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Confraria do Choro
O gênero que toca a alma brasileira

Sem lágrimas
por Janaina Rocha

A roda de choro é antes de tudo um encontro de amigos. Nessa verdadeira confraria, quintessência da música brasileira, os compadres seguem tocando, apesar da mídia arredia

O sr. Benedito Bueno de Almeida, hoje falecido, não esperava cair numa armadilha do destino. Deu ao filho, o pequeno Izaías, um bandolim. A sua intenção era que o menino, com 10 anos de idade, aprendesse a sua afinação, a mesma do violino. Mas o jovem Izaías se descobriu um chorão. E, ao contrário do que o pai planejava, nunca pegou em outro instrumento. Há 50 anos, ele toca choro. É um dos músicos do gênero (ou linguagem musical, segundo a definição de choro do historiador e estudioso da música popular brasileira José Ramos Tinhorão) mais importante da cidade de São Paulo e do Brasil. A sua história se cruza com a história do choro na capital.
Nesse momento, Izaías é um dos símbolos da retomada do Clube do Choro, originalmente fundado em 1977, dentro do Sindicato dos Jornalistas. Com 63 anos, ele é o presidente da agremiação que, inicialmente, se estruturou com o apoio do Governo do Estado. A contribuição do bandolinista não se restringe à vasta vivência nas rodas de choro. O acervo pessoal dele, com cerca de cinco mil partituras, vai para o arquivo do clube e poderá ser utilizado pelo público. A sede provisória localiza-se na rua General Osório, a Rua do Choro, ativa desde dezembro.
Atualmente, as cinco mil partituras ficam numa sala do seu apartamento, no bairro da Casa Verde, onde nasceu. Há 10 anos vem ordenando o valioso material, “pois quase não há partituras de choro disponível”. Ele já tem dez álbuns, cada um com cerca de 150 músicas escritas. Uma parte desse material foi herdada do pai, que era clarinetista, e do seu ídolo, Jacob do Bandolim (1918/1969). “Jacob foi a minha grande referência. Sou fanático por ele, pela ternura da sua música. Ele tinha um temperamento horrível. Era uma figura com duas personalidades marcantes. Quando não estava com o bandolim na mão, era uma beleza para conversar, mas quando pegava o instrumento, ele se transformava, deixava de ter amigos. Era um homem muito sentimental”, conta ele, que foi descoberto por Jacob e conviveu com o músico e outros importantes chorões, como Garoto e Pixinguinha.
Antes de Jacob, o bandolinista mais conhecido era o pernambucano Luperce Miranda, “um dos reis da velocidade no bandolim”. Vê-lo, para um aprendiz, era desistir de tocar bandolim. Mas em um dia de 1947 a música de Jacob do Bandolim tornou-se conhecida e a eloqüência deu lugar à composição terna, agradável. “Não tem melhor nem pior. O que tem é o choro de verdade, com sua bela divisão. Jacob mostrou isso. Choro não é para sair tocando com malabarismo. Isso é uma coisa mecânica. Música não é assim, é coração”, diz ele.
Entretanto, foi com o sr. Benedito que Izaías aprendeu música. “A minha família era toda ligada à música. Quando eu nasci, a minha mãe, que cantava muito bem, conta que houve uma grande roda de choro em casa. Meu pai foi um ótimo professor de teoria, solfejo e harmonia. Só que ele abominava a vida de chorão, tanto que estudei para ter outra profissão: a de contador, que eu detesto. Ele me incentivava a ser músico de alguma orquestra sinfônica e não de choro, porque era muito marginalizado”, diz ele. “Mas não tive como escapar. Depois que se começa a entrar nas rodas de choro, quando se percebe, você já está completamente envolvido.”
Já tocar bandolim foi um aprendizado solitário, fato que ressalta uma característica do chorão: o autodidatismo. “Quase todo tocador de choro é autodidata. É uma linguagem musical que se desenvolve de forma amadora, em cada canto do Brasil, numa roda qualquer, sem um ponto certo”, analisa José Ramos Tinhorão. “Choro é como um rio subterrâneo, que vem à tona em alguns momentos, mas não se esgota. Não se aprende choro ouvindo rádio. E ele não morre porque não depende dos meios de comunicação.”
Segundo Tinhorão, outra marca do tocador de choro é a camaradagem. “Os chorões formam uma espécie de maçonaria. Eles se reconhecem em qualquer lugar, possuem o mesmo código, falam a mesma língua. É como uma irmandade”, constata.

