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Invasão de privacidade

REVISTA E - Julho 2006

 

 




O hábito de expor e trocar informações pessoais via internet põe em xeque o limite entre a vida pública e a privada na era da realidade virtual


O perfil que aparece na foto na abertura é falso, mas expressa com proximidade muitas das descrições encontradas em sites de relacionamento virtual, como o Orkut - o mais famoso deles. A criação veio dos nos Estados Unidos, mas a ocupação é verde-amarela - "cerca de 70% dos quase 8 milhões de usuários declaram ser brasileiros", informou o caderno de informática Link, do jornal O Estado de S. Paulo, em reportagem publicada no ano passado. E são pessoas de todas as idades, tribos, bandas e apitos. Todo mundo conhece alguém que "está no Orkut", como se diz. Com isso, o site, além de se tornar mais um dos meios de contato que a internet oferece - aspecto que tem sido citado como um dos mais positivos -, acabou se transformando num verdadeiro banco de dados. Exemplo: garota flerta com garoto numa festa, eles não se conhecem. Logo, um não sabe nada sobre o outro, certo? Não, necessariamente. Basta descobrir o nome do "investigado" e voar para a internet. Possivelmente lá estarão informações sobre os filmes que ele mais gosta, os livros que já leu ou quer ler e a comida preferida. Isso para ficar nos dados pessoais menos comprometedores, pois as pessoas têm revelado muito mais do que isso. Não somente nas comunidades da rede, mas também em blogs (os famosos diários virtuais), flogs (abreviação de fotologs, versão com fotos dos tais diários) e salas de bate-papo, a parcela de usuários que "abre o jogo" tem crescido cada vez mais(veja boxe: a serviço da criatividade). Exibicionismo? Ingenuidade? Conseqüência compreensível para uma sociedade que elegeu a fama como um dos principais objetivos na vida? Talvez um pouco de cada coisa. O fato é que o comportamento desses internautas mais "desinibidos" tem sido foco de análise de estudiosos de diferentes áreas do conhecimento, da psicologia à sociologia, passando pelo direito e, claro, pelo marketing. "Sites como esse Orkut são um banco de dados mais amplo que o do FBI", compara, com bom humor, a psicóloga Maluh Duprat, membro da equipe do Núcleo de Pesquisas em Psicologia e Informática (NPPI), da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). "Só que é pouquíssimo confidencial." E é esse o ponto. Se todo mundo anda se expondo na rede mundial de computadores, como ficam a privacidade e a intimidade no século 21?




Revolução radical
O psicanalista Sérgio Telles começa a responder a questão ressaltando que não se deve ignorar a "radical revolução" trazida pela internet. "Ela proporciona facilidade e rapidez na comunicação e divulgação de informações antes impensáveis", afirma. "Suas salas de bate-papo e os mais recentes programas, como o Orkut, inauguraram uma forma de relacionamento social, pelo qual se torna possível encontrar parceiros para qualquer atividade ou interesse, por mais bizarros e secretos que sejam." Ainda segundo o psicanalista, tendo em vista esse potencial da rede, é compreensível que principalmente os mais jovens façam um uso "extensivo e intensivo" de seus instrumentos. "Trata-se de uma franca e lúdica aceitação dessa nova modalidade de relacionamento social, que parece tão estranha para as gerações mais velhas", diz. Para ele, a prática não está necessariamente ligado à ostentação. "Se pensarmos na forma horizontal e democrática oferecida pelo Orkut, no qual todos podem se exibir, e se exibem, isso tira a conotação própria do exibicionismo, que é uma prática isolada dentro de uma comunidade a ela avessa." Para ele, observar esse fenômeno traz a possibilidade de avaliar como a internet está mudando determinados padrões de comportamento.



Para Maluh Duprat, da PUC, dá, sim, para falar em um grande desejo de ser visto, só que diluído em uma vontade maior ainda de ver. "O que gosta de exibir, em geral, gosta de observar", afirma. "São dois lados de uma mesma moeda, uma característica que é própria do ser humano. O que ocorre é que às vezes um lado prevalece sobre o outro. Por isso esses sites e salas de papo têm uma busca absurda, principalmente os de conteúdo erótico."




