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Nossa Mesa Cresceu

A partir de fevereiro, o programa Mesa Sesc São Paulo ganha extensão nacional. A meta do novo Mesa Brasil é ampliar para 4 mil toneladas a arrecadação de alimentos em 2003

Olhar calmo, chinelos desgastados, passos lentos. É preciso inclinar-se para escutar sua história, narrada em sotaque arrastado. Do alto de seus 63 anos, o baiano João Vieira de Souza ainda migra. Todos os dias. João deixou a terra natal há cerca de 30 anos sedento por oportunidades em São Paulo. Sorrindo, recorda os tempos em que atuava como segurança em empresas da capital paulista. Hoje, sem filhos, o baiano vive em dois albergues na região central da cidade. Essas entidades abrigam pessoas que tiveram seus direitos às condições básicas de sobrevivência, garantidos em Constituição, ceifados pela crise socioeconômica que assola o País. João dorme num abrigo do Brás. Mas, logo cedo, caminha até o bairro do Glicério, onde há outro albergue. É neste último, o Centro de Acolhida São Francisco, que João passa seus dias, retornando pendularmente ao Brás com o cair da noite.
O motivo? "Vim aqui para facilitar mais o bolso", argumenta. No albergue noturno, é obrigado a desembolsar R$ 1 pelo prato de comida, enquanto no Glicério ganha o almoço de graça. Com um livro de fotos da Bahia nas mãos, João diz que é ruim ter fome. "Você nunca sentiu?", indagou à queima-roupa, para, em seguida, surpreender-se com a possibilidade de alguém nunca ter vivido a experiência da fome.
A história de privações e sacrifícios desse nordestino não é única. No Brasil, 54 milhões de pessoas são consideradas "pobres", segundo relatório divulgado em dezembro passado pelas Nações Unidas e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desse contingente, cerca de 49 milhões de pessoas (quase um terço da população) sobrevivem com até meio salário mínimo percapita, enquanto 5 milhões não possuem nem mesmo fonte de renda. Aliado a isso, o fantasma da inflação voltou à baila nos últimos meses, alçando os preços da cesta básica - que na cidade de São Paulo valia, em dezembro, mais do que um salário mínimo.

Mesa São Paulo, Mesa Brasil
Há tempos, a responsabilidade pela garantia do direito social à alimentação deixou de ser exclusividade do poder público e passou a ser partilhada com a sociedade. Na tentativa de aliviar o cenário de miséria, o chamado terceiro setor tem ampliado cada vez mais sua atuação. Nesse bojo de iniciativas de combate à fome, encontra-se o Mesa São Paulo, programa do Serviço Social do Comércio que coleta alimentos excedentes ou sem valor comercial junto a empresas e os distribui a instituições beneficentes. Ao implantar esse sistema, denominado "colheita urbana", o Sesc busca atar duas pontas que muitas vezes podem parecer distantes: o setor produtivo e a população carente. Criado em 1994, o Mesa São Paulo já atinge cerca de 35 mil pessoas somente na capital paulista. No Estado de São Paulo, o número de atendidos salta para aproximadamente 55 mil.
Foi tendo em vista o sucesso do programa que o Departamento Nacional do Sesc decidiu ampliar sua atuação contra a fome. E a mesa cresceu. Com previsão de lançamento para o próximo mês, o Mesa Brasil - programa de abrangência nacional contra o desperdício de alimentos e combate à fome - tem como meta chegar a todas as capitais brasileiras até 16 de outubro de 2003, com atenção prioritária às áreas mais necessitadas. A data foi escolhida em virtude da comemoração do Dia Mundial da Alimentação. A proposta é ampliar o trabalho desenvolvido pelos já bem-sucedidos projetos dos Departamentos Regionais do Sesc: Mesa São Paulo, Banco Rio de Alimentos, Banco de Alimentos, de Pernambuco, e Amigos do Prato, do Ceará.
A Gerência de Esporte e Saúde do Departamento Nacional do Sesc coordena o grupo de trabalho do Mesa Brasil, com a colaboração das equipes do Mesa São Paulo e do Banco Rio de Alimentos. O primeiro passo será treinar equipes estratégicas nos Estados para a implantação do programa. Cada área a ser trabalhada será avaliada quanto às suas especificidades socioeconômicas e culturais.
Para 2003, a estimativa do Mesa Brasil é arrecadar 4 mil toneladas de alimentos. Isto é, elevar em um terço a arrecadação aproximada do ano passado referente aos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Pernambuco, de 3 mil toneladas.

