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Ficção inédita

REVISTA E - julho 2006


De Erros & de Acertos

por Marco Antonio Arantes



Ilustrações: Marcos Garuti




Augusto de Mafra, meu amigo, xará e compadre, o que tem de gente boa tem de distraído. Muito míope, desligado, lá vai ele levando pela mão, vida afora, a sua inexata circunstância por este mundo de relógios certos, compromissos inadiáveis, pessoas definitivas. Também nisso somos parecidos. Gauches, ambos.


Pois morreu, como morre todo mundo, a mãe de Corália. Por vias transversas, de casamento em família, Corália acaba sendo parente, ou quase, além de merecedora da consideração do meu distraído Augusto. Ele não conhecera, nunca vira, a falecida. Mas Corália receberia o seu abraço, uma palavra de conforto. Ora, para isso foram feitos amigos, abraços, palavras. Não poderia faltar. Conhecendo-se, e ao seu proverbial esquecimento, já na véspera afixou ao espelho do banheiro o auto-recado: "Sexta / 16 horas / Corália / Mãe".


Fazia, na sexta, um calor indecente. Abafado. Péssimo dia para um enterro. A Augusto ocorreu, irrelevante, que não é de bom tom morrer-se em dezembro. Mas, enfim, o que não se faz por um amigo na hora da aflição. O bilhete estava lá, no espelho, peremptório. Cada uma das suas letras dizia "VÁ!". Ademais, não podia chegar em cima da hora do sepultamento; ele passaria um tempo com a família, consolaria, repartiria seu pesar. Grande Augusto. Decidiu: 13 horas. Almoçaria alguma coisa leve ao meio-dia, e às 13 estaria no cemitério. Vamos lá. Almoçou uma salada, queijo, pão preto. Tomou banho, fez a barba, com capricho. A boa colônia que costuma usar não lhe pareceu adequada para um funeral. Vestiu-se. Foi.


Ao chegar, o primeiro embaraço: ele esquecera de anotar o número da capela funerária. Enfim, como havia apenas três delas, não seria difícil descobrir qual a da mãe de Corália. Discretamente, espiou pela porta da primeira. Pouca gente, um choro abafado, cheiro triste de velas e flores murchas. Espichou o pescoço. Sobressaía do caixão o perfil adunco do defunto, formidável nariganga sublinhada por valente bigode negro. "Tingido", diagnosticou mentalmente Augusto, "esse tom de preto, só em farmácia." Era improvável que a mãe de Corália usasse bigode. Passou à capela seguinte. Vazia. Por eliminação, seria a terceira.


Era a terceira, sem dúvida. Apesar da miopia, já da entrada divisou, junto ao caixão, o vulto inconfundível de Corália. O coque de sempre, os óculos de aros grossos, o belo porte altivo. Havia bastante gente - que bom, sua amiga haveria de sentir-se mais consolada. "Com licença, com licença", foi abrindo caminho até o coque, os óculos, o porte. Uma olhada rápida ao caixão, de passagem: uma senhora idosa, cabelo branquinho; tão bonitinha a mãe de Corália - "eu sabia que ela não usava bigode", lembrou Augusto. "Minha querida...", disse ele ao coque, aos óculos, "minha querida, um abraço...", e só ao abraçar percebeu que nunca tinha visto aquela mulher - miopia miserável - , que usava o mesmo penteado, os mesmos óculos de Corália. Parecidíssima, haveria de ser a irmã, funcionária dos Correios, de quem ele ouvira falar.


