época eu estava no segundo ano da Escola Superior de Teatro e Cinema do Conservatório Nacional e estávamos fazendo um atelier de teatro naturalista. Estudávamos a obra de Tchekhov, Strindberg, Ibsen e também Lorca. Depois de conhecer a obra e a vida deste poeta e dramaturgo espanhol, comecei a conhecer melhor a vida. A entender a literatura e o teatro de outra maneira.
Este meu entender da obra literária foi ampliado alguns anos depois, quando conheci Hilda Hilst. O meu encontro com a pessoa e a obra de Hilda Hilst aconteceu numa misteriosa manhã de domingo, do outono de mil novecentos e oitenta e seis. Como num passe de boa mágica, fui transportado para o mundo desta mulher fantástica, na sua Casa do Sol. Conheci seus amigos, seus cachorros, suas árvores... Li com ela seu teatro. Fascinou-me sua poesia. Desde então, por muito tempo, mantive-me próximo de sua obra, de sua vida, de sua personalidade, de sua inteligência, de sua espiritualidade e de seu humor. Freqüentemente visitava Hilda em sua casa. Ela lia-me em voz alta sua poesia, seus textos. Uma vez fizemos uma leitura pública de sua peça "O Visitante" que contou com a sua presença. No final ela dizia da satisfação de ouvir sua obra interpretada. E conversávamos sobre a mudança e o enfraquecimento da palavra como forma de comunicação. Hilda dizia que achava que a palavra estava perdendo espaço. Que as pessoas estavam comprimindo cada vez mais a língua. Normalmente as pessoas não falam mais. E se alguém tenta falar alguma coisa com mais riqueza, com mais substância, as pessoas se chateiam. Parece que o mundo está ficando um mundo de surdo-mudos. E ela achava difícil um escritor viver neste mundo. Falava de como se sentia bem, com um grupo de pessoas que se reuniam para discutir a palavra. A obra teatral de Hilda é de uma dramaticidade intensa, em que a palavra tem seu valor exato. Em mil novecentos e noventa e um encenamos sua peça "A Morte do Patriarca" e pedimos a ela que escrevesse um texto para o programa do espetáculo e Hilda Hilst nos presenteou com esta poesia:

De Montanhas e barcas nada sei.
Mas sei a trajetória de uma altura
E certa fundura de águas
E há de me levar a ti uma das duas.
De ares e asas não percebo nada.
Mas atravesso abismos e um vazio de avessos
Para tocar a luz do teu começo.
Das pedras só conheço as ágatas.
Mas arranco do xisto as esmeraldas
Se me disseres que é o verde a dádiva
Que responde as perguntas da Ilusão.
E posso me ferir no gelo das espadas
Se me quiserdes banhada de vermelho.

Em minhas muitas vidas hei de te perseguir.
Em sucessivas mortes hei de chamar este teu ser sem nome
Ainda que por fadiga ou plenitude, destruas o poeta
Destruindo o Homem.

Adolfo Mazzarini Filho, formado em Artes Cênicas, é
Coordenador de Programação Cultural do Sesc Belenzinho