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Políticas Públicas, Redução de Danos, Estratégias Antiproibicionistas e Saúde Mental

Foto: Coletivo DiCampana
Foto: Coletivo DiCampana

* Por Andrea Gallassi

 

O processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil é fundado no final dos anos 70 e é contemporâneo à Reforma Sanitária – que deu origem ao Sistema Único de Saúde (SUS) – em favor da mudança dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde mental. A Reforma Psiquiátrica brasileira decorre da crise do modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico (ou manicômio) e na conjunção de esforços dos movimentos sociais pelos direitos das pessoas com transtornos mentais; é um processo político e social complexo, compreendido como um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais1.

A lei 10.216/2001 é considerada o principal marco da Reforma Psiquiátrica brasileira e redireciona a assistência em saúde mental privilegiando a oferta de tratamento em liberdade, fora dos hospitais psiquiátricos, e em serviços de base comunitária, com destaque para os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). O CAPS realiza o acompanhamento interdisciplinar das pessoas com transtornos mentais e daquelas em uso problemático de álcool e outras drogas (os CAPS ad – álcool e drogas); é um serviço de saúde mental criado para substituir as internações em hospitais psiquiátricos. Em 2006, na esteira destas atualizações legislativas sobre o tema, embora com efeitos importantes no aumento do encarceramento de pessoas presas por “tráfico”, é também sancionada a lei 11.343, que retira a privação de liberdade como pena para as pessoas pegas com drogas para uso pessoal.

Mesmo com os avanços legais e institucionais promovidos pelas Reformas Sanitária e Psiquiátrica, as políticas de saúde pública e de saúde mental não se ocuparam devidamente do tema prevenção e tratamento do uso problemático de álcool e outras drogas. Produziu-se, historicamente, uma importante lacuna na política pública de saúde, deixando a questão das drogas para as instituições de justiça, segurança pública, benemerência, associações religiosas e outras. A complexidade do problema contribuiu para a relativa ausência do Estado e possibilitou a disseminação em todo o país de "alternativas de atenção" de caráter total, fechado, com internações de longa permanência baseadas em uma prática de cunho religioso – as chamadas comunidades terapêuticas – tendo a abstinência como principal objetivo a ser alcançado, desconsiderando a redução de danos como também estratégia de cuidado. Este cenário aponta a necessidade de assunção pela saúde pública de uma política mais clara e incisiva para o problema2.

As implicações sociais, psicológicas, econômicas e políticas relacionadas ao tema drogas não são consideradas na compreensão global do problema, e a percepção distorcida da realidade desta questão acabou por promover a disseminação de uma cultura que associa o uso de drogas à criminalidade e que combate substâncias, fazendo com que o indivíduo e o seu meio de convívio fiquem, aparentemente, relegados a um plano menos importante. Assim, historicamente no Brasil o tema do uso problemático de álcool e outras drogas é associado a uma questão de justiça e segurança pública e à oferta de "tratamentos" inspirados em modelos de exclusão dos usuários do convívio social.

No esforço de recuperar o atraso histórico na abordagem do tema drogas sob a perspectiva de saúde pública, e assim se somar aos marcos legais até então conquistados, o Ministério da Saúde desde 2002 vinha desenvolvendo ações e políticas interministeriais voltadas para o cuidado das pessoas em uso problemático de drogas. Destas ações, destacam-se a Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a usuários de Álcool e Outras Drogas3 e os Consultórios na Rua4, que desenvolvem ações de redução de danos por meio da abordagem das pessoas nas cenas de uso de drogas.

No campo específico do uso problemático de álcool e outras drogas, a redução de danos se situa como estratégia de saúde pública que visa reduzir os danos causados pelo uso de drogas lícitas e ilícitas, resgatando a pessoa em seu papel autorregulador, sem a exigência imediata e automática da abstinência, e incentivando-a à mobilização social5. A estratégia de redução de danos permite que as práticas de saúde acolham, sem julgamento, as demandas de cada situação, de cada pessoa, ofertando o que é possível e o que é necessário, sempre estimulando a sua participação e seu engajamento; reconhece cada pessoa em sua singularidade, traçando com ela estratégias que estão voltadas para a defesa de sua vida6.

Assim, são estratégias de redução de danos para pessoas em uso problemático de álcool e outras drogas, por exemplo, a ampliação do acesso aos serviços de saúde, por meio da abordagem in loco de equipes de saúde, a distribuição de insumos (seringas, agulhas, cachimbos) para prevenir a infecção dos vírus HIV e Hepatites B e C, a elaboração e distribuição de materiais educativos informando sobre formas mais seguras de uso e das consequências negativas do uso problemático de drogas, e a prevenção da violência no trânsito e interpessoal associada ao consumo destas substâncias7.

Os tímidos, porém fundamentais, avanços conquistados ao longo dos últimos 20 anos foram abruptamente subtraídos nos últimos 3 anos, por meio de uma sequência de medidas do governo federal que recolocaram os modelos combatidos e superados de abordagem e tratamento das pessoas em uso problemático de álcool e outras drogas como opções terapêuticas financiadas pelo poder público. Nesse sentido, é possível considerar que enfrentamos no Brasil, atualmente, pelo menos dois grandes desafios relacionados ao tema drogas e saúde: o recrudescimento das abordagens terapêuticas centradas na internação, reclusão e exclusão dos usuários de drogas, e o desapreço pela ciência como fiadora das melhores escolhas para a tomada de decisão.

Países que consideram, em suas tomadas de decisões, as evidências científicas, a proteção dos direitos humanos fundamentais e das liberdades individuais e que almejam uma sociedade menos violenta, mais justa e menos desigual, estão revendo o modelo de proibição das drogas e partindo para abordagens flexíveis amparadas pela ciência. Tais abordagens incluem a legalização da maconha, tanto para uso medicinal quanto para uso social adulto, como: estratégia de enfraquecimento do mercado ilegal de drogas, já que a maconha é a droga ilícita mais consumida no mundo, de aquecimento da economia, por meio da arrecadação de impostos oriundos de sua venda, para permitir o acesso a um medicamento com comprovados efeitos terapêuticos, e de estabelecer mecanismos de controle e regulação sobre quem pode produzir, vender e comprar maconha, evitando que grupos vulneráveis, como crianças e adolescentes, tenham livre acesso à substância como ocorre nos dias de hoje, quando esta venda é feita de forma ilegal.

Este cenário de flexibilização não é o observado no Brasil que, ao contrário, vem se isolando do restante do mundo nesta matéria ao ampliar propostas com vistas ao endurecimento da abordagem das pessoas que fazem uso problemático de drogas, modelo este fracassado e superado por quase todos os países da América Latina, da Europa e quase que a totalidade dos 50 estados norte-americanos, que legalizaram o uso de maconha, em alguma medida, seja ele medicinal, social adulto ou ambos.

As pesquisas científicas vêm produzindo dados que evidenciam a necessidade de reverter a compreensão do fenômeno uso de drogas pela perspectiva criminal, da repressão, da coerção e do medo, que instalam um verdadeiro estado policial nas sociedades de todo o mundo, a favor de uma abordagem que preze pelo cuidado e pela não estigmatização das pessoas que usam drogas. Essas evidências caminham no sentido de que a melhor maneira de lidar com o problema é que a circulação destas substâncias seja regulada pelo Estado, diminuindo o poder das organizações criminosas e de toda a sua cadeia de influências - na política, inclusive -, se beneficiando com os tributos oriundos deste comércio e investindo tal arrecadação em ações de tratamento e prevenção.

Na contramão disso tudo, medidas recentes foram tomadas pelo governo brasileiro e pelo poder legislativo que chancelam nosso atraso. A mais representativa delas foi a sanção da lei 13.840/2019, que facilita o uso das internações involuntárias (contra a vontade) de pessoas em uso problemático de drogas. Além desta, mudanças na política de saúde mental aprovadas em dezembro de 2017 na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) do SUS, recolocaram medidas questionáveis de tratamento, como o retorno do hospital psiquiátrico, ignorando o seu histórico de violação de direitos, e o financiamento público de comunidades terapêuticas, que são instituições privadas, de cunho religioso e que promovem internações de longa permanência. Ainda em dezembro de 2017, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) do Ministério da Justiça, em sua primeira e única reunião do ano, apresentou uma minuta de resolução para uma “nova” política de drogas que consolida elementos dessas medidas citadas, diminuindo o investimento e o protagonismo dos espaços de cuidado em liberdade, como os CAPS, e retirando do texto a redução de danos como estratégia terapêutica8.

A atual condução da política de drogas no Brasil confronta com as melhores evidências científicas produzidas nos últimos anos, recrudescendo diretrizes malsucedidas que estão sendo paulatinamente abandonadas em âmbito internacional, a favor de modelos que reposicionam os objetivos primordiais do Estado, de promoção da saúde pública, da liberdade e dos direitos fundamentais.

 

Referências

Barros, S., & Salles, M. (2011). Mental health care management in the Brazilian national health system. Revista Da Escola De Enfermagem Da USP, 45(SPE2), 1780–1785.

Mazitelli F, Santos V, Malcher MN, Santos J, Nogueira D, Obara M, et al., organizadores. Desenvolvendo e articulando o conhecimento para o cuidado das pessoas em sofrimento pelo uso de drogas em contextos de vulnerabilidade. Curitiba: CRV; 2015. p. 123 – 148

Brasil. Ministério da Saúde. A Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília, DF, 2003.

Brasil, Portaria nº 122. Define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na Rua, Brasília, DF, 2011.

Passos, E. H., & Souza, T. P. (2011). Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de" guerra às drogas". Psicologia & Sociedade, 23(1), 154-162.

Machado, L. V., & Boarini, M. L. (2013). Políticas sobre drogas no Brasil: a estratégia de redução de danos. Psicologia: ciência e profissão, 33(3), 580-595.

SANTOS, Vilmar Ezequiel dos; SOARES, Cássia Baldini; CAMPOS, Célia Maria Sivalli. Redução de danos: análise das concepções que orientam as práticas no Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 20, p. 995-1015, 2010.

Cruz, N. F. D. O., Gonçalves, R. W., & Delgado, P. G. G. (2020). Retrocesso da reforma psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trabalho, Educação e Saúde, 18(3).

 

* Andrea Gallassi é Terapeuta Ocupacional, Mestre e Doutora pela Faculdade de Medicina da USP e Pós Doutora pelo Centre for Addiction and Mental Health da Universidade de Toronto, Canadá. Professora Associada da Universidade de Brasília (UnB) e Coordenadora Geral do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da UnB.

 

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