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Sociedade por um triz

Ilustrações: Marcos Garuti

O chamado ódio social aparece de diferentes formas: homofobia, xenofobia, preconceito racial, agressão e crime contra moradores de rua ou até mesmo numa corriqueira briga de trânsito que termina nas páginas policiais. Em todos esses exemplos, o que se vê é a intolerância pautando as relações como componente explosivo, fazendo da violência, em seus mais diversos graus, uma perigosa moeda de troca entre os indivíduos. Insegurança? A constante de tensão causada pelo caos no mundo moderno? Quais as origens desse sentimento? Em artigos exclusivos, os médicos e psiquiatras Plinio Montagna e Paulo Cesar Sandler buscam responder a essas questões.

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Sobre a psicologia do ódio social

Violência nossa de cada dia - ontem, hoje ou sempre?






 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sobre a psicologia do ódio social



por Plinio Montagna


É bem verdade que não nascemos xenófobos ou homofóbicos. Mesmo porque só depois de um certo desenvolvimento é que um bebê vai se perceber um ser individual, ímpar e, portanto, considerar o outro como externo a si. No início, nem mesmo distinguimos o que é interno daquilo que é externo a nós. O que frustra está fora. A diferenciação eu-não-eu dá-se, paulatinamente, desde o nascimento; um momento marcante é o da instalação da capacidade de se reconhecer a própria imagem num espelho. Seu corolário é o reconhecimento social do outro. Este fascina, mas, sobretudo, provoca medo. Muito medo. É nesse universo infantil, desse medo ao outro, estranho, diferente, não familiar, que se enraízam os primórdios do fenômeno da xenofobia, e outros que tais. É esse seu precursor e seu princípio prototípico, demarcado pelo maniqueísmo original de todos nós. O campo do biológico oferece exemplos para reflexão. Nosso organismo rejeita aquilo que não reconhece como seu. Em geral, como defesa. Se não pode expulsar, busca enquistar um corpo estranho. Mas isso tem limites. Um órgão vindo de outrem, imunologicamente compatível, pode salvar nossa vida. Essa possibilidade de aceitação de um tecido externo, no entanto, varia muito. Em relação a grupos sanguíneos, por exemplo, há tipos doadores universais. Do ponto de vista psicológico, somos criados, enquanto seres, de tal forma que a identificação com a espécie humana sobrepuja qualquer outro tipo de identificação. Fundamentalmente, somos humanos. Essa é a marca registrada a partir da qual nos socializamos. Mas, também aqui, só incorporáramos parte do repertório do humano disponível. Dele necessitamos para nos constituir como sujeitos. Do primeiro objeto, materno, vamos transitando e nos deslocando, ampliando nosso mundo por introjeção e incorporação de semelhanças e contigüidades. Vai surgindo o mundo simbólico. É através de uma paulatina incorporação do outro que está próximo, numa espécie de metonimização do núcleo original, que se constitui o sujeito. E fora dele estará a alteridade, a ser considerada, amada ou odiada. Digo amada e odiada também porque, de início, a apreensão de algo exterior, já o dizia Freud, se pauta primeiramente pelo julgamento de valor. Não vi e não gostei, ou, gostei, pode ser a reação primeira, imediata, do ser humano, antes mesmo de qualquer ponderação baseada na observação, com o julgamento a posteriori. É certamente mais primitiva. Conhecer o mundo e julgá-lo a partir da experiência já implica algum avanço.


Aliás, desde o início, com a finalidade de se organizar e defender diante de perigos externos e internos, o mundo é dividido em bom e mau. Não há meio termo. Aquilo que gratifica é bom e o que frustra é mau. A visão primeira de mundo é totalmente binária, maniqueísta. Amamos ou odiamos, conforme somos gratificados ou frustrados. Assim criamos apenas duas categorias, amigos e inimigos. O mundo é bem simples e nosso inimigo dimensionado. Por meio dessa manobra, sabemos quem é nosso amigo e quem é nosso inimigo, e sabemos que são pessoas diferentes. Ou grupos diferentes. Não podemos imaginar, no início, que o bom e o mau, o gratificante e o frustrante, habitam e mesma pessoa ou o mesmo grupo. Essa já é uma evolução que implica o reconhecimento da complexidade do mundo, para a qual apenas gradualmente vamos nos preparando. Ainda que essa seja uma evolução muito clara, é possível que na maior parte do tempo a maioria das pessoas funcione de acordo com o padrão inicial, mais primitivo, maniqueísta. E assim se criam os grupos amigos e os inimigos, aqueles a quem é o caso de se amar e aqueles a quem se deve odiar. É preciso entender o preconceito como um artifício organizador e de proteção.



O ódio ao mundo externo, ao não-eu, ao diferente, ao outro, estranho, tem também a ver com o desfazimento de uma ilusão de completude originária, ou ao menos de fusão, antes que se instale a lei da realidade que a torna impossível. Desse modo, todo amor ao objeto é ambivalente em seu fundamento. Basta dizer que, conta-nos Platão, lendariamente, mitologicamente, teria sido o ser humano composto misto de masculino e feminino, tendo se diferenciado posteriormente. Mitologia à parte, não deixa de ser uma concessão do eu-narcísico o reconhecimento do objeto.