Lenço amarfanhado junto à boca, expressão apatetada nos olhos vermelhos, inchados, a mulher deixou-se abraçar. "Obrigada, obrigada...", deixou-se apertar longamente contra o peito generoso do bom Augusto. "Assim é; todos chegamos lá... ela parece estar dormindo, tão serena..."; abraçada, apertada, a irmã de Corália seguia balbuciando "Sim, sim, obrigada...". Augusto esclareceu "Sou muito amigo de Corália; na verdade, enteado"; a mulher ia repetindo "Sim, sim, obrigada...", ao que ele acrescentou "o que nos faz amigos também, minha querida, a rigor tia e sobrinho, não é mesmo?"; a querida agradecia "Sim, sim, obrigada..."; e ele perguntou "Onde está Corália?, ainda não a vi"; a mulher enxugou os olhos, sussurrou "Sim, sim, obrigada...", e passou, "Obrigada, obrigada" para os braços do próximo na fila. Que espeto, Corália não estava em parte alguma. Sensível, tresnoitada pelo velório, por certo tinha ido descansar um pouco, e o marido, pai de Augusto, a acompanhara. Não ficaria sabendo que o enteado chegara com três horas de amabilíssima antecedência para aquele enterro inconveniente, naquele calor. Desperdício. Enfim, havia o restante da parentela, que cumpria abraçar, consolar; anunciar-se. Abraçou, consolou, foi-se apresentando "Sou enteado da Corália, meus sinceros pêsames"; "Muito obrigado".


Isto posto, e considerada a sua posição de quase parente, acabou por estacionar por perto do caixão. Meio por perto. Não tão perto quanto os familiares imediatos, não tão longe quanto os apenas amigos - Augusto, homem educado, conhece o protocolo das pompas fúnebres. Nessa condição, de não-tão-perto-nem-tão-longe, acabou por receber, ele mesmo, pêsames e abraços, que agradeceu, comovido, secundando os seus obrigados com o esclarecimento indispensável: "Sou o enteado de Corália; ela foi descansar um pouco, mas virá para o sepultamento".


Pois não veio. Duas horas, três, quatro; chega o padre para encomendar o corpo. Augusto, já angustiado, não via chegar o pai, Corália, um conhecido que fosse. Por fim, sai o féretro, que Augusto não acompanha. Calor medonho, Corália ausente, para que o sacrifício? E aí, na verdade, estava a grande estopada: vamos a funerais, sobretudo a funerais de verão, não pelos mortos, que não estão nem aí, mas pelos vivos. A viva, no caso, Corália, não tivera a fineza de estar presente para testemunhar o sacrifício do enteado, agradecer pela solidariedade. Enfim, fazer o quê? Aí ocorreu ao meu amigo a idéia salvadora: o livro de presenças. Ele assinaria o livro, deixaria uma longa mensagem de pesar e consolo (Augusto sabe escrever, bem rara prenda), falando sobre o seu carinho solidário. A amiga leria, saberia; ficaria grata, afinal. Foi ao livro; começou - "Na partida da nossa inesquecível Dona ...". Dona o quê, mesmo? Como era, afinal, o nome da inesquecível? Diacho de memória. Dulce. Não, Olga. Alda, um nome assim, Vanda, Nair. Vera. Um desses nomes de duas sílabas, perfeitos para esquecer. Norma. Norma! Claro, Norma. Dona Norma.


"Na partida da nossa inesquecível Dona Norma...", e estendeu-se, prolixo, sobre o dever cumprido, o direito ao descanso, o Lugar Melhor, as Peregrinas Virtudes, terminando com "a certeza do meu afeto aos familiares, em especial à minha boa amiga Corália". Assinou. Enfim, acabara a chatice. Pouca gente assinara o livro de presenças; uma meia dúzia. Leu os nomes; nenhum conhecido - e no alto da página notou, em tinta roxa, o lembrete desconsolado: "Registro de Presenças ao Funeral da Sra. Erotildes Jezebel da Paixão". Erotildes. Jezebel. Ainda por cima, da Paixão.


Meu bom Augusto de Mafra acertara o dia, a hora. Como não se pode acertar tudo, porém, enganara-se de cemitério, e de defunto - que em paz descanse, muitos anos sem nós todos.


Marco Antonio Arantes, autor de Romãs Maduras (Terceiro Nome, 2005).

 

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