O hábito de expor e trocar informações pessoais
via internet põe em xeque o limite entre a vida pública
e a privada na era da realidade virtual
O perfil que aparece
na foto na abertura é falso, mas expressa com proximidade muitas
das descrições encontradas em sites de relacionamento virtual,
como o Orkut - o mais famoso deles. A criação veio dos nos
Estados Unidos, mas a ocupação é verde-amarela -
"cerca de 70% dos quase 8 milhões de usuários declaram
ser brasileiros", informou o caderno de informática Link,
do jornal O Estado de S. Paulo, em reportagem publicada no ano passado.
E são pessoas de todas as idades, tribos, bandas e apitos. Todo
mundo conhece alguém que "está no Orkut", como
se diz. Com isso, o site, além de se tornar mais um dos meios de
contato que a internet oferece - aspecto que tem sido citado como um dos
mais positivos -, acabou se transformando num verdadeiro banco de dados.
Exemplo: garota flerta com garoto numa festa, eles não se conhecem.
Logo, um não sabe nada sobre o outro, certo? Não, necessariamente.
Basta descobrir o nome do "investigado" e voar para a internet.
Possivelmente lá estarão informações sobre
os filmes que ele mais gosta, os livros que já leu ou quer ler
e a comida preferida. Isso para ficar nos dados pessoais menos comprometedores,
pois as pessoas têm revelado muito mais do que isso. Não
somente nas comunidades da rede, mas também em blogs (os famosos
diários virtuais), flogs (abreviação de fotologs,
versão com fotos dos tais diários) e salas de bate-papo,
a parcela de usuários que "abre o jogo" tem crescido
cada vez mais(veja boxe: a serviço
da criatividade). Exibicionismo? Ingenuidade? Conseqüência
compreensível para uma sociedade que elegeu a fama como um dos
principais objetivos na vida? Talvez um pouco de cada coisa. O fato é
que o comportamento desses internautas mais "desinibidos" tem
sido foco de análise de estudiosos de diferentes áreas do
conhecimento, da psicologia à sociologia, passando pelo direito
e, claro, pelo marketing. "Sites como esse Orkut são um banco
de dados mais amplo que o do FBI", compara, com bom humor, a psicóloga
Maluh Duprat, membro da equipe do Núcleo de Pesquisas em Psicologia
e Informática (NPPI), da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP). "Só que é pouquíssimo
confidencial." E é esse o ponto. Se todo mundo anda se expondo
na rede mundial de computadores, como ficam a privacidade e a intimidade
no século 21?
Revolução
radical
O psicanalista Sérgio Telles começa a responder a questão
ressaltando que não se deve ignorar a "radical revolução"
trazida pela internet. "Ela proporciona facilidade e rapidez na comunicação
e divulgação de informações antes impensáveis",
afirma. "Suas salas de bate-papo e os mais recentes programas, como
o Orkut, inauguraram uma forma de relacionamento social, pelo qual se
torna possível encontrar parceiros para qualquer atividade ou interesse,
por mais bizarros e secretos que sejam." Ainda segundo o psicanalista,
tendo em vista esse potencial da rede, é compreensível que
principalmente os mais jovens façam um uso "extensivo e intensivo"
de seus instrumentos. "Trata-se de uma franca e lúdica aceitação
dessa nova modalidade de relacionamento social, que parece tão
estranha para as gerações mais velhas", diz. Para ele,
a prática não está necessariamente ligado à
ostentação. "Se pensarmos na forma horizontal e democrática
oferecida pelo Orkut, no qual todos podem se exibir, e se exibem, isso
tira a conotação própria do exibicionismo, que é
uma prática isolada dentro de uma comunidade a ela avessa."
Para ele, observar esse fenômeno traz a possibilidade de avaliar
como a internet está mudando determinados padrões de comportamento.
Para Maluh Duprat, da PUC, dá, sim, para falar em um grande desejo
de ser visto, só que diluído em uma vontade maior ainda
de ver. "O que gosta de exibir, em geral, gosta de observar",
afirma. "São dois lados de uma mesma moeda, uma característica
que é própria do ser humano. O que ocorre é que às
vezes um lado prevalece sobre o outro. Por isso esses sites e salas de
papo têm uma busca absurda, principalmente os de conteúdo
erótico."
