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Ficção Inédita
A morte lucrativa

Valêncio Xavier

O engenheiro, vamos chamá-lo de Fulano, trabalhava na usina siderúrgica de... Dedicara sua vida - sem resultado - para obter uma liga de aço que fosse bastante forte e ao mesmo tempo flexível como borracha. Já era velho e não enxergava direito. Um dia, quando inspecionava o aço líquido que escorria nos cadinhos de fundição, tropeçou e caiu dentro da massa incandescente. Foi um corre-corre, mas nada pôde ser feito, o acidente foi fatal e seu corpo derretera-se fundindo com o aço.
Sua morte foi muito sentida, a diretoria da usina pensou em dar sepultura cristã ao enorme bloco de metal já solidificado, mas numa grande indústria não há lugar para sentimentalismo e o cadáver foi transformado em lâminas de barbear. O espantoso foi que, quando submetidas aos testes, provaram ter uma resistência incrível: capazes de receber o mais forte impacto e ao mesmo tempo maleáveis a ponto de uma criança poder dobrá-las sem que se quebrassem. O que o engenheiro Fulano buscara durante sua vida conseguira com sua morte.
A diretoria, ao saber do resultado dos testes, reuniu-se para discutir a fabricação do novo tipo de aço. Seria a glória financeira, poderia entrar no mercado internacional, concorrendo com as grandes siderúrgicas do mundo. A reunião principiou com animadas conversas sobre as modificações a fazer para aumento das instalações, o lucro futuro, a revolta dos concorrentes. No meio daquela exaltação um dos diretores pediu a palavra e explicou: "Embora tentasse há muitos anos, o engenheiro Fulano nunca conseguiu um aço tão perfeito. Se isto agora aconteceu, não foi na maneira de temperar o metal, mas por alguma coisa que ele trazia no bolso, que se juntou ao aço candente, apurando-o."
Essas palavras caíram como água fria na fervura, mas os outros diretores foram obrigados a reconhecer que eram certas. Um deles, então, sugeriu: "Se isto é verdade, vamos tratar de descobrir o que o engenheiro Fulano trazia na hora do triste acidente."
Puseram-se em ação. Procuraram a viúva do infeliz e, após os rodeios de praxe, indagaram sobre o conteúdo dos bolsos do marido no dia fatídico: "Fácil", disse ela. "Eu mesma arrumava suas coisas. Naquele dia, lembro-me bem, coloquei nos bolsos de seu terno de sarja azul as chaves da casa, sua carteira de identidade, um pacote de balas de hortelã (o falecido gostava tanto!), um lenço de cambraia, uma nota de 200 e uma de 20 reais. Deve ter gastado 10 de ônibus, teria então 210 reais quando morreu."
No dia seguinte, os técnicos da usina receberam ordem para misturar na têmpera do aço um terno de sarja azul, duas chaves, uma carteira de identidade, um pacote de balas de hortelã, um lenço de cambraia e 210 reais. Os técnicos estranharam, mas numa grande indústria as ordens de cima devem ser sempre obedecidas e a extravagante mistura foi posta nos cadinhos de fundição. O aço assim produzido foi testado, mas sua qualidade provou ser a mesma ou pior que as anteriores. Reunião da diretoria para examinar o fracasso da experiência. Uns explicavam o malogro pela má qualidade das balas usadas, outros achavam que o lenço devia ser de cambraia estrangeira. As coisas estavam nesse pé, até um dos diretores sugerir: "Quem sabe não foi nada disso que apurou a liga, e sim o corpo do engenheiro Fulano, seus ossos, sua carne, seu sangue?" Alguns dos diretores mostraram-se horrorizados com essa idéia, mas como ela foi muito bem esplanada - e como as idéias bem esplanadas devem ser sempre aceitas - resolveram pô-la em prática.
Um cadáver fresco foi comprado na Faculdade de Medicina e vestido da mesma maneira do engenheiro Fulano. Numa tarde mandou-se sair os operários da usina e o defunto foi atirado na forja. A diretoria esperou ansiosa o resultado dos testes. Nova desilusão: o mesmo aço de sempre, a mesma qualidade, a eterna luta para colocá-lo no mercado. Nova reunião. Creio que todos sabiam o que iria ser sugerido, mas ninguém tinha coragem de dizer, por isso, o início da reunião foi bem desagradável. Longos períodos de silêncio seguiam as palavras dos participantes. Finalmente alguém mais corajoso tomou a palavra: "Concordamos que a ótima qualidade da liga foi conseguida graças ao corpo do engenheiro Fulano. Repetimos o acidente, porém o engenheiro estava vivo quando caiu na forja, mas nós usamos um cadáver. Quem sabe se nosso erro foi esse? Talvez o sangue borbulhante e as células exerceram alguma influência na têmpera. Proponho nova experiência, desta vez com um ser humano vivo!"
Longo como a eternidade foi o silêncio que seguiu essas palavras. Não sei o que ficou resolvido, sei que, alguns dias depois, um operário - por sinal um dos mais antigos e respeitados da usina, tanto é que naquele mesmo dia havia sido presenteado pela direção com um belo terno de sarja azul - caiu dentro da forja, morrendo instantaneamente. Este triste acidente não melhorou a qualidade do aço. A diretoria, como no caso do engenheiro, pensou em fazer os funerais do bloco de aço; contudo, naqueles dias estourou mais uma guerra mundial. Aumentou a procura do aço e seu preço subiu vertiginosamente; tornou-se necessário aumentar a produção e o velho operário foi transformado em chapas blindadas para tanques. Como a guerra continua e todo aço produzido é necessário, não importa sua qualidade, ignoro em que pé estão as pesquisas da usina para melhorar a produção. É uma pena, pois é um problema que me interessa bastante...

Valêncio Xavier é escritor e autor de Minha Mãe Morrendo e o Menino Mentindo (Companhia das Letras)