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Entrevista

REVISTA E - Julho 2006

 

 

Bolívar Lamounier


O cientista político analisa o momento político-social do Brasil


Bolívar Lamounier fala do Brasil com precisão cirúrgica: vai direto aos pontos e ataca as falhas sem citar nomes, mas indicando quem errou, e onde, em cada passagem da história do país. "Nós voltamos para a democracia depois de uma interrupção de mais de 20 anos", diz. "Quando regressamos, pegamos uma economia absolutamente desorganizada, com dez anos seguidos de inflação crônica e quase no nível da hiperinflação. A população estava quase duplicada, urbanizada e com periferias gigantescas." Na comparação com alguns países asiáticos, que se tornaram exemplos mundiais de superação de crises, o cientista político é novamente incisivo, e afirma que dificilmente um país ocidental se habituaria à disciplina oriental na educação, fator-chave do crescimento econômico daquelas nações. "Vamos ter de ir por outro caminho, esse não é o nosso." Em entrevista exclusiva à Revista E, o autor de, entre outros livros, Da Independência a Lula (Editora Augurium, 2005) falou de pluralidade partidária e do que se pode esperar do "país do futuro".


Mais de 20 anos depois da ditadura e do retorno à democracia, podemos dizer que hoje a população brasileira se habituou ao regime democrático?
Eu acho que sim. Estamos lidando com problemas que em outras situações seriam bastante graves - e não estou falando só da questão da corrupção, não. Por exemplo, pense no MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], a sociedade vem admitindo suas ações - ela acha meio ilegais, mas assimila essas ações. Antes de 1964, havia um movimento que não chegava nem a um milésimo disso, que era o Movimento do Julião [movimento agrícola liderado por Francisco Julião Arruda de Paula, considerado um dos responsáveis pela primeira grande discussão sobre a reforma agrária no Brasil] e que causava uma resistência feroz. Foi realmente um dos problemas que acarretaram o golpe de 1964. Vamos pegar a metamorfose do PT, situação que aconteceu nos últimos três ou quatro anos. Quando tudo começou, lá atrás, o partido e o Lula eram respeitados, mas inicialmente inspiravam certo temor - e eles não ganhavam a eleição. O Lula concorreu três vezes sem conseguir ser eleito. Com o tempo, foi se incorporando. Acho que a sociedade mais absorveu o PT do que na verdade ele mudou. A sociedade é que foi trazendo o partido para dentro do sistema. Ou seja, penso que estamos nos habituando à democracia, sim, mas sem muita reflexão. Preocupa-me a pouca reflexão sobre a política e sobre os valores.


E quanto ao problema crônico de distribuição de renda no país?
Vamos começar pelo mais óbvio e que as pessoas costumam esquecer: nós tivemos um crescimento populacional espantoso. Em 1970, que foi ano de Copa do Mundo, éramos 90 milhões - "90 milhões em ação", o jingle dizia isso. Se tivéssemos ficado nos 100 milhões, a população já seria imensa, mas nossa renda seria o dobro. Só que já estamos com quase 200 milhões. Em segundo lugar, tivemos cerca de 20 anos de estagnação. Desde a metade do governo de João Figueiredo, por volta de 1982, tivemos a inflação subindo e o crescimento. Os conflitos se tornaram mais difíceis pelo prolongamento dessa situação, as ideologias foram ficando mais difíceis de conciliar, enquanto a população estava crescendo e a renda não. Ou seja, o problema foi se complicando. E, além de crescer, essa população se tornou urbana. Hoje temos 80% de população urbana, e pelo menos 40% dela está nas grandes cidades. Isso é muita coisa, comparando com outros países. Se o Brasil não tivesse instituições razoavelmente boas, e certa flexibilidade política, a situação estaria muito mais grave.


