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Entrevista

Antonio Carlos da Silva nasceu em São Paulo, tem 57 anos, e se formou em ciências biomédicas na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp) e em medicina na Universidade de Taubaté (Unitau). É médico especialista em medicina do esporte pela Sociedade Brasileira de Medicina Esportiva. Foi fisiologista responsável do Comitê Paraolímpico Brasileiro nas Olimpíadas de Atlanta, em 1996, e membro do mesmo comitê nos Jogos de Sydney, em 2000, e de Atenas, em 2004. É diretor do Centro de Estudos de Fisiologia do Exercício (Cefe), desde 1997, e também do Centro de Excelência Esportiva (Cenesp) da Unifesp, há dois anos. Em conversa com a Revista E, o médico falou dos rumos que deveriam ser tomados na área de políticas públicas para a promoção do esporte e da atividade física para a população, dos benefícios do exercício para os portadores de deficiência e das posturas que um cidadão comum precisa tomar para atingir melhor qualidade de vida e saúde por meio da prática física. A seguir, trechos.

Fale um pouco sobre o seu trabalho no Centro de Estudos de Fisiologia do Exercício (Cefe), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O que vem a ser o centro e qual é a linha de atuação desse organismo?
O Cefe tem como linha de atuação atividades de pesquisa e ensino relacionadas à fisiologia do exercício, aplicadas ao esporte e à clínica. Temos, por exemplo, com relação ao esporte, um trabalho longo desenvolvido com o comitê paraolímpico e com grupos como a equipe brasileira de handebol. Na parte de pesquisa, direcionamos o uso da fisiologia do exercício como ferramenta de diagnóstico, de terapia, de avaliação de tratamento. De modo geral, com muita freqüência desenvolvemos estudos associados a outras disciplinas dessa universidade, que é praticamente uma universidade da saúde. Como exemplos, é possível citar o uso da fisiologia do exercício nas doenças neuromusculares, na apnéia do sono, na hipertensão, em doenças reumáticas. Às vezes investigando o efeito de um trabalho de atividade física nesses grupos, às vezes investigando como as respostas conhecidas pela população em geral se adaptam a populações específicas, portadoras de alguma doença ou deficiência. Temos também a parte dos cursos, ministrados há mais de 20 anos. O curso de fisiologia do exercício é direcionado a profissionais da área de ciência do esporte – professores de educação física, fisioterapeutas, nutricionistas. Aos participantes é conferido um certificado de especialização em fisiologia do exercício, mas o principal são os conceitos passados, posturas no sentido de usar o exercício primordialmente em benefício da saúde das pessoas. Hoje temos 300 alunos em um curso de pós-graduação que são profissionais do mercado, formando opinião e prestando serviços. Nosso trabalho é voltado para que esses serviços tenham enfoque na saúde, no uso do exercício de forma a melhorar a qualidade de vida, melhorar a estética também, mas sem ultrapassar os limites do benefício principal, que é a preservação da saúde.

O que é fisiologia do exercício?
Fisiologia é o funcionamento dos sistemas de órgãos. A fisiologia do exercício é o estudo do comportamento dos sistemas fisiológicos durante a atividade física. Deve-se estabelecer uma diferença conceitual entre atividade física e exercício. A atividade física envolve trabalho muscular, e o exercício é o que se pratica de forma regular, como correr, nadar etc. Quando isso é feito com o objetivo de desempenho, chamamos de treinamento. Já, se o objetivo é a melhora da saúde, da qualidade de vida e a diminuição dos riscos, chama-se condicionamento. Quando é feito para tirar o indivíduo da condição de doente ou para o nível de saúde voltar à normalidade, é um programa de reabilitação. A fisiologia engloba tudo isso. Há uma fisiologia do exercício de uma pessoa normal, sem diagnóstico, sem sintomas, que é a resposta normal aos exercícios. Uma condição que pode ser alterada pelo treinamento, por uma doença e pelo sedentarismo. Por meio das respostas fisiológicas do exercício, é possível saber se o indivíduo tem risco maior de ter determinadas doenças, se ele está particularmente comprometido ou não. A fisiologia do exercício analisa as respostas desses sistemas durante a sobrecarga funcional (o exercício físico) e, estabelecidos valores de normalidade, é possível identificar as alterações produzidas pela doença – ou pelo treinamento – , aquelas que são típicas de um atleta de alto rendimento ou que caracterizam uma fase de reabilitação.

