Bolívar
Lamounier
O cientista político
analisa o momento político-social do Brasil
Bolívar Lamounier
fala do Brasil com precisão cirúrgica: vai direto aos pontos
e ataca as falhas sem citar nomes, mas indicando quem errou, e onde, em
cada passagem da história do país. "Nós voltamos
para a democracia depois de uma interrupção de mais de 20
anos", diz. "Quando regressamos, pegamos uma economia absolutamente
desorganizada, com dez anos seguidos de inflação crônica
e quase no nível da hiperinflação. A população
estava quase duplicada, urbanizada e com periferias gigantescas."
Na comparação com alguns países asiáticos,
que se tornaram exemplos mundiais de superação de crises,
o cientista político é novamente incisivo, e afirma que
dificilmente um país ocidental se habituaria à disciplina
oriental na educação, fator-chave do crescimento econômico
daquelas nações. "Vamos ter de ir por outro caminho,
esse não é o nosso." Em entrevista exclusiva à
Revista E, o autor de, entre outros livros, Da Independência a Lula
(Editora Augurium, 2005) falou de pluralidade partidária e do que
se pode esperar do "país do futuro".
Mais de 20 anos
depois da ditadura e do retorno à democracia, podemos dizer que
hoje a população brasileira se habituou ao regime democrático?
Eu acho que sim. Estamos lidando com problemas que em outras situações
seriam bastante graves - e não estou falando só da questão
da corrupção, não. Por exemplo, pense no MST [Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], a sociedade vem admitindo suas ações
- ela acha meio ilegais, mas assimila essas ações. Antes
de 1964, havia um movimento que não chegava nem a um milésimo
disso, que era o Movimento do Julião [movimento agrícola
liderado por Francisco Julião Arruda de Paula, considerado um dos
responsáveis pela primeira grande discussão sobre a reforma
agrária no Brasil] e que causava uma resistência feroz. Foi
realmente um dos problemas que acarretaram o golpe de 1964. Vamos pegar
a metamorfose do PT, situação que aconteceu nos últimos
três ou quatro anos. Quando tudo começou, lá atrás,
o partido e o Lula eram respeitados, mas inicialmente inspiravam certo
temor - e eles não ganhavam a eleição. O Lula concorreu
três vezes sem conseguir ser eleito. Com o tempo, foi se incorporando.
Acho que a sociedade mais absorveu o PT do que na verdade ele mudou. A
sociedade é que foi trazendo o partido para dentro do sistema.
Ou seja, penso que estamos nos habituando à democracia, sim, mas
sem muita reflexão. Preocupa-me a pouca reflexão sobre a
política e sobre os valores.
E quanto ao problema
crônico de distribuição de renda no país?
Vamos começar pelo mais óbvio e que as pessoas costumam
esquecer: nós tivemos um crescimento populacional espantoso. Em
1970, que foi ano de Copa do Mundo, éramos 90 milhões -
"90 milhões em ação", o jingle dizia isso.
Se tivéssemos ficado nos 100 milhões, a população
já seria imensa, mas nossa renda seria o dobro. Só que já
estamos com quase 200 milhões. Em segundo lugar, tivemos cerca
de 20 anos de estagnação. Desde a metade do governo de João
Figueiredo, por volta de 1982, tivemos a inflação subindo
e o crescimento. Os conflitos se tornaram mais difíceis pelo prolongamento
dessa situação, as ideologias foram ficando mais difíceis
de conciliar, enquanto a população estava crescendo e a
renda não. Ou seja, o problema foi se complicando. E, além
de crescer, essa população se tornou urbana. Hoje temos
80% de população urbana, e pelo menos 40% dela está
nas grandes cidades. Isso é muita coisa, comparando com outros
países. Se o Brasil não tivesse instituições
razoavelmente boas, e certa flexibilidade política, a situação
estaria muito mais grave.
Esse conjunto de
fatores acabou ajudando a criar uma imagem para o Brasil?
Acabou criando, na verdade, uma sensação de que o país
não presta, de que está regredindo, de que não mudou
desde Álvares Cabral, enfim, uma série de chavões
que foram ganhando espaço sobre a realidade. No meu trabalho, gosto
de olhar as coisas de modo mais amplo. Por exemplo, volta e meia chega
alguém dizendo que a democracia só tem duas décadas.
Isso não é verdade. A democracia não tem duas décadas
porque você não cria a democracia da noite para o dia. A
democracia brasileira começou a ser criada quando alguém
resolveu abrir um parlamento. Por mais elitista que ele fosse, era um
parlamento. Faz toda a diferença do mundo ter um parlamento - o
nosso foi instituído em 1826. Ou seja, há uma continuidade.