E quando de eu passamos a dizer nós, quando se explicita a construção do nós, está fertilizado o campo para o desenvolvimento da xenofobia, campo esse que inclui como uma de suas variantes a homofobia, embora aqui a questão adquira contornos particulares. Nos mais diversos agrupamentos. Conta-nos em Chroniques des Uayaqui o antropólogo francês Pierre Clastres, que viveu entre indígenas sul-americanos, estudando-os, que freqüentemente os membros de uma tribo se designam a si mesmos com um vocábulo que em seus idiomas significa "os homens" e reservam para seus vizinhos, de outras tribos, termos como "ovo de piolho", "sub-homens", ou outros termos pejorativos. Isto evidencia a xenofobia em sociedades que diríamos primitivas, o que, se não indicam necessariamente origens genéticas para tal, falam a favor de ser essa uma questão muito profunda, arraigada nos seres e nos grupos humanos. Ou seja, não se pode dizer que é um fenômeno contemporâneo, embora cada tempo e espaço delimite o modo pelo qual esses fenômenos se explicitam. Mas se pode dizer que quando vemos os outros como "sub-homens", definitivamente inferiores, está aberta a porta à liberação de atos ou movimentos no sentido de os agredirmos, humilhá-los ou eventualmente exterminá-los. E essa é, decerto, uma variável da maior importância na sociedade contemporânea, podendo se dar em relação a raça, gênero, origem, nacionalidade, condição social, orientação sexual etc. E é uma variável que não diz respeito à experiência pessoal. Ao contrário, diz respeito a uma idéia prévia, um preconceito, "herdado" socialmente ou construído por si próprio, que torna a experiência com o objeto de ódio ou de fobia uma simples maneira de confirmar as convicções preexistentes. Não há defesa possível, pois a racionalidade é apenas confirmatória daquilo que a pessoa já crê a respeito do outro. A função primária da experiência é a confirmação do preconceito.



É interessante notar que, dentro dessa esfera, o "eu" que odeia ou que nutre o preconceito não é um "eu isolado". "Eu" odeio, não como eu sozinho, mas como "branco", "heterossexual", mendigo etc. O eu precisa de um "nós", da pertinência a um grupo taxonomicamente "superior" ao grupo dos "outros". O contato com o outro, nesse nível, não comporta a observação isenta, a reflexão ou consideração. Implica a rejeição automática, o maniqueísmo absolutista. De todo modo, é melhor ter um inimigo identificado do que um anônimo, ou incerto. Assim, não é difícil entender que inimigos podem ser nomeados x, y ou z, e assim sabemos quem nos ameaça e deve ser combatido. E, acrescente-se, os grupos com inimigos externos bem definidos podem usá-los como um fator de coesão interna. Essa pode ser uma estratégia simplificadora, utilizada por grupos sociais de diversas ordens.



Outro fator relevante nesses fenômenos é, claro, que aquilo que odiamos interiormente em nós mesmos vamos atacar não em nós, mas no grupo sujeito ao preconceito.



Um fenômeno saudável para lidar com pequenas diferenças, que por vezes são responsáveis por grandes conflitos e enormes estragos, pode ser o humor. O humor saudável. Assim é que brasileiros fazem piadas com argentinos e portugueses, ingleses fazem piada com irlandeses, europeus fazem piadas com poloneses, japoneses e chineses trocam chistes entre si, o que ajuda a lidar com os "narcisismos das pequenas diferenças", utilizando essa expressão de Freud. Uma das marcas registradas do processo psicanalítico individual é ajudar cada um a suportar e conviver com diferenças. Um das funções sociais da psicanálise no século 21, tenho dito com freqüência, é aprofundar-se nessas questões para trazer mais subsídios, da mesma forma, para os grupos sociais, com finalidade análoga. Pode ser um instrumento relevante do processo social.


Plinio Montagna é médico psiquiatra e psicanalista


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Violência nossa de cada dia - ontem, hoje ou sempre?



por Paulo Cesar Sandler


A mentalidade dominante caracteriza épocas: dos gregos, o belo; do Iluminismo, a ciência próxima da realidade, livre de autoritarismo. Mentalidade das descobertas, da música e poesia românticas, da tecnologia. Parecíamos ter evoluído do Tyranossaurus rex até Bin Laden. Mas os tempos de hoje testemunham violência, crueldade e extinção de valores ligados à vida. Será esta a mentalidade, a zeitgeist, de hoje?



Na ecologia temos a Amazônia rapidamente virando "azônia" (o prefixo "a" significa, "ausência de"), enquanto acidentes de trânsito mataram outros 50 milhões de pessoas entre 1945 e 1990.



Na economia, a mais-valia. A globalização e a avidez econômica, mentoras da jogatina empedernida dos mercados, da partenogênese bancária do capital, inimigos da produção. Quanto mais ricos ficamos, menos enfrentamos a obscena distribuição desigual de educação e oportunidades.