Grande parte da população é sedentária. De que maneira o senhor, sendo médico, passa para seus pacientes a indicação para a atividade esportiva?
Em primeiro lugar é preciso lembrar aos pacientes que a sociedade moderna gerou certos confortos e facilidades que tiraram do homem características básicas de seu comportamento, que era, nos primórdios, a luta pela sobrevivência e o trabalho envolvendo o esforço físico – comportamento esse que biologicamente faz parte do ser humano. Isso resultou na diminuição da atividade física e no sedentarismo, o que aumentou a predisposição para algumas doenças. São muito mais prováveis as doenças cardiovasculares, coronárias, arteriais, venosas, cardíacas, o diabetes, a hipertensão e a obesidade num indivíduo com baixa atividade física. É preciso não esquecer que isso é uma probabilidade. O indivíduo fisicamente ativo tem menor chance de ter certas doenças, mas exercício não confere imunidade. Trabalha-se para reduzir os riscos, mas isso não significa eliminá-los. O que eu falo para meus pacientes é que o importante é que eles façam a atividade física de acordo com sua condição atual. Qualquer coisa é melhor do que o sedentarismo total. E um pouco mais do que se faz agora é melhor, dentro de certos limites. Essa regra é válida no caso de não-atletas de alto rendimento. O exercício, assim como vários aspectos de nosso comportamento, pode ser benéfico ou prejudicial. Os extremos geralmente são ruins. Eu não considero o atleta de alto rendimento um protótipo de indivíduo saudável, do ponto de vista psíquico e do físico. Ele tem mais resistência à sobrecarga física. Mas se impõe uma exigência tal que pode trazer problemas de várias ordens que não existem para a população em geral. Fora o aspecto comportamental – pois para ele qualquer coisa vale para conseguir um recorde. Por isso, o atleta de alto rendimento não deveria ser modelo para a população. Mas sim a atividade física como elemento promotor de saúde e da melhora de qualidade de vida. Há muitas coisas que os atletas fazem que não são necessárias para que o indivíduo normal obtenha os benefícios da atividade física em termos de saúde. Para isso não é preciso sofrer. Tem de ser algo feito com moderação. Deve haver certo esforço, sim, pois o nosso corpo se adapta às novas exigências e melhora sua capacidade. Nesse processo de adaptação exigido pela atividade física regular e bem dosada, o indivíduo melhora organicamente de um modo geral. Com isso, ele fica mais resistente para outras coisas que são adversas à saúde.

Qual é o modelo correto, então?
A questão do modelo é perigosa porque há uma generalização. Como disse antes, o atleta de alto rendimento não deve ser tomado como exemplo, principalmente porque a população é induzida a fazer aquilo que ele faz – exageros impulsionados, muitas vezes, por um interesse comercial. Existem vários suplementos alimentares, por exemplo, que comprovadamente não têm efeito. Mas há empresas poderosas, e para elas a venda tem efeito. As pessoas são induzidas a usar determinadas coisas atribuídas a esse nível da prática esportiva que na verdade não são usadas por esses atletas. O nível de exigência e de sofrimento, no caso dos profissionais, é muito maior do que o necessário para a manutenção e o benefício de saúde e qualidade de vida. Dessa forma, se fôssemos falar de um indivíduo-modelo, talvez não fosse necessário tanto apelo de marketing, porque ele não é um medalhista de ouro, não é o melhor do mundo. O indivíduo-modelo é aquele que fisicamente tem uma porcentagem de gordura corporal dentro dos padrões, não é obeso, não é excessivamente magro, tem musculatura suficientemente cuidada para atender às necessidades da vida diária e talvez, também do ponto de vista psicológico, a uma necessidade estética, mas sem chegar a ponto de ser um fisiculturista. Existia um conceito tradicional de que era necessário que se fizesse exercício no mínimo três vezes por semana, 30 minutos por dia, com atividade física contínua. Nessa época se falava principalmente em atividade aeróbia, como correr. Hoje houve uma mudança nesse conceito. Não há uma receita para todo mundo. O que se pode dizer, e que vale para todos, é que seria necessário que se praticasse mais atividade física – ou exercício – do que se está praticando hoje, mas até que se atinja um determinado limite, partindo, em seguida, para um trabalho de manutenção. Quanto ao tempo, bem, qualquer coisa é melhor do que nada. Então, é melhor que sejam dez minutos do que cinco. E a progressão deve ser gradual. À medida que o corpo responde e se aprimora, é necessário que se exija mais de sua nova condição, para que ele continue evoluindo. Isso tudo dosado e controlado por profissionais. Ao atingir o limite do indivíduo, em que o ganho extra começa a custar muito, já não é mais interessante aumentar a carga. Uma exigência dosada faz com que o indivíduo tenha ganhos sem correr o risco do prejuízo causado pelo excesso. Até entendo que se usem os atletas como estímulo para que as pessoas façam a atividade física, mas deveria haver um controle rigoroso do emprego que as empresas fazem da imagem deles ao vender produtos que nem sempre são interessantes para a saúde.