Mas o pessoal adora jogar pedra nas nossas práticas eleitorais,
todo livro de história diz que desde o Império ficamos experimentando
sistemas eleitorais copiados da Europa. Isso é de uma desinformação
impressionante. Nessa época, na Europa nem sequer havia sistemas
eleitorais consolidados. Ou seja, se estávamos experimentando aqui,
eles também estavam por lá. No mundo inteiro isso se estabilizou
por tentativa e erro, e nós fizemos isso ao mesmo tempo que eles.
Depois de 100 anos procurando a fórmula, estabelecemos no Brasil
um maquinário eleitoral que é espetacular. Do ponto de vista
da técnica, do manejo e do resultado, administrativamente falando,
dá de dez nos Estados Unidos e em qualquer outro país que
você quiser. No mesmo dia, entre 8 horas da manhã e 6 da
tarde, faz-se a eleição de todos os municípios, do
Amazonas ao Rio Grande do Sul, e chega-se ao resultado. Imagine quanta
porcaria se tira da pauta quando se tem um sistema como esse. No sul dos
Estados Unidos, até hoje há gente que briga para impedir
os negros de votar. Veja bem, nenhum brasileiro tem memória de
negação de direitos às pessoas por elas serem negras
ou por serem mulheres. Nós criamos o voto feminino em 1933, quando
a maior parte da Europa ainda não o tinha - nem França,
nem Bélgica, nem Itália. Por pouco não o criamos
na primeira constituinte - porque foi feita uma proposta em 1891 que acabou
não sendo aprovada, mas chegou a ser discutida.
O que dá
mais trabalho na construção de uma democracia?
É o que eu já disse outras vezes: criar na mente das pessoas,
particularmente na cabeça das lideranças partidárias
e dos militares, a consciência de que o objetivo da democracia é
ter pluralidade competitiva, e não suprimir o adversário.
Veja que o que interrompeu e criou crises na democracia, muitas vezes
sangrentas, foi a tentativa de um partido de suprimir o outro, ou a intervenção
dos militares. Derramou-se muito sangue na Argentina e no Chile. No Uruguai,
houve bastante violência também. Nossa experiência
foi ruim, mas não naquele mesmo grau. Os militares no Brasil intervieram
por várias razões, entre elas porque, antes de eles assumirem
o poder, a luta entre os partidos estava muito radicalizada, tinha-se
de um lado a UDN [União Democrática Nacional], que era de
direita, e uma esquerda que blefava muito, que dava a impressão
de ter muito poder quando na realidade não tinha. O Leonel Brizola,
por exemplo, blefava que tinha milhares de grupos armados, de 11 pessoas
cada um, que ele chamava de "grupo dos 11". Não tinha
coisa nenhuma, era tudo conversa fiada. Só que, quando você
blefa, corre o risco de o lado contrário acreditar. O lado contrário
pagou para ver e deu no que deu.
Por que a democracia
brasileira ainda não levou a resultados mais substantivos, como
boas políticas sociais ou redução da pobreza?
Em primeiro lugar, porque democracia não necessariamente resolve
essas coisas. Democracia é um bom sistema político para
preservar a liberdade e o convívio sem violência. Ela pode
ou não levar a uma política acelerada de melhoria da sociedade,
mas uma coisa não decorre da outra por definição.
A outra razão por que a democracia não conseguiu enfrentar
o problema social brasileiro é o descasamento do tempo. Porque
nós voltamos para a democracia depois de uma interrupção
de mais de 20 anos. Quando regressamos, pegamos uma economia absolutamente
desorganizada, com dez anos seguidos de inflação crônica
e quase no nível da hiperinflação - de 1982 a 1993.
A população estava quase duplicada, urbanizada e com periferias
gigantescas. Além disso, o crime estava em ascensão. Nem
a democracia nem nenhum outro regime promove resultados urgentes para
isso. Se não bastasse, a discussão política no Brasil
é excessivamente sociológica, o pessoal cientiza demais
as coisas e se esquece de aspectos mais comezinhos. Não existe
a possibilidade de a sociedade chegar ao bem-estar e a uma integração
maior em dez ou 20 anos.
O
senhor acredita que exista, no Brasil, uma vocação dos atuais
partidos de suplantar ou amortecer a pluralidade?
