Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Literatura

REVISTA E - Julho 2006

 

 

Literatura ontem e hoje


por Alcir Pécora



O crítico literário e professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Alcir Pécora acumula em seu currículo o mérito de ter ajudado a fundar, há 30 anos, o departamento do qual é membro. Um núcleo de análise da literatura brasileira criado "basicamente por alunos do Antonio Candido", informa, citando um dos nomes-referência do assunto no país. "Eu era o único que não havia sido aluno dele. Era ainda bem novo e o único que havia se formado na própria Unicamp." Autor de Teatro do Sacramento (Edusp, 1994), dedicado aos sermões de Padre Antônio Vieira (1608-1697), o crítico conversou com o Conselho Editorial da Revista E e falou sobre tradição literária no Brasil, dos clássicos aos novos autores. A seguir, trechos:



Por anos, o departamento de teoria literária da Unicamp trabalhou de forma muito coesa em torno das idéias principais de Antonio Candido, o formulador da mais destacada escola crítica do Brasil, criada dentro da Universidade de São Paulo (USP), cuja base é fortemente modernista. Nessa perspectiva, o período colonial - com exceção do grupo mineiro do século 18, que foi lido equivocadamente como tendo aspiração nacionalista -, tende a ser visto como pouco interessante, pois as questões da formação de uma nacionalidade propriamente brasileira não se põem para ele. O Brasil era ainda só uma espécie de Portugal além-mar, América portuguesa, e os escritos aqui produzidos foram colocados em segundo plano, como "manifestações literárias" apenas, como resíduos que deviam ser mantidos enquanto tal, não como exemplos da literatura pensada a sério que se reservava para os textos posteriores ao romantismo, nos quais se apresentavam como centrais as questões de nacionalidade. A colônia só interessava como anúncio de uma coisa futura, que ela, entretanto, não tinha: interessava enquanto falta de um romantismo que ainda não havia - e do qual, por sorte, ela não precisava. Entretanto, bem ao contrário dessa perspectiva hegemônica no Brasil e especialmente em São Paulo, os grandes autores que me interessaram, desde o início de minha carreira, foram os antigos, os que vinham antes das ideologias, da luta de classes, da psicanálise. Era ótimo lidar com textos que não supunham inconsciente na convenção, que se exibiam claramente enquanto convenção. Entre eles, dediquei-me especialmente aos do Padre Antônio Vieira, que escreveu uma obra monumental, com muitos textos ainda inéditos. O português que se exercita ali ainda é aquele que abona boa parte dos dicionários de português.



Autonomia literária
A idéia de literatura é recente, do século 18, e diz respeito a uma autonomia da ficção, ou seja, algo que se produz como fingimento, que se sabe que é fictício. Isso supõe um campo autônomo em relação a todos os outros, por exemplo, a filosofia, a política, a ciência ou a religião. No entanto, não se pode chamar um sermão de literatura, no sentido contemporâneo. Não se pretendia fingimento nem ficção com os sermões. Trata-se de uma forma que se define e pratica com estrito compromisso com a verdade, seja como comentário da palavra de Deus depositada nas Escrituras, seja como meio de regular e corrigir a vida das pessoas, de modo a proporcionar a salvação de suas almas. Portanto, um sermão não pode ser lido como ficção nem como literatura. Ele tem compromisso fundamental com a ordenação espiritual do fiel, assim como com o conjunto das escolhas de sua vida. Após me demorar anos sobre esses velhos textos, formulei uma tese que chamei de unidade teológico-retórico-política dos sermões, que postula, em seus termos mais gerais, que as obras anteriores ao período romântico não poderiam ser entendidas exclusivamente como literatura, mas como uma unidade de três elementos necessariamente articulados no seu núcleo semântico: a teologia, ou seja, os elementos da base da crença religiosa, no caso, católica e contra-reformista; a retórica, vale dizer, os elementos discursivos que permitem a hermenêutica da palavra divina, bem como a sua comunicação eficaz; a política, que supõe a necessidade de o fiel cumprir-se como ator na história, o que implica individualmente fazer escolhas ajuizadas, e coletivamente favorecer a intervenção histórica do Estado católico.



Geração marketing

Há não muitos anos, apareceu aqui em São Paulo o que os jornais chamaram com estardalhaço de "geração 90". Por um instante, pareceu que havia um grande movimento literário em São Paulo, em particular na Vila Madalena [bairro da Zona Oeste da capital], que representava um renascimento da melhor literatura nacional. No entanto, como cheguei a escrever num artigo para a Folha de S.Paulo, visto de dentro de suas páginas e não das manchetes dos jornais, percebia-se que não havia no grupo que se apresentava como geração 90 nada que se espera de uma "geração literária" pensada a sério. Fala-se em geração quando se trata de literatura, quando se reconhece algum tipo de preocupação literária comum aos esforços de determinado grupo. Em segundo lugar, essa destinação comum tem de ter algum tipo de marca particular, única, que faz daquele grupo alguma coisa que não é nem difusa, nem apenas epigônica ou tributária de quem veio antes. Não pode ser uma derivação, ou uma espécie de requentamento de alguma coisa que já estava servida. No entanto, se você considerar a prosa dessa alegada geração - e essa era basicamente uma geração de prosadores -, os modelos de escrita de quase todos eles eram bem vivos e reconhecíveis em seus textos. Aliás, reduziam-se praticamente a dois autores: Rubem Fonseca e Dalton Trevisan. O primeiro, com sua narrativa brutalista, seca, que dispensa qualquer lirismo que não seja gerado em concomitância com o sórdido. Ora, isso já estava perfeitamente definido na literatura do Rubem Fonseca antes dos anos 70. E essa geração 90 refazia o Rubem Fonseca como amaneiramento. O segundo, Dalton Trevisan, também com especial talento para descobrir o sórdido, mas um sórdido de caráter mais pitoresco e individual, menos espetacular e mais doméstico, com elementos de patético familiar: miséria típica do casamento, seduções grosseiras, vida provinciana com sexualidade recalcada e falso moralismo etc. Há nele uma mistura de malandragem e vulgaridade, que está perfeitamente definida naquele personagem dele, o Vampiro de Curitiba, cuja perversidade se alimenta das coisas mais ordinárias: perfume barato, calcinha de bolinha, programas de televisão, bala azedinha, esse tipo de coisa ordinária e abjeta, sobretudo porque repassada de ternura. Portanto, se esse tipo de pitoresco sórdido já havia sido perfeitamente definido nos anos 60 e 70, qual era a grande novidade da Vila Madalena, afinal? O que era a geração 90? Basicamente lance de marketing, sem literatura consistente a sustentá-la, ainda que autores individuais sobressaíssem aqui e ali.



 

 

volta ao início