De Erros & de Acertos
por Marco Antonio
Arantes
Ilustrações: Marcos Garuti
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Augusto de Mafra, meu amigo, xará e compadre, o que tem de gente
boa tem de distraído. Muito míope, desligado, lá
vai ele levando pela mão, vida afora, a sua inexata circunstância
por este mundo de relógios certos, compromissos inadiáveis,
pessoas definitivas. Também nisso somos parecidos. Gauches, ambos.
Pois morreu, como morre todo mundo, a mãe de Corália. Por
vias transversas, de casamento em família, Corália acaba
sendo parente, ou quase, além de merecedora da consideração
do meu distraído Augusto. Ele não conhecera, nunca vira,
a falecida. Mas Corália receberia o seu abraço, uma palavra
de conforto. Ora, para isso foram feitos amigos, abraços, palavras.
Não poderia faltar. Conhecendo-se, e ao seu proverbial esquecimento,
já na véspera afixou ao espelho do banheiro o auto-recado:
"Sexta / 16 horas / Corália / Mãe".
Fazia, na sexta, um calor indecente. Abafado. Péssimo dia para
um enterro. A Augusto ocorreu, irrelevante, que não é de
bom tom morrer-se em dezembro. Mas, enfim, o que não se faz por
um amigo na hora da aflição. O bilhete estava lá,
no espelho, peremptório. Cada uma das suas letras dizia "VÁ!".
Ademais, não podia chegar em cima da hora do sepultamento; ele
passaria um tempo com a família, consolaria, repartiria seu pesar.
Grande Augusto. Decidiu: 13 horas. Almoçaria alguma coisa leve
ao meio-dia, e às 13 estaria no cemitério. Vamos lá.
Almoçou uma salada, queijo, pão preto. Tomou banho, fez
a barba, com capricho. A boa colônia que costuma usar não
lhe pareceu adequada para um funeral. Vestiu-se. Foi.
Ao chegar, o primeiro embaraço: ele esquecera de anotar o número
da capela funerária. Enfim, como havia apenas três delas,
não seria difícil descobrir qual a da mãe de Corália.
Discretamente, espiou pela porta da primeira. Pouca gente, um choro abafado,
cheiro triste de velas e flores murchas. Espichou o pescoço. Sobressaía
do caixão o perfil adunco do defunto, formidável nariganga
sublinhada por valente bigode negro. "Tingido", diagnosticou
mentalmente Augusto, "esse tom de preto, só em farmácia."
Era improvável que a mãe de Corália usasse bigode.
Passou à capela seguinte. Vazia. Por eliminação,
seria a terceira.
Era a terceira, sem dúvida. Apesar da miopia, já da entrada
divisou, junto ao caixão, o vulto inconfundível de Corália.
O coque de sempre, os óculos de aros grossos, o belo porte altivo.
Havia bastante gente - que bom, sua amiga haveria de sentir-se mais consolada.
"Com licença, com licença", foi abrindo caminho
até o coque, os óculos, o porte. Uma olhada rápida
ao caixão, de passagem: uma senhora idosa, cabelo branquinho; tão
bonitinha a mãe de Corália - "eu sabia que ela não
usava bigode", lembrou Augusto. "Minha querida...", disse
ele ao coque, aos óculos, "minha querida, um abraço...",
e só ao abraçar percebeu que nunca tinha visto aquela mulher
- miopia miserável - , que usava o mesmo penteado, os mesmos óculos
de Corália. Parecidíssima, haveria de ser a irmã,
funcionária dos Correios, de quem ele ouvira falar.
Lenço amarfanhado junto à boca, expressão apatetada
nos olhos vermelhos, inchados, a mulher deixou-se abraçar. "Obrigada,
obrigada...", deixou-se apertar longamente contra o peito generoso
do bom Augusto. "Assim é; todos chegamos lá... ela
parece estar dormindo, tão serena..."; abraçada, apertada,
a irmã de Corália seguia balbuciando "Sim, sim, obrigada...".