Não vejo isso. Eu acho que o PT chega a ser um problema, mas de
outra natureza. O partido vem de uma extrema esquerda: há os trotskistas,
os stalinistas, os padres, os estudantes, tem de tudo dentro do PT. Por
um lado, isso foi bom porque trouxe certos grupos para dentro do processo
democrático que talvez não entrassem nele. Por outro lado,
foi ruim porque trouxe para o cenário eleitoral pessoas com idéias
muito messiânicas. Como havia dito, a primeira fase do partido assustava
bastante, até que eles realmente tomassem gosto pela disputa por
via eleitoral. Agora, o problema que vejo é que o Brasil não
tinha, lá atrás, um movimento forte ligado ao trabalhador
e à classe operária. O PTB não foi um movimento tão
forte e tão representativo das bases, como foi o peronismo, na
Argentina, ou como haviam sido o Partido Comunista e o Partido Socialista,
no Chile. Nesse aspecto, houve uma espécie de atraso no Brasil.
Quando isso finalmente ocorreu com o PT, o que surgiu era representativo
porque tinha contato e estava ligado às bases. Mas não havia
muito pensamento, não havia uma ideologia bem estruturada, ele
não possuía um programa econômico minimamente realista.
Então, quando o partido chegou ao poder, não sabia o que
fazer, todo mundo cantou essa bola - inclusive eu, várias vezes.
E, como chegou ao poder sem saber o que fazer, o mercado se assustou.
E é alto o preço que se paga por assustar o mercado. Para
poder passar tranqüilidade ao mercado, foi preciso botar a taxa de
juros lá no espaço, onde ela está até hoje.
É um governo frustrado, que não vai realizar nem metade
do que pretendeu. Isso foi um azar muito grande, ainda agravado pelo mensalão
e tudo mais. Mas acho que, pelo caminho natural das coisas, esquecendo
esses azares e acidentes, a tendência é o PT virar um partido
de esquerda dentro da democracia, de caráter parlamentar - embora
um ou outro grupo pequeno possa sair.
Como é sua
avaliação do exemplo de crescimento dado pela Coréia?
Vamos começar pelos sistemas educacionais: estudantes americanos
filhos de imigrantes asiáticos, quando tentam retornar à
Ásia, não agüentam a disciplina, pedem para voltar.
Uma vez participei de uma reunião em Hong Kong e conversei com
várias dessas famílias. Eles disseram que os meninos chegam
lá com 12 ou 13 anos e já estão acostumados com o
ensino norte-americano, por isso não se adaptam às oito
horas seguidas de ciências e matemática. Além disso,
há a punição psicológica pelo fracasso, que
na Ásia é assustadora. Tem até suicídio por
causa disso. Isso ajuda um país a crescer, mas não acredito
que o Ocidente queira pagar esse preço. Vamos ter de ir por outro
caminho, esse não é o nosso. É claro que se pode
melhorar um sistema educacional com certa rapidez, mas não pelo
modelo asiático. Então, quando se fala em Coréia,
você está falando de um país que era ditatorial -
só se tornou razoavelmente democrático há uns 15
ou 20 anos - e que não tem o passado de experimentação
que o Brasil teve. Além disso, há um nível de corrupção
espantoso, o governo simplesmente deu dinheiro público a meia dúzia
de empresas e falou: façam tudo que vocês quiserem para o
país arranjar tecnologia e competir no mercado internacional. A
história é a mesma, com variações, para o
Japão e para Taiwan, é assim que a Ásia se desenvolve.
As pessoas me falam da China atual, mas eu não gostaria de viver
daquele modo, de jeito nenhum. Ótimo que eles estejam saindo do
comunismo e arranjando uma maneira de se tornar desenvolvidos por esse
caminho. Agora, por que eles produzem tão barato assim? Porque
muitas funções exercidas lá seriam consideradas trabalho
escravo aqui no Brasil. É um sistema muito opressivo, tem uma sociedade
que vem sendo disciplinada há décadas pelo regime ou pela
necessidade a que o excesso de população obriga. Você
não pode ter mais de um filho, não pode ter cachorro ou
gato.
Onde o senhor acha
que a gente errou na educação?
Nós criamos uma elite de boa qualidade, com bons engenheiros e
economistas, em um período muito curto, mas nos esquecemos do resto.
Isso porque nós queríamos a industrialização
o mais rápido possível, assim como o pessoal da União
Soviética. Para isso, precisa-se de engenheiros, economistas e
administradores, e isso nós fizemos. Porém, e o povo? A
idéia era deixá-lo para depois, naquela hora não
dava para pensar nisso. Mas ocorre que a população cresceu
muito, veio para a cidade e o mundo mudou para outra tecnologia. Transformou-se
o paradigma da fábrica de aço para o do computador. Resultado:
um atraso em educação que é pavoroso. Há 30
ou 40 anos, não parecia tão ruim assim porque estava dentro
de um paradigma mundial, mas hoje é assustador pensar nisso. A
Irlanda é outro bom exemplo, mas é um país muito
menor. Ela está em desenvolvimento acelerado, numa sociedade aberta,
com excelentes índices educacionais e com potencial de turismo
muito grande. A tendência é que ela se dê bem, assim
como a Espanha. O Brasil tem aí desvantagens inegáveis:
ao lado da péssima educação, tem a população
e as cidades, ambas muito grandes, e o crime. Você acha que é
possível ganhar dinheiro com turismo com essa criminalidade? Nunca.
