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Cabeças cheias de histórias

Por Miguel de Almeida

Alguns dos principais escritores brasileiros revelam o mundo no qual sua imaginação se encontra mergulhada

Os fatos doem em todos, às vezes machucam fundo: no final do ano passado, em Porto Alegre, a escritora Letícia Wierzchowski amamentava seu filho recém-nascido. Um dia, ao ler a revista Veja, foi informada de que terroristas - islamitas? católicos? separatistas? farcquistas? - poderiam usar como arma o vírus da varíola em uma guerra biológica. Seria uma tragédia horrorosa. Não deu outra: ela ficou sem leite por dois dias. Secou.
A autora estava envolvida com uma história de amor, ela arrematava as penúltimas linhas de Amores extremos, a ser lançado em breve pela Editora Record. Seus personagens vagam no enredo entre os anos de 1950 e 1970. Meses antes saíra de uma viagem no tempo ainda mais radical: a Guerra dos Farroupilhas, no século 19. O elogiado A casa das sete mulheres mostra a convivência das mulheres da família de Bento Gonçalves enquanto o patriarca liderava armas nos combates sangrentos. O livro reproduz a solidão delas durante os anos da guerra. "Guerras são divisores de águas", atesta a autora. "É um tempo em que tudo pode acontecer: bombas explodem, parentes perdem-se de vista, regiões são desoladas. Mas confesso que esse temor, se real, ainda mais hoje quando tudo é cabal, me paralisa. Por isso, talvez, derramei meu olhar para uma guerra de 1835. Uma guerra finda. Quem tem medo de uma guerra fóssil?"

Papel em branco
O escritor - ao contrário da mística romântica do século 19 - é um ser comum, talvez apenas mais sensível às tragédias humanas, que são a matéria-prima de seus enredos. Ele, que semelhantemente aos demais mortais come pizza nas noites de domingo e mesmo que queira não consegue escapar do massacre da comunicação contemporânea com a sua banalização de desgraças coletivas, no momento em que trabalha a partir da sua imaginação, viaja para outros tempos, outros embates, cria novos mundos.
Em resumo: embora o noticiário se mostre presente em todos os escaninhos da percepção humana, levando as pessoas a repercutirem temáticas coletivas, os ficcionistas demonstram que existem várias dimensões em um mesmo tempo. A constatação mais básica é a de que suas cabeças não foram rendidas pela banalização da realidade tornada espetáculo.
Silviano Santiago, autor de Em liberdade, dá o tom da reportagem. Ele lembra que as duas expressões da literatura brasileira mais importantes de meados do século passado estiveram afastadas - "imunes", na sua designação - dos acontecimentos imediatos. "Refiro-me a Guimarães Rosa e Clarice Lispector", atesta ele. Rosa, em seu universo mítico do sertanejo mineiro; Clarice, em sua investigação da alma humana. Os dois estavam vivos à época da explosão da bomba atômica, mas dedicavam seus talentos a compreender o homem em seus outros momentos capitais.
A própria literatura do premiado Santiago é um bom exemplo de realidade imediata e criação. Em liberdade foi escrito no final da ditadura militar e aborda o período em que Graciliano Ramos esteve preso durante o Estado Novo getulista. "O tempo, para um escritor, é a condensação de passado/presente/futuro. O agora é prenhe de passado e futuro", afirma ele.
Santiago faz uma interessante distinção entre o intelectual e o criador: "O primeiro opina, marca posição. Ele quer orientar as massas. Já o segundo pode se isolar dos acontecimentos, entretendo um diálogo frenético com uma folha de papel em branco. Esse diálogo, no entanto, se robustece ou se enfraquece com as idéias, as opiniões do intelectual que existe nele".