Exercício de vaidade
Já no campo dos blogs, a jornalista Denise Schittine, autora do livro Blog: Comunicação e Escrita Íntima na Internet (Editora Civilização Brasileira, 2004), acrescenta que manter um espaço pessoal num meio que tem como potenciais leitores habitantes do mundo inteiro, ou ao menos a parte dele que fala a mesma língua, revela uma necessidade de mostrar-se e com uma clara intenção de ser aceito. "As pessoas escrevem porque procuram no outro um espelho", afirma. Escrevem porque querem descobrir alguém que pense igual, ou sinta igual ou tenha opinião semelhante." A jornalista conta que entre os blogs que pesquisou para seu o livro, resultado de sua dissertação de mestrado em comunicação, percebeu que os "blogueiros" - como são chamados os autores desses diários virtuais - são vaidosos e tendem a ter mais cuidado ao escrever. "É muita gente lendo e também muita gente criticando. Os riscos de levar um pito por um comentário ou por um simples erro de português são maiores", afirma. "Então, o blogueiro tem mais cuidado, sim, se não tiver coloca a própria pele em risco, perde leitores, perde admiradores, perde tudo o que alimenta uma vida virtual."



Esse cuidado descrito por Denise pode se assemelhar às precauções que um ídolo tem com sua imagem para não desapontar os fãs. "Vivemos numa civilização dominada pela mídia eletrônica, na qual a imagem reina inconteste", observa Sérgio Telles. "Ser famoso e aparecer na televisão é seguramente um desejo secreto acalentado pela maioria. O monitor do computador, dada a semelhança com o da televisão, e a internet com seu poder de difusão, que pode ser também tão amplo quanto o da TV, seguramente facilitam a realização desse desejo na fantasia." E não é preciso fazer parte da vida íntima das celebridades para saber quão minado é o terreno no qual elas pisam. Um passo em falso é acompanhado, e criticado, por muita gente mundo afora. "Em geral, as pessoas não têm consciência das conseqüências de expor a vida, como algumas fazem", afirma Maluh Duprat. "De repente, o feitiço vira contra o feiticeiro, mesmo. É muito importante que cada um de nós mantenha protegido um lado mais privado. É como se fosse uma célula-tronco de nós mesmos. Aquilo que é íntimo, que só nós sabemos. Ao compartilhar tudo, principalmente com estranhos, como na internet, tendemos a perder um pouco de vista nossa individualidade." Sérgio Telles completa: "Apesar do uso intensivo que fazem desses instrumentos da internet, acho que as pessoas não têm uma noção clara do grau de exposição a que se submetem e das conseqüências, que podem ser graves."



De olho na informação
E as conseqüências podem se manifestar em muitas áreas. No livro Direito à Intimidade na Internet (Editora Juruá, 2006), o advogado Marcelo Cardoso Pereira, mestre em informática e direito pela Universidade de Madri, escreve sobre os perigos de tamanha exposição. "No que se refere às informações pessoais, a situação agrava-se à medida que estas caem em mãos de hackers mal-intencionados(veja boxe: Quanto à ética...)" E chama ainda de "insuficientes" as medidas tomadas por alguns internautas para manter o sigilo da identidade e das informações, como a navegação anônima ou as mensagens criptografadas. "(...) a proteção do direito à intimidade passa, obrigatoriamente, pela conscientização dos usuários da rede de que esse direito se encontra, hoje, seriamente ameaçado." No capítulo de conclusão da obra, o advogado deixa a dica: "Não devemos esperar mais da internet do que do mundo real. Seja como for, tanto na rede como fora dela, o respeito ao direito à intimidade deve prevalecer."



Mas aí o internauta pergunta: "O que alguém pode fazer com as informações do meu perfil?". Bem, depende do tipo de dado. "Lembro-me do caso de um programador norte-americano que mantinha um blog sobre uma linguagem de programação no qual ele também falou sobre a própria trajetória para deixar de ser dependente químico. O chefe dele leu o texto e o demitiu por ser um alcoólatra", relata o consultor de recursos humanos, Willyans Coelho, criador e diretor do site www.rh.com.br. "É claro que considero isso um preconceito absurdo, mas é bom lembrar que informações disponíveis em blogs ou em páginas do Orkut são públicas. Ninguém utiliza meios ilícitos para conseguir essas informações." Logo, Coelho não considera a consulta a elas uma invasão de privacidade. "A pessoa sabe que esses meios são de acesso público. Portanto, sua opinião poderá ser vista por qualquer um, inclusive pelo seu líder e outros colegas da empresa. E isso poderá trazer conseqüências não apenas para seu emprego atual, mas até para sua carreira."