Qual a relação
que o senhor faz entre essa pobreza, as drogas e a criminalidade?
Acho que o tráfico é responsável por no mínimo
metade da criminalidade no Brasil. Ao contrário do que a maioria
pensa, o narcotráfico não é um problema do Rio de
Janeiro ou de São Paulo. Em qualquer cidade do Brasil, de qualquer
tamanho, ele está presente. Essa é uma questão que
o mundo todo não está querendo olhar de frente, não
é só o Brasil. O narcotráfico é perverso em
um grau espantoso, isso porque ele dá emprego a adolescentes que
então se sentem muito mais machos e muito mais divertidos do que
se fossem procurar emprego de contínuo ou em um escritório.
Dá até uma renda superior à que essa pessoa teria
se estivesse em outras circunstâncias. Além disso, o garoto
de 12 anos está com a arma na cintura e com uma sensação
de poder que o adolescente adora ter. E os caras ameaçam quem reclamar.
Com isso, a comunidade perde grande parte da liberdade. Acho que o Brasil
demorou demais para acordar para o problema do narcotráfico, e
ainda não montou o sistema necessário para coibi-lo. Porque
falar em combater a criminalidade é inútil, pois a maior
parte dela é engendrada pela droga, a meu ver. A criminalidade
que não é da droga é a tradicional, que não
usa armas tão potentes. A "tradicional" não emprega
rifle AR-15, mísseis e o que mais se pode encontrar nas favelas
hoje em dia. Mas o narcotráfico é guerra mesmo, é
algo em larga escala. Por mais que as cidades tivessem crescido, o Estado
brasileiro era capaz de enfrentar essa violência tradicional, ela
estava dentro dos parâmetros.
Na sua opinião
qual é o papel da mídia, de maneira geral, no processo político
brasileiro?
Acho que a mídia desempenha um bom papel de investigação,
de denúncia, não censuro nada nesse sentido, acho bom. Sou
a favor de que haja debate. Por exemplo, sou contrário a esse negócio
de o Tribunal Eleitoral ficar tutelando e regulamentando demais a política.
Acho que a sociedade só tem a ganhar com o debate, e o debate áspero,
em que as pessoas sejam colocadas umas diante das outras para que haja
uma esfera política. Um pouco de ética e de moral só
virão do debate. Aliás, nesse aspecto penso que a mídia
contribui. Creio que ela falha quando não tem assunto ou quando
tem uma coisa meio folclórica de descer o pau no Congresso. Se
ela quer desmoralizar o Congresso, não mede esforços. Posso
dar um exemplo bem simples, não vou citar nomes, somente os fatos.
Quando publicam uma pesquisa que trata do prestígio do presidente
e do Congresso Nacional, o do Congresso está lá embaixo.
Isso é um absurdo sem tamanho, o presidente da República
é uma pessoa, o Congresso são 513. O nível de prestígio
do Legislativo será sempre baixo, porque existe a força
cruzada das opiniões. Ficar inflando esse tipo de dado, como se
tivesse um significado, é um desserviço. Outra coisa: freqüentemente
a televisão vai ao Congresso na segunda-feira e mostra que está
vazio, que ninguém foi trabalhar. Todo mundo está cansado
de saber isso. O político tem de fazer contatos, aí ele
passa um dia ou outro no seu estado, sou a favor disso. As pessoas têm
de cair na real de que isto aqui é o Brasil, as distâncias
são grandes. O sujeito não convive com a família,
não tem vida privada, não tem tempo para coisa alguma. É
evidente que cada vez mais ele vai se acostumando ao baixo clero. Porque
se trabalhar bem vão meter o pau, e se trabalhar mal também
vão. São necessárias uma convicção
e uma força moral enormes para enfrentar um negócio desses.
Graças a Deus, alguns têm. O papel do político precisa
ser bem compreendido, a atividade política tem algumas peculiaridades
que as pessoas ainda não compreenderam no Brasil. Deve-se criticar
com severidade esses que passaram a mão no dinheiro. Isso aí
que está acontecendo é obviamente um escândalo. Eu
cansei de dizer na imprensa que para perder o mandato bastaria ter ido
ao banco e tirado em espécie um dinheiro de que não se sabe
a procedência. Para mim já estaria configurada a corrupção,
não precisaria mais conversar sobre o assunto. Essa noção
de decoro precisa ser mais objetiva e menos jurídica.
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