Uma confraria
A experiência de se integrar à “irmandade” existiu de forma intensa na vida de Izaías. A casa de D’auria, na avenida Rudge, era o ponto de encontro. Em vez de usar a garagem para pôr o carro, o falecido D’auria transformou o lugar num pequeno estúdio caseiro, que durante muitos anos funcionou como sede dos chorões em São Paulo, atraindo pessoas de outros estados.
Izaías tinha 15 anos quando conheceu D’auria, na ocasião com mais de 40 anos. “Acho que o D’auria perpetuou o choro em São Paulo. O Jacob foi na sua casa e descobriu que a nossa música era de boa qualidade e passou a divulgar o nosso choro para o Rio”, afirma o bandolinista. “Era muito interessante porque o D’auria gravava esses encontros e deixou raridades”, conta Tinhorão, que na década de 1970 foi freqüentador assíduo. Além do paulista D’auria, Jaime Soares, Oswaldo Bitelli, Valter Veloso, Valdomiro Maçola, Valdir Guidi e Renato Petra tocavam no lugar - eram, como informa Izaías, integrantes do conjunto Atlântico, que acompanhava cantores e calouros nos programas de rádios. Izaías, apesar de muito mais jovem, entrou no grupo. “Todos eram muito bons músicos, mas não existia profissionalismo no choro. Era um grupo de amadores”, conta.
Tinhorão, por exemplo, acredita que depois da década de 1930 o choro não foi mais encarado como uma música de embalagem profissional - e isso, na verdade, não o denigre. “Até a década de 1930, a música brasileira não sofria tão brutalmente com a ação avassaladora da indústria cultural e ela era ouvida nas rádios, inclusive o choro”, afirma o estudioso. “Os chorões, individualmente bons músicos profissionais, passaram a acompanhar cantores. E o choro ficou mais restrito ao ambiente amador: é a espontaneidade das rodas de choro.”
No entanto, além de ser um ponto de fragilidade, há controvérsias sobre o profissionalismo do choro. Para o produtor Helton Altman, de 40 anos, o choro em São Paulo ganhou mais profissionalismo a partir dos anos de 1970, com a criação do Clube do Choro, e posteriormente com a abertura da Rua do Choro, nos anos de 80, na rua João Moura. Altman foi o presidente mais atuante na primeira criação dessa associação. “Esses espaços ajudaram a mostrar para o grande público, principalmente à classe média consumidora, o quanto o choro é vivo e rico”, diz ele.

Choro não tem idade
Izaías está aposentado há cinco anos. “Agora eu estou livre para a música, fazendo choro, que é o que gosto. Suportei a contabilidade porque precisava, tenho família e nunca quis me prostituir como músico, tocando, por exemplo, em pagode, ou usando a indefectível guitarrinha elétrica, utilizada em trio elétrico. Não abandono o bandolim”, diz ele. Hoje, além de chorão, é copista no arquivo do Teatro Municipal. “Trabalho meio período com música, uma delícia. Depois, à tarde, o meu arquivo e os meus cinco bandolins. No sábado, vou às rodas de choro na loja Contemporânea.”
Assim como Jacob serviu de inspiração para o menino Izaías no começo de carreira, atualmente, o “mestre” Izaías, assim como Garoto, Radamés Gnattali, Severino Araújo, Jacob do Bandolim, Pixinguinha e Benedito Lacerda são referências fundamentais para os chorões da nova geração. A paixão por essa linguagem musical transcende as idades. O que não impede uma renovação de conceitos, respeitosa com a estrutura do choro, mas já incorporando influências mais explícitas do jazz, do folclore brasileiro e estrangeiro, da música clássica e outras.
Essas novas referências são muito particulares e podem mostrar-se sutis ou arrebatadoras. O violonista gaúcho Yamandú Costa, de 21 anos, é um novo chorão. “Não sou só um chorão, porque também toco outros tipos de músicas. A música da fronteira, principalmente a do folclore gaúcho e argentino, foi uma importante influência pra mim”, conta ele. “Mas acredito que o choro é mais do que música, é uma forma de vida, quase uma religião.” Esses motivos, sem dúvida, fazem dele um chorão. “Apesar de eu não ter me criado numa roda de choro, sem dúvida, esse gênero é a principal escola do músico brasileiro. Comecei na música aos 4 anos e aos 10 ouvia choro por meio do meu pai. É uma música que acontece no ambiente familiar, por isso tão marcante.” E informa: “Sinto que há uma nova geração do choro, que carrega muita ética em relação a tradição, mas mostra novas influências. Vejo isso acontecendo no Rio.” Yamandú mora em São Paulo há cerca de três anos. A primeira vez que se apresentou “seriamente” na cidade foi no festival Chorando Alto, em 1998. Ele a cada dia destaca-se mais no cenário da música popular brasileira e deve, no mínimo nesta década, ser um dos grandes nomes do violão.