Augusto esclareceu "Sou muito amigo de Corália; na verdade,
enteado"; a mulher ia repetindo "Sim, sim, obrigada...",
ao que ele acrescentou "o que nos faz amigos também, minha
querida, a rigor tia e sobrinho, não é mesmo?"; a querida
agradecia "Sim, sim, obrigada..."; e ele perguntou "Onde
está Corália?, ainda não a vi"; a mulher enxugou
os olhos, sussurrou "Sim, sim, obrigada...", e passou, "Obrigada,
obrigada" para os braços do próximo na fila. Que espeto,
Corália não estava em parte alguma. Sensível, tresnoitada
pelo velório, por certo tinha ido descansar um pouco, e o marido,
pai de Augusto, a acompanhara. Não ficaria sabendo que o enteado
chegara com três horas de amabilíssima antecedência
para aquele enterro inconveniente, naquele calor. Desperdício.
Enfim, havia o restante da parentela, que cumpria abraçar, consolar;
anunciar-se. Abraçou, consolou, foi-se apresentando "Sou enteado
da Corália, meus sinceros pêsames"; "Muito obrigado".
Isto posto, e considerada a sua posição de quase parente,
acabou por estacionar por perto do caixão. Meio por perto. Não
tão perto quanto os familiares imediatos, não tão
longe quanto os apenas amigos - Augusto, homem educado, conhece o protocolo
das pompas fúnebres. Nessa condição, de não-tão-perto-nem-tão-longe,
acabou por receber, ele mesmo, pêsames e abraços, que agradeceu,
comovido, secundando os seus obrigados com o esclarecimento indispensável:
"Sou o enteado de Corália; ela foi descansar um pouco, mas
virá para o sepultamento".
Pois não veio. Duas horas, três, quatro; chega o padre para
encomendar o corpo. Augusto, já angustiado, não via chegar
o pai, Corália, um conhecido que fosse. Por fim, sai o féretro,
que Augusto não acompanha. Calor medonho, Corália ausente,
para que o sacrifício? E aí, na verdade, estava a grande
estopada: vamos a funerais, sobretudo a funerais de verão, não
pelos mortos, que não estão nem aí, mas pelos vivos.
A viva, no caso, Corália, não tivera a fineza de estar presente
para testemunhar o sacrifício do enteado, agradecer pela solidariedade.
Enfim, fazer o quê? Aí ocorreu ao meu amigo a idéia
salvadora: o livro de presenças. Ele assinaria o livro, deixaria
uma longa mensagem de pesar e consolo (Augusto sabe escrever, bem rara
prenda), falando sobre o seu carinho solidário. A amiga leria,
saberia; ficaria grata, afinal. Foi ao livro; começou - "Na
partida da nossa inesquecível Dona ...". Dona o quê,
mesmo? Como era, afinal, o nome da inesquecível? Diacho de memória.
Dulce. Não, Olga. Alda, um nome assim, Vanda, Nair. Vera. Um desses
nomes de duas sílabas, perfeitos para esquecer. Norma. Norma! Claro,
Norma. Dona Norma.
"Na partida da nossa inesquecível Dona Norma...", e estendeu-se,
prolixo, sobre o dever cumprido, o direito ao descanso, o Lugar Melhor,
as Peregrinas Virtudes, terminando com "a certeza do meu afeto aos
familiares, em especial à minha boa amiga Corália".
Assinou. Enfim, acabara a chatice. Pouca gente assinara o livro de presenças;
uma meia dúzia. Leu os nomes; nenhum conhecido - e no alto da página
notou, em tinta roxa, o lembrete desconsolado: "Registro de Presenças
ao Funeral da Sra. Erotildes Jezebel da Paixão". Erotildes.
Jezebel. Ainda por cima, da Paixão.
Meu bom Augusto de Mafra acertara o dia, a hora. Como não se pode
acertar tudo, porém, enganara-se de cemitério, e de defunto
- que em paz descanse, muitos anos sem nós todos.
Marco Antonio Arantes, autor de Romãs Maduras (Terceiro Nome, 2005).
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