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Em Pauta

A polêmica na tela

 

Ilustrações: Marcos Garuti

 

O controle do conteúdo das televisões, sobretudo por parte do Estado, divide opiniões e causa as mais diversas reações. De um lado, há quem diga que o governo deve intervir de alguma forma – entre outros motivos pelo fato de a televisão ser uma concessão pública e por isso dever satisfações à sociedade. De outro, há os que são contra, ou reticentes a esse respeito, evocando até mesmo os tempos da censura promovida pela ditadura militar. Em artigos inéditos e exclusivos para a Revista E, o psicanalista Sérgio Telles e o advogado André de Godoy Fernandes expõem suas opiniões sobre os diferentes aspectos da questão.

 

 

Censura

 

De que maneira o mundo é governado e como começam as guerras? Diplomatas contam mentiras para os jornalistas e passam a nelas acreditar quando as lêem na imprensa. 

Karl Kraus (1874-1936)

 

Toda vez que se fala em exercer algum controle sobre a programação da televisão no Brasil, constata-se uma grande rejeição. Quase automaticamente, as pessoas se declaram contra a censura.

 

Talvez isso se deva a tardios efeitos traumáticos da ditadura militar e sua abominada censura, que suprimia do discurso falado ou impresso aquilo considerado “subversivo” aos interesses “públicos”.

 

Mas é necessário lembrar que, na história da humanidade, a censura tem exercido um papel decisivo, uma vez que expressa a relação entre o Estado e o cidadão. Desde os tempos antigos até o presente, através da lei, o Estado regula a ordem, a moral e os costumes públicos, proibindo e permitindo, censurando ou aprovando condutas, idéias, comportamentos. Se o controle estatal já foi mais absoluto, com o desenvolvimento político mais moderno – o abandono da crença no poder divino dos reis e a implantação da democracia representativa, iniciada com a Revolução Francesa – ele tem progressivamente amainado, especialmente no chamado mundo ocidental, ressalvando-se os momentos totalitários ou ditatoriais que nele ocorreram mais recentemente.

 

Um exemplo clássico de censura é o Index Librorum Proibitorum, no qual estão listados os livros que a Igreja Católica considera ofensivos a sua doutrina e que estão, conseqüentemente, vetados para os fiéis, passíveis de severas punições caso desobedeçam tal mandato. Esse Index, por mais espantoso que possa parecer, está em vigor desde o século 5 até o presente momento. Sua vítima mais ilustre foi Galileu.

 

Pensadores e organizações políticas estão particularmente atentos contra abusos do Estado no controle dos cidadãos, quer seja quanto à circulação de informação, quer seja quanto à liberdade de expressão da individualidade. Constata-se, atualmente, nos países democráticos, uma especial ênfase neste último item.

 

Deve-se evitar a falsa idéia de que seja possível uma situação na qual esteja abolida toda e qualquer censura, como seria o desejo dos que levam a extremos seu individualismo ou daqueles egressos de regimes autoritários.

 

Por menos que interfira, o Estado precisa garantir a ordem pública e essa implica em proibições que viabilizam a convivência social. Não é muito diferente o que Freud diz em O Mal-estar da Civilização. Para Freud, a insatisfação própria do homem civilizado é decorrente de uma contingência irreversível: para que a vida em sociedade possa persistir, é absolutamente necessária a repressão das pulsões agressivas e sexuais. O homem civilizado não pode dar livre expressão aos desejos agressivos ou sexuais dirigidos a seus semelhantes.

 

Abstraindo o aspecto inconsciente, essas censuras internalizadas se evidenciam em nossas relações pessoais. Por acaso, falamos sempre e exclusivamente a verdade para nossos interlocutores? Informamos a eles, sem omissões ou censuras, tudo o que se passa em nossos pensamentos? Dizemos tudo sobre nós mesmos e nossos sentimentos?  Pelo contrário, seguimos regras de convivência social, nas quais determinados assuntos estão proibidos, são afastados de antemão. Mesmo quando estamos na mais íntima das companhias, nem aí dizemos tudo. Por consideração, amor ou respeito, omitimos uma série de coisas que poderiam desagradar ou ofender nossos entes queridos.

 

Voltemos agora à grande imprensa. Seria a censura política imposta por um regime ditatorial o único tipo de restrição existente sobre a mídia? Claro que não. Não podemos esquecer que a informação, tal como a vivemos atualmente, é um bem de consumo que é produzido por uma empresa. E essa empresa tem seus percalços. Os mais evidentes são aqueles ligados aos investimentos nela feitos e os lucros esperados. Isso significa, muitas vezes, sua dependência dos financiamentos do Estado e do grande capital. Este último, por sua vez, produz outros bens de consumo que vêm atender às necessidades artificialmente criadas pela publicidade veiculada na grande imprensa. 

 

Vê-se que, até chegar ao leitor, a notícia segue por tortuosos caminhos, atravessando múltiplas redes de interesses e seus respectivos sistemas de censuras.

