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Sobre a migração das sardinhas ou por que este título simplesmente prende a gente

Por Caroline Queiróz

Movimento. Esta foi a palavra escolhida pela diretora Jezebel de Carli para definir a peça “Ramal 340: sobre a migração das sardinhas ou porque as pessoas simplesmente vão embora”, que passou pelo Sesc Sorocaba durante o Festival Palco Giratório. Eram mais de 60 paletes dispostos sobre o palco italiano no teatro da unidade, que, entre si, formavam cenários diferentes. Nestes ambientes, se passaram histórias de seis personagens.  

O espetáculo foi desenvolvido pelo Coletivo Errática, que surgiu no Rio Grande do Sul, e teve sua grande estreia em Montenegro (RS), em 2015. Desde então, pelo Palco Giratório percorreu cidades como Cuiabá, Florianópolis, Rio de Janeiro, Campina Grande e Belo Horizonte, até chegar a Sorocaba e deixar o público com diversas reações em seus rostos.

Os meios e processos do Coletivo Errática
O Coletivo Errática se define como um grupo que trabalha a partir de processos colaborativos. De acordo com o dramaturgo Francisco Gick, a ideia de todos os espetáculos é criada em conjunto entre os membros do coletivo e não foi diferente com Ramal 340. “As nossas criações são todas deste jeito. A ideia de um enredo não vem antes, ela vai sendo descoberta durante o processo. Não é uma proposta minha como dramaturgo, é algo que vamos encontrando a partir de certos balizadores e interesses muito amplos que temos”, explica.

Com fortes influências do teatro contemporâneo, de Carli explica que as criações do coletivo surgem a partir de improvisações dos atores, que são gravadas pelo grupo e posteriormente ganham forma de texto. “Fazemos processos colaborativos, procedimentos de improvisação e criação de sequência de ações físicas”, conta a diretora.



Outro aspecto muito interessante do modus operandis do Errática é a questão do alinhamento entre corpo e voz. Durante a peça, quem assiste pode até se perder um pouco – por conta da não linearidade dos elementos tempo e espaço – no entanto, este é justamente o maior sentido da produção: não precisa necessariamente fazer sentido.

A história e os personagens marcantes
Plataforma de uma estação de trem, pessoas esperam, passam, vão, voltam, encontram-se. Ninguém fica muito tempo, nada se fixa, as coisas simplesmente passam umas pelas outras e acontecem pequenos choques, faíscas...”. Tudo começa com esse texto lido pela atriz Guega Peixoto, que nesta peça interpreta a personagem Penélope (e um soldado). As palavras são fortes e dão o tom do espetáculo ali mesmo.

O microfone usado pela atriz, programado para ecoar, causa uma sensação de quase hipnose quando cada palavra é dita. Logo depois, uma série de ações corporais são desenvolvidas pelos atores em cena, construindo todo o enredo da história numa mistura de texto, corpo e performance. O espetáculo narra a história de seis personagens: Penélope, Ulisses, Sam, Mulher Insone, Sirajjudhin, Raphaela, além de um núcleo de guerra com soldados e o Fotógrafo de Guerra. Cada qual com sua subjetividade e problemáticas particulares.

Penélope e Ulisses (como na épica história de Homero) são um casal, ele vai embora e a abandona. Mulher Insone não dorme e vive atormentada por devaneios de uma espera incessante. Raphaela viaja o mundo atrás de um soldado, que, no fim, não a corresponde. Sam perde o pai e espera durante dias em uma estação de trem. Sirajjudhin tem a família destruída pela guerra e procura pela filha desaparecida numa peregrinação incansável. O Fotógrafo de Guerra vive na espera que algo aconteça no conflito em que ele está, o que salienta ainda mais a questão da espetacularização que existe ao redor das guerras. Este, inclusive, é um aspecto salientado por Jezebel de Carli. “São 20 guerras no mundo e a gente nem sabe de que lado está”, afirma.

Para a atriz Nina Picoli, que faz a Mulher Insone, o fato das histórias serem misturadas e não apresentarem um padrão linear de tempo e espaço representa o modo como a nossa vida é. “São muitos personagens, muitas histórias que começam e terminam, são muitos atravessamentos, é exatamente como é a vida. Muitas coisas acontecem com a gente ao mesmo tempo. Então acho que ele traz esse discurso de pensar em como temos nos colocado no mundo”.



A peça em si é impactante, emocionante e poética, cheia de lirismo e lacunas que, conforme a direção, surgem para serem preenchidas pelo próprio público. O mais legal de tudo: cada indivíduo que assiste ao espetáculo o constrói e interpreta seus atos de acordo com sua bagagem e percepção, pois o aglomerado de acontecimentos impacta cada ser de uma forma diferente. Ao sair do teatro, observei um grupo de meninas conversando entre si sobre o que haviam acabado de assistir. Na conversa, surgiram várias especulações e interpretações diferentes.

As sardinhas
O tom metafórico da produção vem desde seu título. Segundo Gick, o nome longo é uma característica de Jezebel, bem como a mistura de números na composição. Confesso que, bem antes de ver a sinopse do espetáculo, fiquei primeiramente empenhada em descobrir e tentar traçar um sentido entre as palavras. Procurando na internet, descobri que a migração das sardinhas é, nada mais, nada menos, do que a maior migração animal do mundo. Entra aqui o toque pessoal do coletivo. “É uma massa de toneladas de carne se movendo pelo oceano, mas tem um aspecto muito importante que é o fato delas sempre saberem para onde estão indo”, conta Francisco. 



O dramaturgo explica ainda que há um fator que nos diferencia desses peixes, muito além da condição física. Há uma explicação poética para essa comparação. “Elas (as sardinhas) têm certeza do caminho pelo qual estão indo, enquanto a gente não tem essa ‘benesse’ do mundo. A gente não sabe para onde está indo. Diferentemente das sardinhas, vamos tentando agir e seguir um caminho pensado que sabe qual é e está errando o tempo todo”, conclui.

Ramal 340
Quando o espetáculo estreou em Montenegro, no ano de 2015, era encenado nas ruínas de uma estação férrea. Com o tempo, o grupo precisou adaptar a peça para o palco italiano. A palavra “Ramal” vem, justamente, desta conexão. De acordo com o grupo, a ruína da antiga estação fazia parte do ramal Montenegro – Caxias do Sul, que, na época, era um ramal muito importante da via férrea do Rio Grande do Sul, mas que hoje em dia está desativado. Já o número 340 vem de uma explicação científica. “340 é a velocidade do som no espaço. A gente está conversando aqui e você fala, a onda sonora viaja até o meu ouvido a 340 metros por segundo e é a mesma coisa na volta. Então existe sempre um tempo e isso diz respeito diretamente à comunicação, como e quanto a gente se entende”, conta Francisco Gick.



Pólvora. Água. Fogo. Fumaça. Os elementos materiais utilizados pela cenografia em "Ramal 340" fizeram da produção uma mistura de parafernálias reais e subjetivas que, quando colocadas em sinergia, se transformaram numa peça lírica e emotiva. Que, com toda certeza, prendeu a gente.

Fotos: Lilian Ambar/Sesc

Caroline Queiroz é estagiária de comunicação do Sesc Sorocaba