Exercício
de vaidade
Já no campo dos blogs, a jornalista Denise Schittine, autora do
livro Blog: Comunicação e Escrita Íntima na Internet
(Editora Civilização Brasileira, 2004), acrescenta que manter
um espaço pessoal num meio que tem como potenciais leitores habitantes
do mundo inteiro, ou ao menos a parte dele que fala a mesma língua,
revela uma necessidade de mostrar-se e com uma clara intenção
de ser aceito. "As pessoas escrevem porque procuram no outro um espelho",
afirma. Escrevem porque querem descobrir alguém que pense igual,
ou sinta igual ou tenha opinião semelhante." A jornalista
conta que entre os blogs que pesquisou para seu o livro, resultado de
sua dissertação de mestrado em comunicação,
percebeu que os "blogueiros" - como são chamados os autores
desses diários virtuais - são vaidosos e tendem a ter mais
cuidado ao escrever. "É muita gente lendo e também
muita gente criticando. Os riscos de levar um pito por um comentário
ou por um simples erro de português são maiores", afirma.
"Então, o blogueiro tem mais cuidado, sim, se não tiver
coloca a própria pele em risco, perde leitores, perde admiradores,
perde tudo o que alimenta uma vida virtual."
Esse cuidado descrito por Denise pode se assemelhar às precauções
que um ídolo tem com sua imagem para não desapontar os fãs.
"Vivemos numa civilização dominada pela mídia
eletrônica, na qual a imagem reina inconteste", observa Sérgio
Telles. "Ser famoso e aparecer na televisão é seguramente
um desejo secreto acalentado pela maioria. O monitor do computador, dada
a semelhança com o da televisão, e a internet com seu poder
de difusão, que pode ser também tão amplo quanto
o da TV, seguramente facilitam a realização desse desejo
na fantasia." E não é preciso fazer parte da vida íntima
das celebridades para saber quão minado é o terreno no qual
elas pisam. Um passo em falso é acompanhado, e criticado, por muita
gente mundo afora. "Em geral, as pessoas não têm consciência
das conseqüências de expor a vida, como algumas fazem",
afirma Maluh Duprat. "De repente, o feitiço vira contra o
feiticeiro, mesmo. É muito importante que cada um de nós
mantenha protegido um lado mais privado. É como se fosse uma célula-tronco
de nós mesmos. Aquilo que é íntimo, que só
nós sabemos. Ao compartilhar tudo, principalmente com estranhos,
como na internet, tendemos a perder um pouco de vista nossa individualidade."
Sérgio Telles completa: "Apesar do uso intensivo que fazem
desses instrumentos da internet, acho que as pessoas não têm
uma noção clara do grau de exposição a que
se submetem e das conseqüências, que podem ser graves."
De
olho na informação
E as conseqüências podem se manifestar em muitas áreas.
No livro Direito à Intimidade na Internet (Editora Juruá,
2006), o advogado Marcelo Cardoso Pereira, mestre em informática
e direito pela Universidade de Madri, escreve sobre os perigos de tamanha
exposição. "No que se refere às informações
pessoais, a situação agrava-se à medida que estas
caem em mãos de hackers mal-intencionados(veja
boxe: Quanto à ética...)" E chama ainda de
"insuficientes" as medidas tomadas por alguns internautas para
manter o sigilo da identidade e das informações, como a
navegação anônima ou as mensagens criptografadas.
"(...) a proteção do direito à intimidade passa,
obrigatoriamente, pela conscientização dos usuários
da rede de que esse direito se encontra, hoje, seriamente ameaçado."
No capítulo de conclusão da obra, o advogado deixa a dica:
"Não devemos esperar mais da internet do que do mundo real.
Seja como for, tanto na rede como fora dela, o respeito ao direito à
intimidade deve prevalecer."
Mas aí o internauta pergunta: "O que alguém pode fazer
com as informações do meu perfil?". Bem, depende do
tipo de dado. "Lembro-me do caso de um programador norte-americano
que mantinha um blog sobre uma linguagem de programação
no qual ele também falou sobre a própria trajetória
para deixar de ser dependente químico. O chefe dele leu o texto
e o demitiu por ser um alcoólatra", relata o consultor de
recursos humanos, Willyans Coelho, criador e diretor do site www.rh.com.br.
"É claro que considero isso um preconceito absurdo, mas é
bom lembrar que informações disponíveis em blogs
ou em páginas do Orkut são públicas. Ninguém
utiliza meios ilícitos para conseguir essas informações."
Logo, Coelho não considera a consulta a elas uma invasão
de privacidade. "A pessoa sabe que esses meios são de acesso
público. Portanto, sua opinião poderá ser vista por
qualquer um, inclusive pelo seu líder e outros colegas da empresa.
E isso poderá trazer conseqüências não apenas
para seu emprego atual, mas até para sua carreira."
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veja
boxe: a serviço da criatividade
veja
boxe: Quanto à ética...