Esse conjunto de fatores acabou ajudando a criar uma imagem para o Brasil?
Acabou criando, na verdade, uma sensação de que o país não presta, de que está regredindo, de que não mudou desde Álvares Cabral, enfim, uma série de chavões que foram ganhando espaço sobre a realidade. No meu trabalho, gosto de olhar as coisas de modo mais amplo. Por exemplo, volta e meia chega alguém dizendo que a democracia só tem duas décadas. Isso não é verdade. A democracia não tem duas décadas porque você não cria a democracia da noite para o dia. A democracia brasileira começou a ser criada quando alguém resolveu abrir um parlamento. Por mais elitista que ele fosse, era um parlamento. Faz toda a diferença do mundo ter um parlamento - o nosso foi instituído em 1826. Ou seja, há uma continuidade. Mas o pessoal adora jogar pedra nas nossas práticas eleitorais, todo livro de história diz que desde o Império ficamos experimentando sistemas eleitorais copiados da Europa. Isso é de uma desinformação impressionante. Nessa época, na Europa nem sequer havia sistemas eleitorais consolidados. Ou seja, se estávamos experimentando aqui, eles também estavam por lá. No mundo inteiro isso se estabilizou por tentativa e erro, e nós fizemos isso ao mesmo tempo que eles. Depois de 100 anos procurando a fórmula, estabelecemos no Brasil um maquinário eleitoral que é espetacular. Do ponto de vista da técnica, do manejo e do resultado, administrativamente falando, dá de dez nos Estados Unidos e em qualquer outro país que você quiser. No mesmo dia, entre 8 horas da manhã e 6 da tarde, faz-se a eleição de todos os municípios, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, e chega-se ao resultado. Imagine quanta porcaria se tira da pauta quando se tem um sistema como esse. No sul dos Estados Unidos, até hoje há gente que briga para impedir os negros de votar. Veja bem, nenhum brasileiro tem memória de negação de direitos às pessoas por elas serem negras ou por serem mulheres. Nós criamos o voto feminino em 1933, quando a maior parte da Europa ainda não o tinha - nem França, nem Bélgica, nem Itália. Por pouco não o criamos na primeira constituinte - porque foi feita uma proposta em 1891 que acabou não sendo aprovada, mas chegou a ser discutida.


O que dá mais trabalho na construção de uma democracia?
É o que eu já disse outras vezes: criar na mente das pessoas, particularmente na cabeça das lideranças partidárias e dos militares, a consciência de que o objetivo da democracia é ter pluralidade competitiva, e não suprimir o adversário. Veja que o que interrompeu e criou crises na democracia, muitas vezes sangrentas, foi a tentativa de um partido de suprimir o outro, ou a intervenção dos militares. Derramou-se muito sangue na Argentina e no Chile. No Uruguai, houve bastante violência também. Nossa experiência foi ruim, mas não naquele mesmo grau. Os militares no Brasil intervieram por várias razões, entre elas porque, antes de eles assumirem o poder, a luta entre os partidos estava muito radicalizada, tinha-se de um lado a UDN [União Democrática Nacional], que era de direita, e uma esquerda que blefava muito, que dava a impressão de ter muito poder quando na realidade não tinha. O Leonel Brizola, por exemplo, blefava que tinha milhares de grupos armados, de 11 pessoas cada um, que ele chamava de "grupo dos 11". Não tinha coisa nenhuma, era tudo conversa fiada. Só que, quando você blefa, corre o risco de o lado contrário acreditar. O lado contrário pagou para ver e deu no que deu.


Por que a democracia brasileira ainda não levou a resultados mais substantivos, como boas políticas sociais ou redução da pobreza?
Em primeiro lugar, porque democracia não necessariamente resolve essas coisas. Democracia é um bom sistema político para preservar a liberdade e o convívio sem violência. Ela pode ou não levar a uma política acelerada de melhoria da sociedade, mas uma coisa não decorre da outra por definição. A outra razão por que a democracia não conseguiu enfrentar o problema social brasileiro é o descasamento do tempo. Porque nós voltamos para a democracia depois de uma interrupção de mais de 20 anos. Quando regressamos, pegamos uma economia absolutamente desorganizada, com dez anos seguidos de inflação crônica e quase no nível da hiperinflação - de 1982 a 1993. A população estava quase duplicada, urbanizada e com periferias gigantescas. Além disso, o crime estava em ascensão. Nem a democracia nem nenhum outro regime promove resultados urgentes para isso. Se não bastasse, a discussão política no Brasil é excessivamente sociológica, o pessoal cientiza demais as coisas e se esquece de aspectos mais comezinhos. Não existe a possibilidade de a sociedade chegar ao bem-estar e a uma integração maior em dez ou 20 anos.


