Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Encontros
A vida feita de punhos

por Éder Jofre

Estou com 65 anos. Vim de uma família pobre - meu pai, o querido Kid Jofre, veio da Argentina e casou-se com minha mãe, Angelina Zumbano Jofre. Sim, sou parente dos Zumbano, célebre família de boxeadores. Eu nasci na rua do Seminário, bem no centro da cidade de São Paulo. Lá também nasceram meus irmãos. Dali fomos para a cidade de Santos, depois ao Rio de Janeiro e, finalmente, para o bairro do Parque Peruche, novamente em São Paulo. Fiquei mais de vinte anos lá. Se eu pudesse voltar no tempo, gostaria de morar lá novamente. Na minha época, a condução era o bonde, que atravessava a ponte da Casa Verde e nos deixava na praça do Centenário. Para chegar em casa, levava mais vinte minutos a pé. Porém tudo isso era maravilhoso. Meu bairro tinha árvores frutíferas, várias chácaras com goiabeiras, pés de mexericas, laranjas, peras, gabirobas... Foi uma infância vivida nas águas da lagoa e na grama do campinho. Isso não tem preço e é justamente o que falta para as crianças de hoje. Não se tem mais com o que gastar a energia nos dias de hoje, guiados pela TV e pelo computador. Isso só estressa as crianças. Daí a importância do esporte. Ele pode significar felicidade para uma criança que tem tanta energia para gastar. Inclusive, quando fui vereador criei uma lei que previa cursos pré-profissionalizantes, a serem realizados logo após o horário das aulas, que seriam seguidos, ainda, de sessões de iniciação esportiva. Isso manteria as crianças e os jovens longe das ruas. Porém essa lei nunca foi colocada em prática por nenhuma das duas últimas gestões da prefeitura de São Paulo. Espero que a atual faça alguma coisa.

O início
No boxe, eu ingressei com 16 anos num campeonato no Sesi. Desde então, foram 25 anos dedicados ao esporte. Lutei mais de 150 vezes e nunca fui a nocaute. Não me queixo, embora as senhoras e senhoritas nunca tenham entendido tanta dedicação a um esporte tão violento. É violento mas a preparação física que se adquire e os benefícios que isso traz posteriormente compensam. Isso eu garanto. Além disso, a "violência" do boxe se dá apenas no ringue, enquanto entre alguns adeptos de outras modalidades de luta, como o jiu-jítsu e a luta livre, ela toma as ruas, o que acho a mais pura expressão da frustração. A maioria dessas pessoas é covarde. Muitas vezes, já se sabe quem será o vencedor de um confronto de luta livre antes mesmo do toque do primeiro round. Digo isso porque testemunhei "ensaios" de luta livre na academia do meu pai quando era criança. Onde já se viu um lutador treinar com seu oponente? Teria cabimento eu, disputando um título mundial, treinar com o boxeador que desafiei?
Já posso até ouvir aqueles que vão lembrar dos boatos de lutas negociadas no boxe. Pois bem. Aqui no Brasil, digo que nunca fiquei sabendo de nada nesse sentido. O que me chegou aos ouvidos, da mesma forma que chegou aos ouvidos de qualquer leigo no assunto, foram as arrumações promovidas nos embates internacionais, principalmente nos Estados Unidos. Afinal, queiramos ou não, lá, não somente o boxe como as demais modalidades esportivas movimentam muito mais dinheiro e são alvo de uma publicidade extremamente agressiva. Aliás, teve um pugilista americano, o Dom Jordon, que veio para cá porque estava ameaçado de morte nos Estados Unidos, justamente por ter sido pressionado a perder uma luta e ter se recusado. Nessa ocasião, ele lutou com um brasileiro que ficou todo arrebentado. Até me deu vontade de nunca mais lutar. Se bem que também já me esfolei nessa carreira. Tive o supercílio aberto umas três vezes e quebrei o nariz duas vezes. Quando vamos para um ringue, sabemos que vamos sentir dor. Até tentamos fingir que não sentimos, mas não conseguimos. Mesmo com toda a bandagem, o esparadrapo e as luvas, uma pancada dói muito, principalmente quando pega no nariz. Mas faz parte da escolha que eu fiz. Assim como também faz parte não ter dó do adversário, senão você não luta.

As vitórias
No início da minha carreira, lutei com um pugilista que tinha dito coisas bem desagradáveis sobre o meu pai. Fiquei sabendo que ele disse que iria acabar com a academia do meu pai ganhando de mim. Não tive dó do sujeito. A luta começou e me lembro que queria mesmo machucá-lo. No corpo a corpo ele me dizia baixinho que era para eu bater mais devagar porque eu era o melhor. E isso várias vezes... Eu já tinha machucado ele bastante. Não concordei com ele, mas comecei a pegar mais leve. Sem que eu esperasse, ele veio por baixo e deu uma cabeçada na minha boca. Eu senti uma dor insuportável... Não tive dúvida. Dei-lhe um soco que o jogou fora do ringue. Acho essas traições horríveis, do tipo daquela mordida que o Tyson deu na orelha do Holyfield; se bem que fiquei sabendo que o Holyfield não era tão vítima assim, que ele é um casca-de-ferida. Um cara nojento é um camarada que irrita mesmo. Disseram-me que ele tem o costume de ficar insultando o adversário para desperta-lhe a fúria. No caso do Tyson, o sujeito não agüentou.

Amor ao esporte
Essa é só uma das histórias curiosas do boxe. Um belo esporte. Mas se eu tivesse outra chance, seria pugilista novamente. Ninguém calcula a satisfação e a alegria que se sente ao ser campeão do mundo ou derrubar um adversário, o juiz levantar o seu braço e você ver todas aquelas pessoas aplaudindo. Minha vida foi dar e levar soco.