A serviço da criatividade
Nas salas
de Internet Livre, ferramentas como blogs e fotologs são
pretexto para o trabalho com as infinitas possibilidades da rede
O programa Internet
Livre, formado por salas com computadores conectados à rede
mundial em todas as unidades do Sesc São Paulo, representa
uma iniciativa da instituição na direção
de oferecer um dos principais instrumentos de inclusão nos
dias de hoje: o acesso simples à intenet. Da arquitetura
das salas à capacitação dos instrutores (conhecidos
como webanimadores), o programa alia-se às infinitas possibilidades
da rede - por meio de cursos, oficinas, e mesmo do funcionamento
normal das salas -, no intuito de levar cultura, lazer e informação
a um número cada vez maior de pessoas, das crianças
ao público de terceira idade. O diferencial se evidencia
na filosofia orientadora do projeto: encarar a web como um novo
meio de educação, capaz de oferecer a seus usuários
ferramentas de aprendizado, e não apenas como veículo
de entretenimento.
No que diz respeito ao acesso às salas de bate-papo, visitação
e criação de blogs (diários virtuais), ou mesmo
ao Orkut, o uso dos computadores nos espaços de Internet
Livre se dá de duas maneiras, segundo explica Marcelo Bressanin,
técnico da Gerência de Ação Cultural
(Geac) do Sesc: por meio de atividades orientadas e de acessos livres.
"Nestes últimos, os usuários podem visitar todos
os tipos de conteúdo da rede, com exceção daqueles
considerados ofensivos", explica. "Assim, o acesso a estruturas
de comunicação instantânea (como os programas
de mensagens em tempo real ou as salas de bate-papo, os chamados
chats) e de perfil pessoal (Orkut, blogs, fotologs etc.) é
absolutamente livre." Entretanto, declara o técnico,
a filosofia do Sesc é mostrar ao público o potencial
dessas ferramentas para aperfeiçoamento pessoal e criativo.
"Isso é feito por intermédio de navegações
orientadas, que mostram exemplos criativos do uso desse material."
Dessa forma, uma oficina de foto digital, por exemplo, pode dar
origem à criação de blogs ou fotologs. "Nossos
instrutores de internet e multimídia, além dos demais
profissionais contratados, vêm trabalhando no sentido de capacitar
os interessados para o uso de todos os recursos disponíveis
na rede, mediante um tema proposto."
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Quanto
à ética...
De
quem é a responsabilidade pelo que é veiculado e consumido
na internet?
Tendo em vista
o que se diz da rede mundial de computadores, como o fato de ser
fonte preciosa de informação e milagroso meio de comunicação,
uma característica pode representar o inferno de uns e o
paraíso de outros: ela é terra de ninguém.
A impressão que se tem ao navegar pelos inúmeros sites
que a compõem é de que tudo é possível.
E nesse "tudo" incluem-se jornalismo em tempo real e comunicação
instantânea com aquele amigo que está morando no Japão,
mas também conteúdo de mau gosto de todo tipo. No
momento em que esse universo está ao alcance de um clique,
nas mãos de quem fica a ética relacionada ao uso que
se faz da rede? "Como em qualquer ato ético, trata-se
de uma rua de mão dupla", afirma o filósofo e
professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Roberto
Romano. "Não existem, na rede mundial, 'lobos maus'
e 'chapeuzinhos vermelhos'. Como diria o pensador francês
Jean-Paul Sartre: num ato (sobretudo amoroso) são necessários
pelo menos dois agentes." Para Romano, a preocupação
acerca do controle do conteúdo hoje veiculado na internet
é milenar. Afinal, segundo ele, "sempre que os novos
instrumentos de comunicação ampliaram as possibilidades
de escrever e de pensar sem tutelas, ouviu-se o clamor dos autoritários
contra eles". O filósofo lista: "Assim ocorreu
com a poesia, o teatro e a escultura na Grécia antiga e clássica,
e em Roma; com a imprensa no Renascimento; e com o rádio
e a televisão. Sempre temos o coro dos supostos aristocratas
do espírito que lamentam a 'perda de rigor', tanto no plano
ético quanto no especulativo, trazida pelos novos instrumentos".
O professor defende a prevalência, em meio a prós e
contras, da cautela. "Existem crimes na internet como existem
crimes na mídia, nas universidades, nas igrejas, nas seitas
e nos partidos políticos. Não se resolve esse ponto
castrando a tecnologia e a livre manifestação do pensamento.
A pedofilia, a curiosidade indiscreta e a falta de respeito ao outro
são constituintes da realidade humana e existem muito antes
de existirem computadores e a rede mundial."
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