Não está no momento de o governo começar a formular políticas públicas nesse sentido, já que o esporte está completamente dissociado desses projetos de saúde e de prevenção de doenças?
Sim, deve haver uma política nacional de esportes, de atividade física e lazer e de atividade física ligada à saúde. E isso deveria ser competência tanto do Ministério do Esporte quanto do Ministério da Saúde. Os sistemas de saúde dos Estados Unidos, por exemplo, perceberam há mais de 30 anos que era muito melhor investir na promoção da atividade física do que no custo que tinham com a cirurgia de ponte de safena. Essas políticas deveriam começar na escola, para que a criança adquirisse o prazer e o hábito da atividade física e progressivamente se conscientizasse da importância dessa prática. Essa nem é uma idéia nova. Quem vem da área da educação física sabe disso, trabalha com isso. Deveria existir um apoio maior. Além disso, uma vez existindo uma política nacional de atividade física voltada para a saúde, o esporte e o lazer, é necessário levar em conta duas coisas: a primeira é pensar no homem de amanhã, e para isso é preciso cuidar da educação física escolar, deixá-la interessante. Às vezes, é preciso estimular nessa fase da vida a prática de exercícios que beneficiem todos os aspectos importantes para a saúde. Não é só o exercício aeróbio, é preciso ter músculo, flexibilidade e força muscular, composição corporal, orientação nutricional. Mas tudo isso deve ser um processo gradual para quando o indivíduo chegar aos 13 anos poder ter essa consciência. E a segunda coisa é lidar com o homem de hoje, que sofre as conseqüências da falta de adequação de sua formação anterior no conhecimento dos benefícios da atividade física para a saúde. Da mesma forma que o problema da obesidade tem sido descrito como uma epidemia nos EUA – e aqui também está chegando quase a níveis epidêmicos –, a relação do indivíduo com a prática física passa pela veia comportamental. A política de governo para essa área deveria envolver a divulgação de pessoas fazendo atividades físicas e a promoção de atividades que estimulassem as pessoas a se engajar naturalmente nesses programas.

Qual é a dificuldade no Brasil de entender a atividade física como algo voltado à saúde, como uma política pública no sentido de prevenir que mais pessoas sejam sedentárias e morram por pressão alta, por exemplo?
Infelizmente existem problemas maiores, de base, como a fome, a falta de saneamento básico e a baixa condição social da maioria da população. É a grande massa que é atingida por esses problemas e é ela que toca o país. E acho que essa consciência não chega às políticas públicas porque, na maioria dos cargos que necessitam de técnicos, são colocadas pessoas escolhidas por critérios políticos. Essas pessoas tentam fazer o trabalho, mas precisam de um tempo muito maior para tomar consciência dessa situação. Portanto, para que isso se articule e possa gerar algum benefício, que certamente vai ser menor do que se feito por técnicos, quatro anos é muito pouco. A minha experiência, passando no Ministério do Esporte, foi a de ver pessoas muito inteligentes, capazes de fazer coisas que me impressionaram. Só que eles estavam fora da área deles. É só pensar nos últimos ministros dessa pasta e seus vínculos com o esporte. Quando se pensa que atividade física tem a ver com saúde, ter um ministro médico nessa área faz sentido. As necessidades políticas prevalecem sobre a necessidade de fazer um trabalho eficaz. Nós pagamos um preço em várias áreas pelo estágio em que se encontra a população brasileira. Até que todos, ou ao menos um número suficiente de pessoas, adquiram a consciência de que eles têm seus direitos e possam questionar e lutar por eles, fica difícil. As pessoas que estão no poder estão compromissadas muitas vezes mais com o poder do que com a missão que o poder confere.