 

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veja boxe: a serviço da criatividade


veja boxe: Quanto à ética...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


A serviço da criatividade

Nas salas de Internet Livre, ferramentas como blogs e fotologs são pretexto para o trabalho com as infinitas possibilidades da rede

O programa Internet Livre, formado por salas com computadores conectados à rede mundial em todas as unidades do Sesc São Paulo, representa uma iniciativa da instituição na direção de oferecer um dos principais instrumentos de inclusão nos dias de hoje: o acesso simples à intenet. Da arquitetura das salas à capacitação dos instrutores (conhecidos como webanimadores), o programa alia-se às infinitas possibilidades da rede - por meio de cursos, oficinas, e mesmo do funcionamento normal das salas -, no intuito de levar cultura, lazer e informação a um número cada vez maior de pessoas, das crianças ao público de terceira idade. O diferencial se evidencia na filosofia orientadora do projeto: encarar a web como um novo meio de educação, capaz de oferecer a seus usuários ferramentas de aprendizado, e não apenas como veículo de entretenimento.



No que diz respeito ao acesso às salas de bate-papo, visitação e criação de blogs (diários virtuais), ou mesmo ao Orkut, o uso dos computadores nos espaços de Internet Livre se dá de duas maneiras, segundo explica Marcelo Bressanin, técnico da Gerência de Ação Cultural (Geac) do Sesc: por meio de atividades orientadas e de acessos livres. "Nestes últimos, os usuários podem visitar todos os tipos de conteúdo da rede, com exceção daqueles considerados ofensivos", explica. "Assim, o acesso a estruturas de comunicação instantânea (como os programas de mensagens em tempo real ou as salas de bate-papo, os chamados chats) e de perfil pessoal (Orkut, blogs, fotologs etc.) é absolutamente livre." Entretanto, declara o técnico, a filosofia do Sesc é mostrar ao público o potencial dessas ferramentas para aperfeiçoamento pessoal e criativo. "Isso é feito por intermédio de navegações orientadas, que mostram exemplos criativos do uso desse material." Dessa forma, uma oficina de foto digital, por exemplo, pode dar origem à criação de blogs ou fotologs. "Nossos instrutores de internet e multimídia, além dos demais profissionais contratados, vêm trabalhando no sentido de capacitar os interessados para o uso de todos os recursos disponíveis na rede, mediante um tema proposto."

 

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Quanto à ética...

De quem é a responsabilidade pelo que é veiculado e consumido na internet?


Tendo em vista o que se diz da rede mundial de computadores, como o fato de ser fonte preciosa de informação e milagroso meio de comunicação, uma característica pode representar o inferno de uns e o paraíso de outros: ela é terra de ninguém. A impressão que se tem ao navegar pelos inúmeros sites que a compõem é de que tudo é possível. E nesse "tudo" incluem-se jornalismo em tempo real e comunicação instantânea com aquele amigo que está morando no Japão, mas também conteúdo de mau gosto de todo tipo. No momento em que esse universo está ao alcance de um clique, nas mãos de quem fica a ética relacionada ao uso que se faz da rede? "Como em qualquer ato ético, trata-se de uma rua de mão dupla", afirma o filósofo e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Roberto Romano. "Não existem, na rede mundial, 'lobos maus' e 'chapeuzinhos vermelhos'. Como diria o pensador francês Jean-Paul Sartre: num ato (sobretudo amoroso) são necessários pelo menos dois agentes." Para Romano, a preocupação acerca do controle do conteúdo hoje veiculado na internet é milenar. Afinal, segundo ele, "sempre que os novos instrumentos de comunicação ampliaram as possibilidades de escrever e de pensar sem tutelas, ouviu-se o clamor dos autoritários contra eles". O filósofo lista: "Assim ocorreu com a poesia, o teatro e a escultura na Grécia antiga e clássica, e em Roma; com a imprensa no Renascimento; e com o rádio e a televisão. Sempre temos o coro dos supostos aristocratas do espírito que lamentam a 'perda de rigor', tanto no plano ético quanto no especulativo, trazida pelos novos instrumentos". O professor defende a prevalência, em meio a prós e contras, da cautela. "Existem crimes na internet como existem crimes na mídia, nas universidades, nas igrejas, nas seitas e nos partidos políticos. Não se resolve esse ponto castrando a tecnologia e a livre manifestação do pensamento. A pedofilia, a curiosidade indiscreta e a falta de respeito ao outro são constituintes da realidade humana e existem muito antes de existirem computadores e a rede mundial."


 

 

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