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Teatro

Porta-vozes da história

 

O Teatro de Arena, o Oficina e o grupo Opinião revolucionaram a arte dramática brasileira ao tratar de política, sociedade e cultura em época de intensa repressão

 

A edição do dia 5 de outubro de 1948 do jornal O Estado de S. Paulo previa que aquele ano entraria para a história do teatro brasileiro como um divisor de águas. O marco, dizia o jornal, era a inauguração do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), que, encampado pelo italiano Franco Zampari, foi responsável pela profissionalização do teatro brasileiro. As produções feitas em São Paulo deixaram de ser amadoras para se tornar superproduções – com direito a divas, superastros, ingressos caros e uma platéia com traje de gala. Mesmo tendo uma base sólida, o teatro brasileiro passa por um processo de mudança na década seguinte. Uma geração de jovens atores e dramaturgos surge com o desejo de conferir ao teatro uma dimensão maior do que uma opção de lazer para a elite, elegendo uma dramaturgia e um estilo de interpretação 100% nacionais. Instrumentos utilizados tanto para colocar de pernas para o ar o padrão estético da época quanto para cutucar a ordem política. Esse era o “jeito diferente de fazer” proposto pelo Teatro de Arena, pelo Teatro Oficina e pelo pessoal do show Opinião. “Um traço muito curioso da época é que a dramaturgia, a literatura e a música começaram a estruturar melhor o conceito de identidade nacional”, explica o pesquisador Wellington Andrade, um dos organizadores do projeto Em Cena, Ações!, do Sesc Ipiranga, que vai, até junho, discutir o teatro dos anos 60 e 70 no Brasil, com debates e leituras dramáticas. Segundo Andrade, embora essa iniciativa fosse originária do modernismo, na primeira metade do século 20, ainda se tratava de uma iniciativa pulverizada. “Nos anos 50 essa preocupação flui e ganha insumo”, afirma.

 

 

Na Arena

 

A primeira peça do Teatro de Arena, Essa Noite É  Nossa, de Stafford Dickens, foi encenada em 1953 sob a direção de José Renato, fundador do grupo. A peça chamou a atenção, sobretudo, por resgatar uma estética que parecia banida do teatro brasileiro, e era pouco explorada no resto do mundo: o rompimento com o palco italiano. Nela os atores do Arena ficavam no centro da sala, rodeados pelo público. Segundo escreve o crítico de teatro Sábato Magaldi no livro Cem Anos de Teatro em São Paulo (Editora Senac, 2000), produzido em parceria com Maria Thereza Vargas, em seus primeiros anos, o Arena era uma espécie de TBC econômico. “Todos os gastos se reduziam a partir da sala e da ausência de cenários”, afirma. A José Renato juntaram-se posteriormente Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho, estes últimos estudantes filiados ao Partido Comunista e integrantes do Teatro Paulista do Estudante. “Representávamos para o Arena a juventude que chegou ao teatro marcada pela luta nacionalista e pela percepção da política como atividade que todos praticavam”, afirmou na época Vianninha em depoimento publicado em Cem Anos de Teatro em São Paulo. Até 1958, o Arena patinava para se manter. A situação difícil já tinha convencido José Renato a encerrar o grupo, até que ele decidiu que a peça de despedida ia ser Eles Não Usam Black Tie, escrita para o Arena por Gianfrancesco Guarnieri. Desnecessário dizer que a partir disso a história foi outra. “A obra não só foi a salvação do Arena como um marco fundamental no teatro brasileiro”, analisa Magaldi. Na euforia do sucesso trazido pelo espetáculo, a companhia começou a promover seminários de dramaturgia brasileira. No dia marcado, o autor lia seu texto em voz alta para o público e em seguida havia um debate. “Todo mundo palpitava em cima dos textos e foi a partir daí que surgiram novos autores e novos temas de discussão”, explica Wellington Andrade. Por esses seminários passaram nomes como Beatriz Segall, Flávio Migliaccio, Nelson Xavier e Milton Gonçalves. “Queríamos descobrir não só uma representação particular do personagem, como descobrir o homem brasileiro”, lembra Milton Gonçalves, também em depoimento presente no livro de Sábato Magaldi. “Cada vez que a gente encontrava um tipo interessante na rua, seguíamos essa pessoa como uma sombra, procurando observar e descobrir os menores gestos, a maneira de andar e outros detalhes.” Essa investigação da realidade brasileira resultou em alguns espetáculos que se apropriavam de personagens históricos para fazer um paralelo com a situação da política nacional do momento. Os mais famosos foram Arena Conta Zumbi (1965) e Arena Conta Tiradentes (1967), que apresentavam ainda mais uma inovação: a presença da música como ingrediente de narração. Movimento que se propagou, multiplicando o poder de eco da MPB, com suas inúmeras canções de resistência. Bom exemplo é trilha de Arena Conta Zumbi, que foi composta pelo então jovem e iniciante Edu Lobo.