Existem pesquisas que mostram o que se poderia ganhar em vidas ou até em economia financeira, caso fossem intensificadas políticas públicas de esportes ligadas à saúde?
Existem. É algo assustador e impressionante. A economia em determinadas áreas seria expressiva se houvesse um investimento maior na disseminação do comportamento que associa a atividade física com padrão de qualidade de vida e produtividade. Em minhas aulas sobre exercícios focados em pessoas portadoras de deficiência, dou o seguinte exemplo: digamos que 4 milhões de pessoas que vivem em São Paulo têm algum tipo de deficiência. Grande parte dessas pessoas precisa de alguém para assisti-las. Esse problema, então, vai afetar no mínimo 6 milhões de pessoas. Portanto, 50% dos deficientes praticam o sedentarismo obrigatório por ser dependentes. Esses 2 milhões de pessoas têm muito mais risco do que o sedentário da população em geral, porque eles são realmente sedentários, mais do que o sedentário do escritório. A probabilidade de essas pessoas ficarem doentes e representarem um ônus para o sistema de saúde é muito maior. Falo isso em aula, primeiro, para destacar a importância social, para mostrar a relevância para os sistemas de saúde, e, segundo, para indicar a meus alunos o mercado de trabalho. Não há academias especializadas em portadores de deficiências em São Paulo.

De que modo o esporte pode auxiliar o segmento da população formado por portadores de deficiências?
O benefício para os portadores de deficiência é muito grande, maior do que para a população em geral. Eles respondem de maneira muito mais exuberante que o resto da população ao exercício físico. Os fatores de risco para várias doenças caem rapidamente. Isso repercute na auto-estima, na inserção social desse indivíduo. Ele se torna socialmente produtivo, pode voltar a trabalhar, a não depender da família, que é a grande meta das pessoas que se dedicam a essa área. O indivíduo marginalizado é recolocado na sociedade. Além disso, a atividade física pode fazer com que essas pessoas se tornem mais aptas a enfrentar as atividades da vida diária, que para elas são um obstáculo muito maior. Elas precisam se adaptar para poder suportar as atividades do dia-a-dia. Quando isso acontece, elas deixam de ser dependentes. Elas ficam mais motivadas, mais estimuladas, param de se sentir vítimas e vão à luta, têm força para isso. A progressão dessa situação é uma melhora da saúde, uma melhora da qualidade de vida e a inserção social. Em países como Canadá, EUA e alguns da Europa, os portadores de deficiência têm um grau de inserção social muito maior. Para todos existem limites, mas praticamente qualquer pessoa se beneficia com um programa de exercícios. Porém é necessário considerar a condição de cada um. O profissional deve conhecer as particularidades da deficiência para que possa prescrever a atividade de acordo com o que o paciente dispõe de capacidade funcional, para melhorá-la – respeitando limites.

Há muita incidência de distúrbios como a depressão ou problemas com o sono motivados pelo modelo de cidade e sociedade em que vivemos. Muitas pessoas acabam sendo movidas a remédio. O esporte pode colaborar para a melhoria desse quadro?
A atividade física gera a produção de certas substâncias, como as endorfinas, mexe com os níveis de serotonina, neurotransmissores que estão relacionados com a sensação de bem-estar, prazer e com repercussões nos aspectos depressivos. Com segurança, a atividade física regular, também pelo fato de fazer com que as pessoas passem menos tempo do dia em situação introspectiva – que é um fator que gera mais depressão –, contribui para o tratamento da depressão.