O senhor acredita que exista, no Brasil, uma vocação dos atuais partidos de suplantar ou amortecer a pluralidade?
Não vejo isso. Eu acho que o PT chega a ser um problema, mas de outra natureza. O partido vem de uma extrema esquerda: há os trotskistas, os stalinistas, os padres, os estudantes, tem de tudo dentro do PT. Por um lado, isso foi bom porque trouxe certos grupos para dentro do processo democrático que talvez não entrassem nele. Por outro lado, foi ruim porque trouxe para o cenário eleitoral pessoas com idéias muito messiânicas. Como havia dito, a primeira fase do partido assustava bastante, até que eles realmente tomassem gosto pela disputa por via eleitoral. Agora, o problema que vejo é que o Brasil não tinha, lá atrás, um movimento forte ligado ao trabalhador e à classe operária. O PTB não foi um movimento tão forte e tão representativo das bases, como foi o peronismo, na Argentina, ou como haviam sido o Partido Comunista e o Partido Socialista, no Chile. Nesse aspecto, houve uma espécie de atraso no Brasil. Quando isso finalmente ocorreu com o PT, o que surgiu era representativo porque tinha contato e estava ligado às bases. Mas não havia muito pensamento, não havia uma ideologia bem estruturada, ele não possuía um programa econômico minimamente realista. Então, quando o partido chegou ao poder, não sabia o que fazer, todo mundo cantou essa bola - inclusive eu, várias vezes. E, como chegou ao poder sem saber o que fazer, o mercado se assustou. E é alto o preço que se paga por assustar o mercado. Para poder passar tranqüilidade ao mercado, foi preciso botar a taxa de juros lá no espaço, onde ela está até hoje. É um governo frustrado, que não vai realizar nem metade do que pretendeu. Isso foi um azar muito grande, ainda agravado pelo mensalão e tudo mais. Mas acho que, pelo caminho natural das coisas, esquecendo esses azares e acidentes, a tendência é o PT virar um partido de esquerda dentro da democracia, de caráter parlamentar - embora um ou outro grupo pequeno possa sair.


Como é sua avaliação do exemplo de crescimento dado pela Coréia?
Vamos começar pelos sistemas educacionais: estudantes americanos filhos de imigrantes asiáticos, quando tentam retornar à Ásia, não agüentam a disciplina, pedem para voltar. Uma vez participei de uma reunião em Hong Kong e conversei com várias dessas famílias. Eles disseram que os meninos chegam lá com 12 ou 13 anos e já estão acostumados com o ensino norte-americano, por isso não se adaptam às oito horas seguidas de ciências e matemática. Além disso, há a punição psicológica pelo fracasso, que na Ásia é assustadora. Tem até suicídio por causa disso. Isso ajuda um país a crescer, mas não acredito que o Ocidente queira pagar esse preço. Vamos ter de ir por outro caminho, esse não é o nosso. É claro que se pode melhorar um sistema educacional com certa rapidez, mas não pelo modelo asiático. Então, quando se fala em Coréia, você está falando de um país que era ditatorial - só se tornou razoavelmente democrático há uns 15 ou 20 anos - e que não tem o passado de experimentação que o Brasil teve. Além disso, há um nível de corrupção espantoso, o governo simplesmente deu dinheiro público a meia dúzia de empresas e falou: façam tudo que vocês quiserem para o país arranjar tecnologia e competir no mercado internacional. A história é a mesma, com variações, para o Japão e para Taiwan, é assim que a Ásia se desenvolve. As pessoas me falam da China atual, mas eu não gostaria de viver daquele modo, de jeito nenhum. Ótimo que eles estejam saindo do comunismo e arranjando uma maneira de se tornar desenvolvidos por esse caminho. Agora, por que eles produzem tão barato assim? Porque muitas funções exercidas lá seriam consideradas trabalho escravo aqui no Brasil. É um sistema muito opressivo, tem uma sociedade que vem sendo disciplinada há décadas pelo regime ou pela necessidade a que o excesso de população obriga. Você não pode ter mais de um filho, não pode ter cachorro ou gato.


Onde o senhor acha que a gente errou na educação?
Nós criamos uma elite de boa qualidade, com bons engenheiros e economistas, em um período muito curto, mas nos esquecemos do resto. Isso porque nós queríamos a industrialização o mais rápido possível, assim como o pessoal da União Soviética. Para isso, precisa-se de engenheiros, economistas e administradores, e isso nós fizemos. Porém, e o povo? A idéia era deixá-lo para depois, naquela hora não dava para pensar nisso. Mas ocorre que a população cresceu muito, veio para a cidade e o mundo mudou para outra tecnologia. Transformou-se o paradigma da fábrica de aço para o do computador. Resultado: um atraso em educação que é pavoroso. Há 30 ou 40 anos, não parecia tão ruim assim porque estava dentro de um paradigma mundial, mas hoje é assustador pensar nisso. A Irlanda é outro bom exemplo, mas é um país muito menor. Ela está em desenvolvimento acelerado, numa sociedade aberta, com excelentes índices educacionais e com potencial de turismo muito grande. A tendência é que ela se dê bem, assim como a Espanha. O Brasil tem aí desvantagens inegáveis: ao lado da péssima educação, tem a população e as cidades, ambas muito grandes, e o crime. Você acha que é possível ganhar dinheiro com turismo com essa criminalidade? Nunca.


