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Os críticos Carlos Calado e Mauro Dias, curadores da Bienal Prata da Casa, falam sobre a produção musical brasileira condenada à marginalidade pela indústria cultural

Em menos de três anos, o projeto Prata da Casa, no Sesc Pompéia, transformou-se em parâmetro da diversidade da produção musical brasileira. Em janeiro e fevereiro, ocorre a primeira Bienal Prata da Casa, que reunirá os dezesseis melhores trabalhos apresentados. A seguir, depoimentos de seus dois curadores:

Carlos Calado
Penso que temos uma visão muito deformada da atual produção musical brasileira, principalmente porque as grandes gravadoras e a maioria das rádios e TVs vêm adotando uma espécie de monocultura. Ou seja, esses meios de comunicação incentivam apenas correntes musicais de consumo fácil e imediato. Todos sabem que na última década o mercado foi dominado pelo pagode, pelo sertanejo brega e pela axé music, que martelaram nossos ouvidos com tanta insistência. Nada contra esses gêneros, propriamente, mas deveria haver espaço e incentivo também para outras vertentes musicais. Não é à toa que, desse modo, fica a impressão de que a produção musical do país é monotemática, precária e pobre.
Ser curador do Prata da Casa só confirmou minha certeza sobre a alta qualidade da atual produção musical brasileira. O problema é que esses artistas, de modo geral, não conseguem atingir o grande público. Entre os inscritos no projeto já encontrei artistas com até 10 ou 15 anos de carreira. Eles ainda não tiveram uma chance, em virtude da perversidade do mercado, que esnoba artistas que se recusam a aderir a modismos, mesmo que tenham trabalhos muito interessantes e de alta qualidade musical. Felizmente, parte deles teve a chance de encontrar nesse projeto do Sesc Pompéia um modo de divulgar seu trabalho e atingir um público mais amplo.
Na verdade, a riqueza da música brasileira é imensa e o mais interessante para quem exerce a curadoria do projeto é a possibilidade de incentivar o máximo possível de vertentes e estilos. Pude constatar, por exemplo, que a música instrumental brasileira - que continua sendo uma das melhores que existem atualmente no mundo, comparável somente ao jazz norte-americano e à música afro-cubana - é uma das correntes que mais têm sofrido com a surdez e o preconceito musical da grande indústria. Algo semelhante já aconteceu também com o samba de raiz, o samba de verdade, que felizmente tem voltado a ser mais incentivado nos últimos anos. Até mesmo na área da música eletrônica, que já se tornou um modismo dominante no mercado atual, encontram-se artistas que se destacam entre a obviedade robótica que se ouve por aí. Naturalmente, também não podemos esquecer a MPB, o veio principal da canção brasileira, que continua sendo cultivada por novas e talentosas gerações de intérpretes e compositores que esperam uma chance para mostrar a que vieram. Essa é a função do projeto Prata da Casa: incentivar a renovação da música brasileira.

Mauro Dias
Já em seu terceiro ano de existência, o projeto Prata da Casa firmou-se, nacionalmente, como o mais importante palco dedicado aos novos artistas. Pioneiramente, considera novos não os necessariamente jovens, mas aqueles que estejam em busca de luz para sua arte. Impôs, regulamentarmente, que participariam do projeto cantores, compositores e instrumentistas que tivessem, no máximo, um disco gravado; embora tê-lo não fosse obrigatório. Ceumar, quando fez o Prata da Casa, não tinha disco; Vanessa da Mata está fazendo o seu somente agora; o Quinteto em Branco-e-Preto ainda não havia gravado; Kléber Albuquerque tinha o primeiro, fez o segundo; Fábio Tagliaferri, idem; Suzy Bastos tinha uma fita de demonstração com quatro músicas - para citar alguns nomes que são, hoje, conhecidos e reconhecidos.
O Prata da Casa nasceu no Sesc Pompéia porque é para lá que convergem as produções de artistas consagrados e daqueles que buscam a luz. Vamos ficar nesses, que são o alvo do projeto. Em qualquer lugar do país, um músico termina seu disco e precisa de um palco para lançá-lo, ou termina o projeto de seu disco e precisa de um palco onde possa torná-lo visível, ou imagina um show que possa virar disco e precisa de um palco para ampliar seu público - de qualquer parte do país, o artista manda seu disco, seu projeto de disco ou seu show para o Sesc Pompéia.
Ao longo dos anos de existência, o Sesc Pompéia fez-se centro de excelente música popular, tão generoso com artistas consagrados quanto, generosa e destemidamente, pródigo em abrir as portas para os novos. Mas os novos começaram a ser muitos (até por falta de outros palcos nobres que os abrigassem), era preciso criar um projeto que oferecesse infra-estrutura de luz e som, casa franqueada ao público - para tornar ainda mais atraente a visita - e estabelecer critérios para a seleção dos artistas.
Coube-me a honra - e couberam-me também as dificuldades - de ser o primeiro curador do Prata da Casa. No ano seguinte, sucedeu-me o crítico de música Carlos Calado. Creio, embora desautorizado, que posso falar por Carlos Calado quando falo por mim: nada do que fiz ao longo da vida profissional foi tão prazeroso, proveitoso e enriquecedor, profissional e pessoalmente.
Sempre defendi que não há crise na cultura popular, há crise na indústria cultural, e as duas coisas não podem ser confundidas. Colhi, ao longo da vida profissional, provas, aqui e ali, de que a suposição era correta e o Prata da Casa veio para confirmar isso. O que eu percebia, empiricamente, cristalizou-se. Deu-me forças para continuar defendendo, no ofício diário, um olhar mais e mais crítico sobre a indústria cultural, um olhar mais atento para a produção alternativa.