A literatura absorve tudo
Lygia Fagundes Telles, considerada uma das grandes autoras brasileiras contemporâneas, contribui para enriquecer o tempo dos brasileiros com um novo livro, Durante aquele estranho chá. Invenção ou memória? Os textos foram escritos e publicados em épocas distintas e trazem registros de impressões da escritora sobre pessoas com as quais conviveu, como o autor argentino Jorge Luis Borges, a francesa Simone de Beauvoir, os brasileiros Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector. "As ovelhas que estavam soltas foram tosqueadas e reunidas. O pastor junta o rebanho", comenta Lygia sobre a reunião de trabalhos que rememoram diferentes épocas da sua vida. "O tempo é uma caixinha de sabonetes onde guardo com carinho e certa perversão algumas borboletas que achei... Acabo fazendo o que quero porque a minha idéia de tempo é drummondiana - o tempo presente, o homem e a mulher presentes", revela a autora. E a realidade à frente dos olhos, nas manchetes de jornais? "A literatura absorve tudo, tudo... A realidade do país sempre esteve e está presente nela, mas de forma enviesada, pouco transparente, ambígua. De transparência já bastam os nossos jornais com seu sangue e as nossas doses diárias de corrupção, assassinato, violência", diz a autora.
Enquanto Lygia afirma gostar de metáforas, outro celebrado autor, o paraibano Ariano Suassuna, confessa enxergar o mundo através de emblemas. E afirma: "Acho que o dever de todo escritor é colocar, mesmo que a realidade seja dura e cruenta, um sonho mais belo e mais alto na frente, para que esse sonho possa mover o povo. Se perdemos a esperança, não temos mais um caminho. Então, dentro das minhas possibilidades, faço o que posso. Com minha obra, meu trabalho de escritor, procuro fazer as coisas que posso para mudar as coisas que posso".
E onde está Ariano Suassuna agora? Está dando continuidade ao mundo que criou no afamado A pedra do reino. Veja só, tudo começou em 1838, quando ocorreu uma tragédia religiosa numa região cravada na divisa de Pernambuco e Paraíba; na ocasião, morreram cerca de noventa pessoas. De novo teremos o personagem Quaderna e suas peripécias. "Estou perfeitamente consciente da distância entre meus sonhos e os de todos nós e a realidade", afirma Ariano. "O que é um mentiroso? É um camarada que não se conforma com o universo comum e inventa outro. Isso é um escritor. Eu também sou assim. Na minha vida não acontece nada. Se eu não mentir, o que é que eu vou contar. Gosto de contar histórias."

Observador da Sociedade
O poeta, como o escritor, é um mentiroso. Ambos bebem na realidade, mas a subvertem, a retiram de seu tempo e espaço para suas conveniências, em obediência a seus sonhos e intentos.
Ignácio de Loyola Brandão, cuja obra traz a vida brasileira remasterizada em forma de alegoria, está concluindo um novo livro. O anônimo célebre conta a história de uma pessoa que deseja aparecer de qualquer maneira, ser famosa, querida, notada. Seu sonho é estar em todos os canais de tevê, nas capas de revista, nas colunas sociais. Lembrou-se de alguém conhecido? Calma, é tudo ficção. O personagem de Loyola é um escravo da sua desejada celebridade: sabe o que vestir, em qual cabeleireiro ir, quais quadros deve comprar... enfim, a receita a seguir para ser famoso. "Sou um observador da sociedade, das neuras, o comportamento humano me interessa. Todos os meus livros falam de comportamento e retratam um determinado instante da sociedade brasileira", conta Loyola. E como ele vê o momento do Brasil, como andam os espíritos? "Mais do que nunca, este é o momento do vazio total, de um individualismo imenso, o outro não existe. Eu diria mais: é o momento da mediocridade."
A mesma angústia perpassa outro escritor, o celebrado Autran Dourado. Aos 76 anos, o autor mineiro se diz assustado com o mundo dos homens. "Ele não é para mim, sinto que não tenho nada a ver com ele", afirma. "Tudo é tão brutal que me imobiliza. Não sei como isso irá aparecer na literatura. Tenho escrito romances sobre outros temas", completa.
Os autores que procuram usar suas obras como espelho da realidade imediata em geral quebram as pernas. "Não acho que a guerra contra o terrorismo esteja relacionada diretamente conosco", reflete Silviano Santiago. "O que tem a ver conosco é a luta contra o subdesenvolvimento, nosso e de outros povos. Esse é o acontecimento que marcou a todos nós no século 20." E a respeito da produção calcada no aqui e agora: "Nunca vi uma safra de poemas tão ruins quanto os escritos sobre o 11 de setembro. Alguns escrevinhadores pensam que imitar a extraordinária retórica inventada por Drummond nos anos de 1940 já é meio caminho andado. Pelo contrário, é meio caminho atrasado", lamenta Santiago. "O ser humano é capaz das piores coisas, mas também é capaz de atos de grandeza. Essa é a condição humana, com suas dores e sua solidariedade. Um exemplo? A arte, a literatura", arremata Lygia Fagundes Telles.