 

 

MPB e teatro

 

A música tornou-se um forte elemento do trabalho do Arena. Tanto é que em 1964, em co-produção com o grupo Opinião, do Rio de Janeiro, foi produzido um show homônimo que também marcou época. O grupo carioca era formado por nomes como Ferreira Gullar, Armando Costa, Paulo Pontes, Thereza Aragão e Oduvaldo Vianna Filho e a música ganhou o reforço de Zé Ketti, João do Vale e Nara Leão. Construído como uma colagem, que unia canções e depoimentos, o Opinião, com direção de Augusto Boal, representou o início do ciclo de resistência cultural ao golpe militar ocorrido naquele ano. Em 1965, outro espetáculo, em parceria com o Teatro de Arena, consolida o sucesso de público e crítica para o formato. Liberdade, Liberdade, escrito por Millôr Fernandes e Flávio Rangel, também diretor, trazia um roteiro com cenas de peças, poemas e canções. No elenco destacavam-se Paulo Autran, Tereza Rachel, Oduvaldo Vianna Filho e Nara Leão. Com a repressão militar, alguns dos nomes mais importantes desses grupos foram obrigados a deixar o País. O exílio de Augusto Boal, em 1971, foi um baque na trajetória do Arena. O Opinião seguiu mais longe, até 1979, quando encenou Mural Mulher, dirigido por João das Neves.

 

 

Outra voz

 

No mesmo ano em que Eles Não Usam Black Tie inaugurava um modo brasileiro de fazer teatro, o Teatro Oficina, formado por estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, encabeçados por José Celso Martinez Corrêa, surgia como um promissor grupo amador. Assim como o Opinião, o pessoal do Oficina flertava o tempo todo com o Arena. Era comum que alguém do grupo de Boal dirigisse uma peça deles ou que o Oficina montasse um texto produzido pelo Arena. O primeiro grande sucesso do grupo foi Pequenos Burgueses (1963), de Máximo Górki, e causou grande impacto. “Não era difícil perceber que se tratava do mais perfeito espetáculo brasileiro concebido na linha realista”, afirma Sábato Magaldi em seu livro. Até então, o Teatro Oficina se distinguia por ter absorvido a experiência da dramaturgia internacional e por adaptá-la ao contexto brasileiro. Em 1966, a sede do teatro foi destruída por um incêndio e reconstruída no ano seguinte. A reinaguração se dá com a montagem de O Rei da Vela, escrito por Oswald de Andrade em 1937. A montagem é considerada também um anúncio do tropicalismo, movimento artístico que se utilizou das idéias do Manifesto Antropófago, do próprio Oswald, para reaproveitar elementos estrangeiros que entram no País e, por meio de sua fusão com a cultura brasileira, criar um novo produto artístico – na música seus maiores representantes foram Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e Gal Costa. O Teatro Oficina foi invadido pelos militares em 1974 e Zé Celso exilou-se em Portugal, voltando ao Brasil somente no final dos anos 70. “Como diz o crítico Zuza Homem de Mello, de tempos em tempos a humanidade elege momentos em que a história convoca artistas para ser porta-vozes”, analisa Welington Andrade. E, no Brasil dos anos 60, o teatro e a música popular brasileira foram convocados a expressar pela arte o momento de repressão que vivia o País.