Combate ao desperdício
Há oito anos nascia o Mesa São Paulo. A Vigília Musical Contra a Fome, campanha de arrecadação de alimentos realizada pelo Sesc em parceria com a Ação da Cidadania Contra a Fome, capitaneada por Betinho, deu origem à idéia. O evento oferecia 24 horas ininterruptas de atrações musicais e o ingresso eram alimentos não-perecíveis.
O Sesc São Paulo, que já lidava com programa de alimentação subsidiada à população de baixa renda na unidade do Carmo, passou a discutir uma forma de ação permanente de combate à fome. "Aquilo foi uma ação pontual, no bojo de uma campanha, mas entendemos que deveria haver um programa de caráter permanente", recorda Estanislau da Silva Sales, gerente de programas socioeducativos do Sesc São Paulo.
Num primeiro momento, eram fornecidas às entidades beneficentes refeições prontas. Em seguida, o modelo foi substituído pelo atual sistema de "colheita urbana", baseado em programas dos Estados Unidos e Portugal.
Além de proporcionar à população carente uma alimentação mais nutritiva com a complementação de refeições, o Mesa SP ataca outro problema recorrente no Brasil: o desperdício de alimentos. São recebidos produtos fora do padrão usual de venda, como tomates pequenos; com defeitos de embalagem; e ainda com prazos de validade próximos ao vencimento, fato que dificulta a comercialização.
Sob a responsabilidade do Sesc São Paulo, os alimentos são examinados por uma equipe de nutricionistas e, quando necessário, submetidos a análises laboratoriais que garantem segurança aos futuros consumidores. Exemplo curioso de doação é a praticada pela cadeia de fast food Habib's. Ao preparar um prato, a lanchonete despreza a ponta e o miolo da abobrinha que, mais tarde, passam a compor o almoço de João em seu albergue diurno.
"Em termos de conceito, é simples: pegar onde sobra e levar onde falta. Mas a logística é complexa", nota Estanislau, chamando a atenção para a eficiência com que os alimentos devem ser vistoriados e entregues às entidades.
Entre as 369 instituições carentes beneficiadas pelos núcleos de Santos, São José dos Campos e pelos dois implantados em São Paulo (Sesc Carmo e Itaquera), está uma das moradas de João, o Centro de Acolhida São Francisco, que prepara diariamente cerca de 1.180 refeições. No Estado de São Paulo, as doações provêm de 461 empresas, que vão desde supermercados e indústrias até companhias que prestam serviço de transporte e bancas do Ceagesp. Bens de consumo, como equipamentos de cozinha, também são bem-vindos.
Importante parceira do Mesa SP, a Vigor tem um histórico de mais de 30 anos de colaboração com projetos sociais. Segundo estimativa de seu vice-presidente de controle, Vinícius Ramos, no ano passado, a empresa doou cerca de 60 toneladas de alimentos ao Mesa SP.
Além de seu caráter social, que foge do assistencialismo e paternalismo, o programa tem forte cunho educativo - o que também será reproduzido no Mesa Brasil. Mensalmente, são realizadas oficinas destinadas a voluntários e profissionais das instituições atendidas pelo programa e empresas doadoras. O objetivo é possibilitar o acesso a informações básicas na área de alimentação, garantindo a qualidade nas refeições e promovendo a mudança de hábitos alimentares. Entre os assuntos tratados, estão dicas culinárias para o aproveitamento integral dos alimentos. Os cursos são ministrados por microbiologistas, nutricionistas, médicos e culinaristas que colaboram como voluntários.