Qual a relação que o senhor faz entre essa pobreza, as drogas e a criminalidade?
Acho que o tráfico é responsável por no mínimo metade da criminalidade no Brasil. Ao contrário do que a maioria pensa, o narcotráfico não é um problema do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Em qualquer cidade do Brasil, de qualquer tamanho, ele está presente. Essa é uma questão que o mundo todo não está querendo olhar de frente, não é só o Brasil. O narcotráfico é perverso em um grau espantoso, isso porque ele dá emprego a adolescentes que então se sentem muito mais machos e muito mais divertidos do que se fossem procurar emprego de contínuo ou em um escritório. Dá até uma renda superior à que essa pessoa teria se estivesse em outras circunstâncias. Além disso, o garoto de 12 anos está com a arma na cintura e com uma sensação de poder que o adolescente adora ter. E os caras ameaçam quem reclamar. Com isso, a comunidade perde grande parte da liberdade. Acho que o Brasil demorou demais para acordar para o problema do narcotráfico, e ainda não montou o sistema necessário para coibi-lo. Porque falar em combater a criminalidade é inútil, pois a maior parte dela é engendrada pela droga, a meu ver. A criminalidade que não é da droga é a tradicional, que não usa armas tão potentes. A "tradicional" não emprega rifle AR-15, mísseis e o que mais se pode encontrar nas favelas hoje em dia. Mas o narcotráfico é guerra mesmo, é algo em larga escala. Por mais que as cidades tivessem crescido, o Estado brasileiro era capaz de enfrentar essa violência tradicional, ela estava dentro dos parâmetros.


Na sua opinião qual é o papel da mídia, de maneira geral, no processo político brasileiro?
Acho que a mídia desempenha um bom papel de investigação, de denúncia, não censuro nada nesse sentido, acho bom. Sou a favor de que haja debate. Por exemplo, sou contrário a esse negócio de o Tribunal Eleitoral ficar tutelando e regulamentando demais a política. Acho que a sociedade só tem a ganhar com o debate, e o debate áspero, em que as pessoas sejam colocadas umas diante das outras para que haja uma esfera política. Um pouco de ética e de moral só virão do debate. Aliás, nesse aspecto penso que a mídia contribui. Creio que ela falha quando não tem assunto ou quando tem uma coisa meio folclórica de descer o pau no Congresso. Se ela quer desmoralizar o Congresso, não mede esforços. Posso dar um exemplo bem simples, não vou citar nomes, somente os fatos. Quando publicam uma pesquisa que trata do prestígio do presidente e do Congresso Nacional, o do Congresso está lá embaixo. Isso é um absurdo sem tamanho, o presidente da República é uma pessoa, o Congresso são 513. O nível de prestígio do Legislativo será sempre baixo, porque existe a força cruzada das opiniões. Ficar inflando esse tipo de dado, como se tivesse um significado, é um desserviço. Outra coisa: freqüentemente a televisão vai ao Congresso na segunda-feira e mostra que está vazio, que ninguém foi trabalhar. Todo mundo está cansado de saber isso. O político tem de fazer contatos, aí ele passa um dia ou outro no seu estado, sou a favor disso. As pessoas têm de cair na real de que isto aqui é o Brasil, as distâncias são grandes. O sujeito não convive com a família, não tem vida privada, não tem tempo para coisa alguma. É evidente que cada vez mais ele vai se acostumando ao baixo clero. Porque se trabalhar bem vão meter o pau, e se trabalhar mal também vão. São necessárias uma convicção e uma força moral enormes para enfrentar um negócio desses. Graças a Deus, alguns têm. O papel do político precisa ser bem compreendido, a atividade política tem algumas peculiaridades que as pessoas ainda não compreenderam no Brasil. Deve-se criticar com severidade esses que passaram a mão no dinheiro. Isso aí que está acontecendo é obviamente um escândalo. Eu cansei de dizer na imprensa que para perder o mandato bastaria ter ido ao banco e tirado em espécie um dinheiro de que não se sabe a procedência. Para mim já estaria configurada a corrupção, não precisaria mais conversar sobre o assunto. Essa noção de decoro precisa ser mais objetiva e menos jurídica.



 

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