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Ficção inédita
O caso dos pneus carecas

Lourenço Diaféria

Pode perguntar a qualquer um, todo mundo sabe: o Doutor Leão é figura carimbadíssima. Tanto sabe a faxineira que varre de manhã as folhas secas que caem no pátio durante a noite, como o tira que saiu lá fora para tragar um cigarro sem filtro, apoiado no carro furtado fizera três dias, o qual fora achado e trazido com o painel dilacerado, sem o rádio, sem o toca-disco, sem os alto-falantes, mas recuperado na véspera pela turma do dia, isso é o que importa, o resto não deu sorte, fazer o quê? - o que interessa é que o veículo agora está ali à espera do dono. Vai constatar que na delegacia do Doutor Leão não tem moleza, é fogo, amigo, a turma agora pega no pé da bandidagem que restou. A onda de dizer que polícia só trabalha com a mão azeitada é sacanagem. Se quiser, pergunte para o cara de camiseta Hering, calça amarrada na cintura com barbante - é informante, gente boa, só marcou bobeira andando com o Bolão e uns elementos suspeitos, acabou detido para averiguações, mas está limpo, não tem ficha nem nada. Desempregado, ajudava senhoras do bairro a empurrar o carrinho de compras nas feiras de quarta e sábado. Útil, prestativo, agora ajuda nas batidas, na triagem, carrega o latão com as folhas secas que caem da árvore. Hoje é um serviçal da ordem.
O Doutor Leão é mais falado que serviço de alto-falante em loja de saldos. Todo mundo sabe muito bem quem é o Doutor Leão. Pode não saber toda a história dele, a vida inteira, como é que chegou ao fim da carreira prestigiado, com tablado e cadeira de espaldar trabalhado, placa na porta, admirado, respeitado, ungido. Pode não saber minúcias nem entender a razão por que, na festa de despedida, com discursos, palmas, lágrimas, autoridades, amigos, comerciantes da região, estagiários, parentes, aquele mundo de gente, todo o pessoal de livre e espontânea vontade, ninguém obrigado, ninguém forçado, por que havia o sujeito manco da perna direita, cicatriz de queimadura pegando metade do rosto, mal ajambrado, mas à vontade, feliz, alegre por estar no meio das camisas de seda, dos coletes, das gravatas, das calças com vinco e dos sapatos de bico largo. De longe o Doutor Leão viu o homem e acenou assim com a mão, avisando "Agüenta aí, Tuim. Daqui a pouco a gente se fala".
Das histórias que contavam do Doutor Leão a maioria era verdadeira, ou quase. Outras, as mais edificantes, eram inventadas, mas podiam ter sido reais. Várias eram mentiras bem sacadas e bem intencionadas. No meio de todas ficavam as lendas. Uma delas garantia que no início da carreira, quando viera parar mais ou menos jogado ao léu na delegacia distante, periférica, cercada de matagal, ratos e esgoto a céu aberto, o Doutor Leão era magro como um palito, sofria de asma, tinha o rosto jovem coberto por espinhas - gostava de dizer que havia tentado de tudo com a alopatia, nada de melhorar, curara-se com um médico homeopata também moço (é um das centenas de amigos do peito que agora estavam ali prestigiando a festa da sua aposentadoria) -; bem no início da carreira, logo depois da nomeação, ninguém podia supor que um Doutor Leão tivesse um nome tão inadequado para denominar uma figurinha que ia ter de enfrentar o crime no fim do mundo, com aquele físico de mosquito elétrico, sem panca de autoridade, além de tudo com uma vozinha fina que não impunha a menor atenção. Sem falar que no segundo dia de exercício o Doutor Leão tivera um princípio de crise de cálculo renal e chegara a vomitar de dor.
Mas, pulando essa parte desmerecedora, o Doutor Leão logo começou a superar seus inconvenientes físicos e passou a tornar evidentes seus altos propósitos morais de enquadrar os auxiliares dentro dos mais rígidos rigores do atendimento à população em geral. Na época, como era normal, a delegacia dispunha apenas de uma única máquina de escrever marca Underwood, capenga, desengraxada, que era utilizada para registrar os boletins de ocorrência, isso quando não acontecia de cair a haste de uma letra, que tanto podia ser a letra "a" como a letra "z", enfim, uma das cinco vogais ou uma das vinte consoantes do teclado senil. Quando dava de a máquina desfuncionar por esse ou qualquer outro defeito, o jeito era registrar as queixas e reclamações manualmente, com ou sem caligrafia. Havia alguns inquéritos mofando nas gavetas com cheiro de perenidade. O Doutor Leão começou a fuçar. Gostava de fuçar as coisas. É evidente que percebeu logo que na delegacia estavam faltando não apenas papel timbrado e equipamentos de uso sistemático, mas também coisas mais inusitadas, como um bom dicionário de português para facilitar a vida do escrivão. Um mês depois, o Doutor Leão havia trazido de casa, na qual restara pequena parte da biblioteca que seu pai, falecido, deixara como memória, a coleção completa do Antenor Nascentes. Os quinze volumes, grossos e pesados, foram alinhados numa estante que antes vivia empoeirada, o que melhorou de cara a respeitabilidade do ambiente policial. Pouca gente se dá conta, mas se existe uma coisa que meliante respeita é livro. Um livro, principalmente se for grosso, tem o efeito de uma pistola carregada. A coleção de dicionário do Antenor Nascentes impunha a maior compostura. Bem, isso foi no começo, mas não era lenda, não.