 

Guy Debord, autor de A Sociedade do Espetáculo, afirma que vivemos numa sociedade que nos afoga num mar de informações absolutamente triviais e nos afasta daquelas que realmente interessam: aquelas provenientes do exercício do poder político e econômico. Somos entretidos com inumeráveis fofocas sobre celebridades, e o que se passa nas altas esferas, nas quais nosso destino é decidido, fica ocultado por esse manto de futilidades. O Estado e o grande capital criam suas versões dos fatos e as impõem à mídia, que as repassa para o público como a verdade, a realidade.

 

Apesar do tom paranóico desta tese, o que vimos depois do 11 de setembro e das decisões de Bush é bastante ilustrativo. São exemplos da transformação de fatos em versões que atendem a interesses de propaganda política para a manipulação das massas.

 

Mas não podemos negar que, dentro da própria mídia, há os que lutam para que a informação circule o mais livremente possível.

 

Essas idéias todas nos levam a constatar que a censura é onipresente na cultura e que não é possível manter, diante dessa questão, uma posição simplista, dualista, digital – o de se ser “pró” ou “contra” de forma generalizante.

 

Em vez de simplesmente rejeitá-la, o que seria uma ingenuidade, o que deve ser feito é tentar controlar a censura e influir em sua aplicação, avaliando cuidadosamente – caso por caso – onde, como e com qual intensidade deve ela incidir.

A televisão, por sua intensa penetração social, inclusive entre as crianças, merece especial cuidado quanto à censura. Não deixa de ser chamativa a excessiva repressão dos censores sobre a sexualidade e sua grande tolerância com a violência. Recentemente, nos Estados Unidos, a CBS foi multada em 550 mil dólares por ter Janet Jackson mostrado um seio num programa de grande audiência.

 

Se devemos poupar as crianças de cenas sexuais e agressivas excessivamente cruas, não devemos concluir que a televisão seja a responsável pela violência ou pelos desvios da infância ou da juventude. Eles se devem menos à televisão do que a lares disfuncionais, à neurose familiar, ao abandono afetivo. Aliás, o fato de as crianças ficarem horas à frente da televisão é apenas mais uma evidência do descaso dos pais ao qual estão expostas.

 

Sérgio Telles é escritor e psicanalista, membro do departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, e autor de O Psicanalista Vai ao Cinema (Casa do Psicólogo/EdUFSCar, 2004) e Mistura Fina (Casa do Psicólogo, 2004), entre outros livros

 

 

 

O controle da programação televisiva

 

A questão do controle da programação televisiva é sensível e premente para uma sociedade interessada em construir instituições democráticas. O debate sobre o tema deve, no entanto, superar alguns mal-entendidos.

 

Antes de tudo, é importante esclarecer que as propostas sérias de controle da programação televisiva nada têm a ver com censura.

 

O significado estrito de “censura”, segundo o Dicionário Houaiss, é o de exame a que são submetidos trabalhos de cunho artístico ou informativo, geralmente com base em critérios de caráter moral ou político, para decidir sobre a conveniência de ser ou não liberados para apresentação ou exibição ao público em geral. Nessa acepção, a censura foi proscrita pela Constituição brasileira.

 

Por outro lado, a proposta que merece ser considerada pela sociedade brasileira no tocante à programação das emissoras de televisão é a de regulação e fiscalização da atividade por um órgão administrativo autônomo.

 

Regular, é importante esclarecer, significa fundamentalmente estabelecer normas jurídicas gerais e abstratas sobre determinada atividade econômica e promover constante fiscalização ou controle do cumprimento dessas normas. Nunca é redundante afirmar que o estabelecimento de normas jurídicas (através de leis, decretos etc.) deve ser feito sempre em estrita consonância com os princípios e valores previstos na Constituição.

 

Assim, a proibição de ingerência ou intervenção a priori, por parte do Estado, na produção dos programas a ser difundidos pela televisão não deve excluir o controle, a posteriori, da adequação da programação televisiva a determinados princípios e valores maiores estabelecidos constitucionalmente.

 

Convém esclarecer, ademais, que a atividade de radiodifusão de sons e imagens (televisão aberta) é considerada pela Constituição brasileira um serviço público e, como serviço público, a televisão fica submetida ao princípio da prevalência do interesse público sobre os particulares. Isso significa que, na televisão, os interesses da coletividade devem prevalecer sobre os interesses particulares das emissoras de televisão.

 

Esclareça-se, a propósito, que a prestação do serviço de radiodifusão, embora atribuída originalmente ao Poder Público pela Constituição brasileira, pode ser realizada por emissoras privadas mediante delegação feita através das figuras da concessão e da permissão. Todavia, é importante frisar: as emissoras de televisão privadas não são proprietárias dos canais de televisão, mas concessionárias/permissionárias, que possuem o direito de exploração da atividade por certo tempo. No caso brasileiro, a Constituição fixou em dez anos o prazo da concessão/permissão para canais de rádios e em 15 anos para os canais de televisão.

