Literatura
ontem e hoje
por Alcir Pécora
O crítico literário
e professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) Alcir Pécora acumula em seu currículo o mérito
de ter ajudado a fundar, há 30 anos, o departamento do qual é
membro. Um núcleo de análise da literatura brasileira criado
"basicamente por alunos do Antonio Candido", informa, citando
um dos nomes-referência do assunto no país. "Eu era
o único que não havia sido aluno dele. Era ainda bem novo
e o único que havia se formado na própria Unicamp."
Autor de Teatro do Sacramento (Edusp, 1994), dedicado aos sermões
de Padre Antônio Vieira (1608-1697), o crítico conversou
com o Conselho Editorial da Revista E e falou sobre tradição
literária no Brasil, dos clássicos aos novos autores. A
seguir, trechos:
Por anos, o departamento
de teoria literária da Unicamp trabalhou de forma muito coesa em
torno das idéias principais de Antonio Candido, o formulador da
mais destacada escola crítica do Brasil, criada dentro da Universidade
de São Paulo (USP), cuja base é fortemente modernista. Nessa
perspectiva, o período colonial - com exceção do
grupo mineiro do século 18, que foi lido equivocadamente como tendo
aspiração nacionalista -, tende a ser visto como pouco interessante,
pois as questões da formação de uma nacionalidade
propriamente brasileira não se põem para ele. O Brasil era
ainda só uma espécie de Portugal além-mar, América
portuguesa, e os escritos aqui produzidos foram colocados em segundo plano,
como "manifestações literárias" apenas,
como resíduos que deviam ser mantidos enquanto tal, não
como exemplos da literatura pensada a sério que se reservava para
os textos posteriores ao romantismo, nos quais se apresentavam como centrais
as questões de nacionalidade. A colônia só interessava
como anúncio de uma coisa futura, que ela, entretanto, não
tinha: interessava enquanto falta de um romantismo que ainda não
havia - e do qual, por sorte, ela não precisava. Entretanto, bem
ao contrário dessa perspectiva hegemônica no Brasil e especialmente
em São Paulo, os grandes autores que me interessaram, desde o início
de minha carreira, foram os antigos, os que vinham antes das ideologias,
da luta de classes, da psicanálise. Era ótimo lidar com
textos que não supunham inconsciente na convenção,
que se exibiam claramente enquanto convenção. Entre eles,
dediquei-me especialmente aos do Padre Antônio Vieira, que escreveu
uma obra monumental, com muitos textos ainda inéditos. O português
que se exercita ali ainda é aquele que abona boa parte dos dicionários
de português.
Autonomia
literária
A idéia de literatura é recente, do século 18, e
diz respeito a uma autonomia da ficção, ou seja, algo que
se produz como fingimento, que se sabe que é fictício. Isso
supõe um campo autônomo em relação a todos
os outros, por exemplo, a filosofia, a política, a ciência
ou a religião. No entanto, não se pode chamar um sermão
de literatura, no sentido contemporâneo. Não se pretendia
fingimento nem ficção com os sermões. Trata-se de
uma forma que se define e pratica com estrito compromisso com a verdade,
seja como comentário da palavra de Deus depositada nas Escrituras,
seja como meio de regular e corrigir a vida das pessoas, de modo a proporcionar
a salvação de suas almas. Portanto, um sermão não
pode ser lido como ficção nem como literatura. Ele tem compromisso
fundamental com a ordenação espiritual do fiel, assim como
com o conjunto das escolhas de sua vida. Após me demorar anos sobre
esses velhos textos, formulei uma tese que chamei de unidade teológico-retórico-política
dos sermões, que postula, em seus termos mais gerais, que as obras
anteriores ao período romântico não poderiam ser entendidas
exclusivamente como literatura, mas como uma unidade de três elementos
necessariamente articulados no seu núcleo semântico: a teologia,
ou seja, os elementos da base da crença religiosa, no caso, católica
e contra-reformista; a retórica, vale dizer, os elementos discursivos
que permitem a hermenêutica da palavra divina, bem como a sua comunicação
eficaz; a política, que supõe a necessidade de o fiel cumprir-se
como ator na história, o que implica individualmente fazer escolhas
ajuizadas, e coletivamente favorecer a intervenção histórica
do Estado católico.
Geração marketing
Há não muitos anos, apareceu aqui em São Paulo o
que os jornais chamaram com estardalhaço de "geração
90". Por um instante, pareceu que havia um grande movimento literário
em São Paulo, em particular na Vila Madalena [bairro da Zona Oeste
da capital], que representava um renascimento da melhor literatura nacional.
No entanto, como cheguei a escrever num artigo para a Folha de S.Paulo,
visto de dentro de suas páginas e não das manchetes dos
jornais, percebia-se que não havia no grupo que se apresentava
como geração 90 nada que se espera de uma "geração
literária" pensada a sério. Fala-se em geração
quando se trata de literatura, quando se reconhece algum tipo de preocupação
literária comum aos esforços de determinado grupo. Em segundo
lugar, essa destinação comum tem de ter algum tipo de marca
particular, única, que faz daquele grupo alguma coisa que não
é nem difusa, nem apenas epigônica ou tributária de
quem veio antes. Não pode ser uma derivação, ou uma
espécie de requentamento de alguma coisa que já estava servida.
No entanto, se você considerar a prosa dessa alegada geração
- e essa era basicamente uma geração de prosadores -, os
modelos de escrita de quase todos eles eram bem vivos e reconhecíveis
em seus textos. Aliás, reduziam-se praticamente a dois autores:
Rubem Fonseca e Dalton Trevisan. O primeiro, com sua narrativa brutalista,
seca, que dispensa qualquer lirismo que não seja gerado em concomitância
com o sórdido. Ora, isso já estava perfeitamente definido
na literatura do Rubem Fonseca antes dos anos 70. E essa geração
90 refazia o Rubem Fonseca como amaneiramento. O segundo, Dalton Trevisan,
também com especial talento para descobrir o sórdido, mas
um sórdido de caráter mais pitoresco e individual, menos
espetacular e mais doméstico, com elementos de patético
familiar: miséria típica do casamento, seduções
grosseiras, vida provinciana com sexualidade recalcada e falso moralismo
etc. Há nele uma mistura de malandragem e vulgaridade, que está
perfeitamente definida naquele personagem dele, o Vampiro de Curitiba,
cuja perversidade se alimenta das coisas mais ordinárias: perfume
barato, calcinha de bolinha, programas de televisão, bala azedinha,
esse tipo de coisa ordinária e abjeta, sobretudo porque repassada
de ternura. Portanto, se esse tipo de pitoresco sórdido já
havia sido perfeitamente definido nos anos 60 e 70, qual era a grande
novidade da Vila Madalena, afinal? O que era a geração 90?
Basicamente lance de marketing, sem literatura consistente a sustentá-la,
ainda que autores individuais sobressaíssem aqui e ali.
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