Na política externa, os conflitos assassinos entre países, "banalizados" pela pulverização das armas nos berços da humanidade, da África, da civilização, do Oriente Médio. São como "guerras dos 100 anos" em pleno século 21. Somália, Bósnia, Bangladesh, Afeganistão russo e não russo, torres duplas em Nova York, escravos infantis em Cingapura, China, Nordeste do Brasil, ataques aos metrôs japoneses, ingleses, espanhóis e aos ônibus do Brasil. Palestinos e israelenses.



Na política interna, os parentes da erva daninha, de fazer corar um chupim, os abutres da desigualdade são adubo fértil para a eterna promessa "desta vez, vamos". Sempre "vamos", mas nunca vamos mesmo. Seus "irmãos demagogos" prometem honestidade sensata, bem disfarçando a insensatez da desonestidade. Os grandes frutos da demagogia: dinheiro distribuído a rodo, no varejo, para elites político-econômicas.



Na justiça, pensa-se que o crime hoje está pior do que nunca. No fausto requintado do governo, o pirata que deu certo. Na rua, o pirata que não deu tão certo. Soltos - bem soltos - por uma tal de justiça, que nos parece pior hoje. Ambos rondam, pegam, matam e comem. Vivemos a época da inversão de valores profetizada pelo poeta Chico. A solução: chame o ladrão, chame o ladrão! Para o governante e para o comprador, um traficante vale mais do que um professor.
Na cultura, será nossa, então, a idade da cupidez "materialista" - como brandem unidos, consternados e nisto igualados teólogos budistas, muçulmanos, protestantes, católicos, judeus? Afinal, nunca mais tivemos nenhum Platão, Bach, Shakespeare, Nietzsche. E os que contribuíram têm sido rodeados de controvérsia e desconfiança: Freud, Marx, Einstein.



Na família, muitos apregoam, desde os anos 60, que se trata de uma invenção burguesa. Hoje, muito reforçada por clonagens e assemelhados, como técnicas de inseminação e "bebês de proveta".



Na saúde, tempos de aids, e de Bhopal e de Chernobyl.



Será nossa sobrevivência dependente de nossa capacidade para sublimidade ou para bestialidade? Política, justiça, oportunidades, educação algum dia não foram restritas a elites? Feudalismo, mandarinato, brâmanes, levíticos, e seus sucessores em vaticanos e assemelhados deles derivados. Algum dia foi menor a avidez, a jogatina, o entesouramento, o escravagismo? Algum dia foi melhor a justiça dos reis da França? De Átila? Libertário, o marxismo deu em elites burocráticas criminosas, mamando do ataque às regras básicas da economia, desprezando custos, destruindo a produção, achando culpados pela fome, aumentaram a fome. Promessa de demagogo, felicidade a todos: o que faziam os reis e barões e sua finanças guerreiras autodevotadas? Ou os imperadores chineses e japoneses mais sagrados do que um deus? Do traficante de escravos africanos de ontem ao de armas e drogas de hoje, para fazer novos escravos? Do bandoleiro medieval nas estradas perigosas para PCCs e "fernandinhos"? De Francis Drake a Marcola, intermediados por marketeiros, traficantes de alegria. Todos, servidores do poder. Entre 1914 e 1944, 50 milhões de pessoas foram mortas nas hecatombes stalinista e nazista. Mudou? Piorou? Melhorou? Guerra geral ou milhares de guerras focais? Faça sua escolha.



Que adversário, por mais feroz ou temível, foi páreo para nós na posse da superfície da Terra? A quase todos exterminamos. À nossa altura - talvez nossos substitutos -, ratos e baratas. Mas nem estes matam sem necessidade de sobrevivência.



Se as sociedades são feitas de indivíduos, poderá o exame destes ajudar? Suspeito que pagamos hoje o preço do desprezo à mente individual. Perene fantasia destrutiva: a fantasia de superioridade. Mentira sedutora atemporal no nível familiar, do quarteirão, da paróquia, dos estamentos, das nações: a dignidade de uns sendo mantida à custa da indignidade de outros, como observou Gandhi. Stalin pregou a superioridade de uma classe; Hitler, de uma "raça" inexistente. A anunciada raça alqaedista, sempre popular: superioridade de uma religião sobre as outras.



Poderemos aprender da experiência antes que o Sol esfrie ou a Terra aqueça de vez? A eterna vigilância de quem somos e temos sido é um preço da liberdade. Formarão algum dia uma massa crítica social, os resultados de uma psicanálise real em indivíduos. Nesse dia, não diremos mais que Hitler foi um monstro. Diremos que habita dentro de cada um de nós um Hitler interno, junto de nosso Bach interno. Um Bin Laden interno, junto de um Omar Khayan interno. Um demagogo, junto de um Péricles. A decisão, social e individual, é: qual dos dois vamos nutrir?


Paulo Cesar Sandler é médico e psicanalista

 

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