A outra providência do Doutor Leão foi carregar para a delegacia alguns discos de música clássica, providenciando instalação para que Bach, Beethoven e Wagner pudessem ser ouvidos, com as naturais distorções técnicas, é claro, nas dependências ocupadas pelos detidos nas batidas de rua. Ninguém atinou com aonde o Doutor Leão queria chegar com essas providências, que nada tinham a ver com a aplicação prática do Código Penal na rotina da delegacia. No entanto, passou a ser comum que o trabalho e as folgas fossem amenizados e enriquecidos artisticamente com uma boa música ambiente.
O Doutor Leão não parou nisso. Ao contrário. Aos poucos foi tomando pé na situação. Manifestou logo uma característica inusitada: era um leitor compulsivo. Não apenas de inquéritos, mesmo arquivados. Lia tudo. Adorava pesquisar fatos históricos do Brasil pouco divulgados. Após o almoço, o jantar, discorria com prazer sobre eles, revelando coisas que ele próprio só descobrira com a leitura de obras que agora ornavam sua sala de trabalho. Só para citar um exemplo, a propósito da detenção de um pé-de-chinelo estelionatário que vivia aporrinhando a vida de empórios de secos e molhados da região, passando dinheiro falso, o Doutor Leão tinha ensejo de oferecer com satisfação verdadeiras aulas de conhecimentos gerais sobre a moeda usada no país, desde a Caiana, de cobre, de 40 réis, usada durante o Império, como sobre o Patacão, cunhado no exterior. Natural que a delegacia passasse a viver um clima ameno de cultura e conhecimentos gerais.
Mas a vida de um policial não são apenas rosas. Havia de impor uma disciplina cordial, mas firme. Fumar em qualquer das dependências passou a ser visto como gesto inamistoso. Tudo bem, quer ter enfisema pulmonar? Problema seu. Mas vá fumar lá fora, no pátio. Em meses, tira com cigarro aceso não se atrevia a baforar dentro da delegacia, nem quando na cadeira do Doutor Leão apenas houvesse seu casaco vestindo o espaldar. O simples paletó vazio do delegado já era autoridade. Outra coisa: o pátio, os chapéus-de-sol do pátio.
Em especial no outono, quando o vento empurrava para o chão as folhas amareladas, formando um tapete, o Doutor Leão torcia o nariz. Folhas no chão davam impressão de desleixo. Foi quando Dona Geralda passou a varrer o pátio todas as manhãs, bem cedo. O pátio foi dividido em duas partes. Uma servia como jardim. A outra, no fundo, virou depósito de carros roubados ou desaparecidos. No começo, as queixas repetiam-se. Hoje era um Corsa, um Dauphine, um BelAir, até rabo-de-peixe constava das estatísticas. Amanhã nem fusca estava livre de ser aliviado. O Doutor Leão - que já começava a ficar calvo e não tinha, felizmente, mais espinhas no rosto - convocou as turmas e deu o recado, olho no olho, agora com voz firme de quem não era otário, sabia das coisas e ia pegar firme na produção das equipes.
- Vamos dar um fim nessas histórias cabeludas. Nem que tenha que usar cagüetes.
Foi quando passou a dar colaboração mais ou menos interessada um rapaz detido na companhia do Bolão, um sujeitinho metido a valente, e que agora é visto de camiseta Hering e calça larga amarrada na cintura com barbante. Foi ele quem trouxe a informação de que um tal Rosa do Zinco, que vendia sarapatel e outros artigos do Norte, após ser assaltado pela oitava vez seguida e ver, com os olhos mantidos abertos, à força, sua mulher e sua filha serem estupradas, abandonou tudo, o jabá, o estoque de pitu e amansa-corno, a carne de sol, o feijão-de-corda, enfiou um berro na cintura e saiu à caça. Matou seis, aos poucos, de tocaia. E mais três, cara a cara.
- Fugiu?
- Fugiu, Doutor Leão. Acoitou-se na Bahia.
- Então que fique lá, não me apareça nem a sombra.
Fazia sete anos, num Carnaval, foi muito boquejado um homicídio duplo em decorrência da disputa da máscara lilás que uma dona usava no antigo Risca-Faca. Hoje é bingo. Mas nenhuma lenda, nenhuma história, nenhuma mentira supera o desaparecimento do carrinho do Tuim, um apanhador de papelão e lata vazia de cerveja e refrigerante, que quase morreu queimado vivo por resistir ao roubo do veículo mambembe, com os dois pneus carecas, com o qual catava sucata nas casas.
- Seu Doutor, roubaram meu ganha-pão.
Doutor Leão ficou uma onça. Desligou a Nona Sinfonia, vestiu o paletó, chamou dois tiras e saiu bufando como um justiceiro. O fulano de camiseta Hering foi sentado no banco da frente da viatura. Tinha informações que circulavam nos subterrâneos da vida. Acharam o ladrãozinho folgado em duas horas. Deram um cacetezinho nele, tomaram de volta o carrinho de madeira com os dois pneus carecas e o entregaram para o Tuim.
Esse era o motivo do aceno do Doutor Leão para o fulano manco de rosto queimado no seu último dia na delegacia do bairro.

Lourenço Diaféria é escritor e autor de Papéis Íntimos de um Ex-Boy assumido (Ed. Olho D'Água)