 

Por conta do número reduzido de canais de radiodifusão disponíveis, decorrente da limitação do espectro eletromagnético, a outorga de concessão ou permissão para a exploração de serviços de radiodifusão exige uma escolha entre as pessoas ou entidades interessadas. Em atenção ao princípio da primazia do interesse da coletividade, que pauta a prestação de qualquer serviço público, essa escolha deve recair sobre a pessoa ou entidade que se comprometa a cumprir certas obrigações e respeitar determinados valores definidos antecipadamente como relevantes pela coletividade.

 

Nesse ponto, a regulação aparece como forma de a coletividade, diretamente ou através de seus representantes, estabelecer as finalidades e as regras que devem ser observadas pelas emissoras de televisão na prestação dos serviços de radiodifusão.

 

Em países desenvolvidos – com tradição democrática mais arraigada que no Brasil, lembre-se – a regulação da programação da televisão é feita através não só de regras positivas, que criam para as emissoras obrigações de difusão de determinados tipos de programas (por exemplo, telejornais, programas infantis e filmes nacionais), como de regras negativas, que impõem restrições à difusão, em determinados horários, de certos programas (com conteúdo violento e/ou pornográfico, por exemplo), ou proíbem determinadas condutas da emissora (como a divulgação de notícias de forma parcial).

 

No caso brasileiro, é importante recordar que a Constituição dispõe, em seu artigo 221, que a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão devem atender aos seguintes princípios: (i) preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; (ii) promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; (iii) regionalização da produção cultural, artística e jornalística; e (iv) respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

 

O artigo 221 da Constituição brasileira não traz apenas uma exortação moral, um simples apelo às emissoras de radiodifusão. Trata-se de verdadeiro direito da população a uma programação televisiva de qualidade, consagrado pelo texto jurídico mais importante do País.

 

Entretanto, em que pese a obrigatoriedade do artigo 221 da Constituição, não é difícil constatar quanto tal dispositivo constitucional é violado deliberadamente pela conduta da quase totalidade das emissoras brasileiras de televisão.

 

Ademais, é virtualmente inútil estabelecer princípios e regras para os programas televisivos se não existir algum mecanismo para fiscalizar e assegurar seu cumprimento.

 

Para assegurar o tratamento da atividade de televisão como serviço público, voltado à satisfação do interesse da coletividade, e fiscalizar o cumprimento dos princípios estabelecidos no artigo 221 da Constituição, propõe-se a instituição de um órgão administrativo autônomo, do tipo das comissões regulatórias independentes existentes nos Estados Unidos, ou das autoridades administrativas independentes de origem francesa. Nessa autoridade administrativa independente conviria que o papel de fiscalizar e controlar a programação da televisão coubesse a um colegiado composto de representantes de organizações não governamentais representativas da sociedade civil.

 

A propósito, vale a pena mencionar a Recomendação n. R (2000) 23 do Conselho da Europa sobre a criação de autoridades independentes de regulação para o setor de radiodifusão. Essa recomendação insta os países a: (i) elaborar regras legais definindo a missão, os poderes e os deveres da autoridade de regulação; (ii) garantir a independência da autoridade vis-à-vis do Estado e de interesses econômicos, mediante a definição de regras para a designação de seus membros e suas modalidades de financiamento; (iii) conceder à autoridade competência para outorgar e renovar licenças para o exercício das atividades de radiodifusão, mediante um processo transparente e imparcial; e (iv) outorgar à autoridade a função de acompanhamento e fiscalização do cumprimento das normas legais que regem os serviços de radiodifusão e dos compromissos assumidos pelas emissoras de rádio e de televisão, assim como o poder de impor sanções pelo descumprimento dessas normas ou compromissos.

 

Os exemplos de países desenvolvidos com órgãos administrativos encarregados de, em maior ou menor grau, regular e fiscalizar a programação televisiva são muitos: Alemanha (Landesmedienanstalten – www.alm.de), Austrália (Australian Broadcasting Authority – www.aba. gov.au), Canadá (Canadian Radio-television and Telecommunications Commission – www.crtc.gc.ca), França (Conseil Supérieur de l’Audiovisuel – www.csa.fr), Itália (Autorità per le Garanzie nelle Comunicazioni – www.agcom.it), Reino Unido (Office of Communications – www.ofcom.org.uk), entre muitos outros.

 

Portanto, não há dúvida de que a recomendação européia merece ser avaliada seriamente pela sociedade brasileira.

 

A regulação da atividade de televisão aberta e a criação de uma autoridade independente para fiscalizar a programação televisiva não são medidas isentas de risco. Como bem observado pelo jurista Miguel Seabra Fagundes, “as repercussões dessa regulação sobre as denominadas liberdades públicas, bem como a sua importância no que concerne à própria vitalidade do sistema democrático de governo, fazem-na da maior significação sob o ponto de vista jurídico. O tratamento que lhe dê a lei pode ser vital ou fulminante para o florescimento das instituições políticas brasileiras”.

 

André de Godoy Fernandes é advogado e mestre em ciências políticas pela Universidade Panthéon-Assas (Paris II) e em direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo