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Memórias do Comércio
Santos

A cidade e suas histórias

Exposição, livro e um site contam a história do comércio na Baixada Santista pela ótica de dois de seus principais agentes: o comerciante e o comerciário

Pergunte a qualquer pessoa se ela se lembra do nome de quem vendia balas, sorvetes ou lanches na cantina da escola ou se ela sabe o nome do balconista da lanchonete onde diariamente toma um café cremoso. Essas são as lembranças do freguês, mas quais seriam as do comerciante?
Sob seus olhos, a cidade cresce e se modifica, a criança se torna adulta e se casa, as modas são trocadas. Ele é um observador privilegiado porque presencia as preferências e os gostos de sua clientela. Destacar a importância dessa figura na história da cidade é o principal objetivo do projeto Memórias do Comércio, uma iniciativa do Sesc São Paulo que consiste num minucioso e abrangente trabalho de pesquisa realizado em parceria com o Museu da Pessoa, de São Paulo. Desde 1994 os resultados dessa pesquisa estão sendo divulgados em exposições, livros, CD-ROMs e Internet.
Partindo da capital e seguindo para a região de São Carlos e Araraquara, o programa agora desembarca em Santos, voltando-se para os relatos de comerciantes e comerciários do litoral. Os resultados de Memórias do Comércio da Baixada Santista puderam ser conferidos na exposição homônima que ficou em cartaz no Sesc Santos de 4 a 30 de junho, no livro Caminhos do mar e no site do Sesc São Paulo (www.sescsp.org.br). "O comércio é um dos segmentos que mais esclarece sobre a evolução de uma cidade e de seus costumes", analisa o diretor regional Danilo Santos de Miranda. "Em torno dele se desenvolve todo um modo de vida representativo dos valores que fundam a identidade cultural de uma comunidade"

Entender a cidade
A metodologia usada no levantamento dos dados, que acabou revelando impagáveis histórias dos profissionais do comércio santista, é a mesma desde o primeiro módulo: "Fazemos um grande mapeamento de nomes e um pré-histórico da cidade, percebemos as vertentes, as principais atividades e modalidades de comércio etc. Com base nisso, elaboramos um perfil e fazemos um mapa de nomes. O critério pode ser, por exemplo, uma pessoa que teve uma loja de departamentos nos anos de 1950 ou que trabalhou com café nos anos de 1940", explica a historiadora Karen Worcman, fundadora do Museu da Pessoa e uma das organizadoras do projeto. Com esses filtros, a equipe de pesquisadores chegou a alguns dos mais significativos comerciantes da Baixada, pessoas que não diferenciam mais a vida pessoal da profissional. A paixão e o envolvimento são tamanhos e se tornaram tão cristalizados ao longo dos anos que esses dois aspectos se misturaram inexoravelmente. "Percebemos que o comércio é fundamental para eles", explica a historiadora Claudia Fonseca, uma das pesquisadoras do projeto. "Uma das perguntas da entrevista era: 'o que é o comércio para você?'. Não raro, a resposta foi 'é tudo'."
As histórias se somaram e algumas, de tão peculiares e reveladoras, ganharam destaque no livro e lugar especial na memória dos profissionais envolvidos. "Eu me lembro de uma depoente", continua Claudia, "que disse que quando era pequena suas amigas brincavam de casinha e ela já tinha uma vendinha, e 'vendia' para as amigas que tinham suas 'casinhas'. Quando ela se tornou escoteira, saía nas campanhas para vender biscoito, mas já vendia todos os pacotes no trajeto para casa. Ela virou sacoleira e hoje tem duas lojas."
Outros se recordam das "loucuras" do mundo do comércio. Eduardo Hayden Carvalhães, exportador de café, contou a história do cunhado, temido na bolsa de café por determinar suas altas e baixas, e que apostou seu Cadillac Fleetwood - carro de luxo da época - com outro especulador, um tal Neves, que acreditava que o produto iria a preços absurdos numa das cotações seguintes. Pois bem, o cunhado de Eduardo perdeu e o Cadillac mudou de dono. "Pois não foi que o mercado subiu e ele entregou o Cadillac para o Neves?", conta no livro.
Embasados nesses depoimentos e em pesquisas paralelas feitas com o auxílio de bibliografias e teses sobre a história da cidade, os pesquisadores do Museu da Pessoa criaram um panorama do cenário comercial de Santos de acordo com fatos históricos e, o grande diferencial, com a interpretação de seus protagonistas. "Essa relação entre os fatos históricos reconhecidos pelos estudiosos e os depoimentos, impressionistas e calcados em vivências pessoais, resulta em uma das histórias possíveis que podem ser contadas sobre o desenvolvimento da cidade. Não têm o caráter de verdade absoluta, como, de resto, também são sempre parciais as histórias organizadas pelos peritos. Mas conseguem sempre resultados surpreendentes em termos de riqueza e interação social", afirma Erivelto Busto Garcia, coordenador de planejamento do Sesc.

Uma história viva
Karen explica que foi muito interessante trabalhar dessa forma porque por mais que a equipe tentasse se restringir à linearidade exigida pela História, muitos comerciantes e comerciários ainda continuam em plena atividade. "O comerciante do café continua com seu escritório de café, mas sem o mesmo glamour. Aprendemos com esse projeto que os comerciantes são grandes aventureiros, no melhor sentido do termo. Eles são empreendedores. Tanto em Santos como em outros lugares, não são poucas as histórias de pessoas que venderam a própria casa para investir no negócio. "E o que transparece dos depoimentos é sempre uma dupla relação com a atividade comercial. Ao mesmo tempo em que a incerteza permeia os negócios, a obstinaçnao de sempre continuar desenha o sucesso e constrói a cidade", afirma Mário Damineli, técnico do Sesc e um dos coordenadores do projeto.
No lançamento da exposição, o caráter de troca, que é um dos pilares do projeto, ficou evidente no rosto de cada comerciante/depoente. Ao observarem nos painéis imensos as suas fotos, as suas histórias, as suas palavras destacadas em letras maiúsculas, à semelhança de obras de arte, estampavam grandes sorrisos. "A situação de dona Henrietta, a comerciante que está num dos totens, era especial", lembra a técnica do Sesc Santos, Rosa Freire. "Essa senhora, bastante representativa na cidade por várias atuações no comércio, trouxe toda a família. Netos, bisnetos e filhos. A família é muito importante para o comerciante, assim como as demais pessoas porque fica claro que elas fazem parte da história e da evolução do comércio. São memórias que, uma vez trazidas à tona, tornam-se fortes e fixam as relações entre os cidadãos e deles com a cidade." Karen completa com outro fato que lhe chamou a atenção na exposição: "Montamos um painel de Gileno, garçom de um tradicional restaurante de Santos. Durante toda a exposição, ele ficou do lado, estático, totalmente maravilhado. Ele estava percebendo o quanto ele e a sua história eram importantes. As pessoas realizam coisas e a História é feita de pessoas".

Capítulo à parte - Santos agrega especial valor ao projeto Memórias do Comércio
A atividade comercial de Santos ganha particular importância, principalmente do ponto de vista histórico. "Santos foi um dos pólos de desenvolvimento desde o seu surgimento", analisa a técnica da unidade de Santos, Rosa Freire. "É onde tudo começou, tanto que Antonio Candido disse uma vez: 'Se não tivesse a Serra do Mar, São Paulo seria lá'", completa Karen Worcman, do Museu da Pessoa.
O primeiro capítulo do livro Caminhos do mar é dedicado a alguns aspectos da região: a riqueza, as pessoas vestidas de pele, os grandes cassinos. Talvez nem o santista de hoje conheça isso. Em Santos foram construídos imponentes hotéis; era para lá que a elite paulistana descia com toda a sua criadagem nos fins de semana prolongados e comia em restaurantes refinados. "Assim, você traz história, conflitos, situações e desenvolvimento, em seus altos e baixos", conta Rosa.
Desde o mais velho até os novos comerciantes, o sentimento de orgulho da cidade permanece e a equipe de pesquisadores envolvida no projeto pôde trazer um pouco disso à tona. "Santos é uma grande cidade, também acostumada a ser um centro. Não senti aquela sensação de se tratar de uma cidade tímida. Ela é urbana", afirma.