Janaina Rocha é jornalista


O reduto dos chorões
Onde é possível ouvir a música dos compadres em São Paulo


Por volta das 10h30, aos sábados, uma roda de choro se inicia espontaneamente na loja Contemporânea. Hoje, como informa Izaías, o lugar é o principal ponto de encontro dos chorões da cidade. Faz parte dessa turma de freqüentadores o seu grupo, formado pelo irmão Israel (violão de sete cordas), Odair Felício de Souza (violão de seis cordas), Arnaldo Galdino da Silva (cavaquinho), Gustavo Simão “Guta” (percussão) e Clodoaldo Coelho da Silva “Clodô” (pandeiro). Com esse grupo, ele lançou em 1999 o CD Izaías Entre Amigos - Quem Não Chora Não Ama, pela gravadora independente CPC-Umes.
A tradição do encontro na Contemporânea começou com Antônio D’auria, que tinha na mesma região uma pequena loja de equipamentos cinematográficos. Jacob do Bandolim, segundo Izaías, só vinha a São Paulo de ônibus ou de trem e, por conta disso, descia na antiga rodoviária, bem próxima da região. Ao se encontrar com D’auria, pedia ao parceiro que o levasse para comprar cordas e palhetas. D’auria o levava para a Contemporânea, na ocasião, uma pequena loja.
Outro ponto de concentração de chorões, anterior à Contemporânea, é a Casa Del Vecchio, estabelecida na rua Aurora, desde 1902.
O sucesso das rodas de choro da Contemporânea chamou a atenção do Governo do Estado, que tomou a iniciativa de reativar a proposta da Rua do Choro (criada na rua João Moura, em 1983 e desativada desde 1989). “A Rua do Choro foi um importante evento musical da cidade, mas foi principalmente um projeto social, pois ensinava música de graça para qualquer pessoa que tivesse interesse, que buscasse informação, sem distinção de classe social”, afirma Helton Altman, idealizador da Rua do Choro. Hoje, acontece o mesmo na rua General Osório. A população do Centro integra-se aos visitantes, sejam eles idosos ou jovens universitários.
Com o fim da Rua do Choro, instrumentistas continuaram no seu circuito inventivo e amador das rodas anônimas. Espetáculos e programas de TV foram realizados, entretanto, o evento de maior destaque na década de 1990 foi o Chorando Alto, também idealizado e produzido por Altman. O festival que Altman pretende retomar neste ano, realizou-se no Sesc Pompéia de 1996 a 1998.
Além da Rua do Choro, a labiríntica São Paulo reserva outros espaços para os chorões e seus admiradores, como as tardes de domingo na praça Dom Orione, bairro do Bixiga, e as tardes de sábado (lideradas pelo chorão Capixaba, de 71 anos) na praça Benedito Calixto, em Pinheiros. Entretanto, como observa Tinhorão, em cada canto do Brasil há uma roda de choro. O mesmo vale para São Paulo.