Miguel de Almeida é jornalista


A ficção - Invenção ou memória?


"Perguntei isso em um dos meus livros. Ficção ou aquilo realmente aconteceu? A escolha é sempre difícil e ilusória porque o fio que os separa é tênue, quase invisível, porque este 'realmente' nem é tão real assim". Lygia Fagundes Telles

Realidade da exclusão - Ferrez e Austregésilo Carrano pintam em cores fortes
O escritor Ferrez mora em Capão Redondo, periferia paulistana. O cenário de seus livros é composto de miséria, assassinatos e violência policial. Sua nova história, a ser publicada no próximo ano, é intitulada Manual prático do ódio. "É sobre um assaltante de banco, o que ele sente, a adrenalina. Como ele consegue o dinheiro para fazer o roubo, quem financia as drogas, as armas, quem estimula, qual é o papel do Estado e da polícia", adianta ele.
Uma das mais recentes sensações da literatura brasileira, principalmente pela temática virulenta e linguagem crua e direta, Ferrez diferencia-se de outros escritores por lutar para retratar a realidade dura e pobre que o circunda na vida de periferia. "Não gosto de escrever sobre Roma da década de não sei quando, por exemplo. A nossa vida é aqui e, então, para eu ser verdadeiro, tenho de falar daqui", afirma o autor.
E o que ele enxerga? Uma outra guerra, a guerra pela sobrevivência. "Não é por religião. É por comida mesmo", diz o autor de Capão Pecado. "Em resumo, o que vejo é rancor e ódio. Meu livro trará isso: ódio de ponta a ponta", adianta. "O moleque que acorda sem ter o que comer, com a panela vazia. O que está acontecendo no mundo é só um reflexo disso tudo. Se somos o terceiro mundo, aqui é o nono mundo", lamenta.
Autor de Canto dos malditos, que originou Bicho-de-sete-cabeças, o filme brasileiro mais premiado na última década - oito prêmios internacionais e 35 nacionais -, Austregésilo Carrano colocou na mídia a questão manicomial brasileira. É a história de um rapaz internado pelo pai em clínicas psiquiátricas após ser flagrado fumando maconha. Os médicos o tratam à base de eletrochoques. O trágico do enredo é que se trata de uma narrativa baseada em fatos reais, vividos pelo próprio autor. "Escrevi o livro para mostrar a violência praticada nos hospitais psiquiátricos. Quis mostrar os três anos e meio em que fui cobaia deles."
No momento, Carrano termina seu terceiro livro, Filhas da noite, que conta a história de uma prostituta envolvida com um garoto de programa. "Abordo fatos que acontecem durante a noite, como sexo, drogas, prostituição infantil", conta ele. "Gosto de retratar temas que ninguém quer ter conhecimento, como o turismo sexual; escrevo sobre uma sociedade que se julga humana, mas que só é humana quando isso dá ibope", lamenta o escritor, pai de quatro filhos.
Podemos voltar a ouvir Lygia Fagundes Telles: "Uma escritora que se depara com uma criança se drogando na calçada pode ficar alienada? Esses acontecimentos não me impulsionam a escrever, mas eles acabam aparecendo nos meus livros".