Incentivo fiscal
Ao ser mencionado no Fome Zero, projeto social prioritário do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o Mesa São Paulo firma seu status de programa modelo de combate à fome. "O Mesa SP é exemplar. Seu resultado mostra que ele é extremamente eficiente", aplaude Walter Belik, um dos coordenadores do Fome Zero. O sociólogo justifica que o programa do Sesc concilia a participação da sociedade com a ação efetiva contra a fome. Apesar do reconhecimento, Belik, avalia que o Mesa SP ainda pode ser aprimorado. "Propomos que ele seja aperfeiçoado através de legislação", diz o coordenador. Tendo em vista o impulso que ganharia junto à classe empresarial, o Fome Zero recomenda explicitamente que o Estatuto do Bom Samaritano seja tratado pelo Congresso Nacional.
Iniciativa do Sesc, o documento é um conjunto de quatro anteprojetos de lei e um anteprojeto de convênio relativo ao ICMS que visa proteger o doador quanto à responsabilidade civil e criminal, além de conceder isenções e incentivos fiscais a quem faz doações. O Estatuto foi entregue ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em setembro de 1996, mas ainda não foi aprovado integralmente. "A filantropia vai até determinado ponto para algumas empresas. Outras precisam de um empurrãozinho a mais", afirma Belik que hoje considera o terceiro setor "desapoiado e sem incentivo".
Disposto a trabalhar pela aprovação do Estatuto, Oded Grajew, presidente do Instituto Ethos, deseja ver em 2003 a votação dos projetos de lei. "Vamos começar a trabalhar para pressionar o Congresso", promete Grajew, para quem a iniciativa do Sesc é de extrema importância. Há, entretanto, os que defendem que as colaborações ocorram independente de incentivos fiscais. A idéia é partilhada por Vinícius Ramos, da Vigor. Ele avalia que o empresário tem de ser guiado por um "espírito humanitário e societário". Para o executivo, trata-se de uma "obrigação da sociedade para resgatar a população dessa mazela que é a fome". Contrário a formas de incentivo fiscal pelo governo, ele argumenta que as medidas reduziriam verbas. "O governo não tem de dar incentivo. As empresas é que devem ter iniciativas", defende.
Do outro lado, Belik e Grajew apostam que as doações ganhariam impulso com os incentivos fiscais. O presidente do Ethos também nota que as parcelas de impostos a serem deduzidas representam pouca receita para o governo diante dos benefícios proporcionados.

Silvia Basílio é jornalista


Cartilha contra a fome
Intituto Ethos cria manual para orientar empresários

O diretor regional do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, chama a atenção para a mobilização da sociedade em projetos de combate à fome e ao desperdício, como o Mesa São Paulo. "O Sesc desempenha um papel articulador e alavancador. A comunidade tem de estar envolvida", ressalta.
Confirmando essa tendência, estimativas do Instituto Ethos apontam que, ao cabo dos próximos quatro anos, mais 3 milhões de empresas irão se unir à ofensiva de combate à fome. Engajada na conscientização do empresariado no que diz respeito à problemática da pobreza, a entidade faz parte do time de mobilização social do Fome Zero, programa prioritário do governo Lula.
Oded Grajew, presidente do Ethos, acredita que na esteira do Fome Zero a participação dos empresários crescerá de maneira significativa. Para fomentar as colaborações, o Ethos deve lançar em janeiro um manual para orientar a participação das empresas em projetos de inclusão social. Intitulado "O que as Empresas Podem Fazer pelo Combate à Fome", a idéia do documento é driblar a falta de informação sobre o tema.
E a ofensiva não pára por aí. O Ethos prevê ainda a criação de um website que, além de enfocar o combate à pobreza, relatará experiências bem-sucedidas na área. Também é planejada uma grande campanha de mídia e uma exposição, no mês de outubro, que mostrará a participação de empresas em questões sociais.
Acredita-se que, ao jogar luz sobre a situação dos excluídos, o Fome Zero desencadeie maior integração nacional no que se refere à questão da pobreza. "Acho uma iniciativa importante. Está atacando um problema crônico no Brasil", elogia o vice-presidente de Controle da Vigor, Vinícius Ramos. Ele nota, contudo, que apenas doações não resolvem o problema. "As ações têm de ser mais profundas, como a criação de oportunidades de renda, cooperativas de trabalho e pequenos negócios", avalia, reconhecendo, porém, que hoje não há alternativa que atenda melhor ao tema com a urgência que o País necessita.