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O jornalista moçambicano Américo Xavier fala com exclusividade à Revista E sobre como a imprensa trata o racismo

Em outubro, o Encontro Internacional África Brasil, realizado no Sesc Vila Mariana, reuniu educadores, jornalistas e pesquisadores para discutir o papel da mídia na promoção da igualdade racial. Para debater o tema, uma delegação com cerca de 20 jornalistas africanos veio ao Brasil como participante do evento. Entre eles, estava o moçambicano Américo Xavier, que vive na capital, Maputo, e que trabalhou na Rádio Moçambique (RM) por 16 anos, de 1974 a 1990, quando foi enviado a Londres para ser correspondente. Até 1975, Moçambique era colônia portuguesa. No dia 24 de abril daquele ano, foi inaugurada uma nova era no país. Com a independência, vieram as transformações, e junto com elas uma guerra civil e a busca pela democracia, finalmente instaurada no país em 1990. Neste depoimento exclusivo à Revista E, Xavier falou sobre Moçambique, racismo e liberdade de imprensa. A seguir, os melhores trechos.


A imprensa brasileira
O Encontro Internacional África Brasil foi um momento alto de convivência, de estudo, de confirmação da unidade de pensamento que se deve enraizar nas nossas sociedades. O outro existe, tem direito a espaço, a todos os direitos... Aprendi que temos o mesmo sonho, viver livres. No entanto, percebi que a mídia brasileira não reflete o debate que se desenvolve fora do Brasil no que diz respeito aos desafios que as questões raciais impõem aos meios de comunicação. Existe certa timidez decorrente ou do desconhecimento do assunto ou do fato de essa matéria ser considerada inoportuna – ou simplesmente não ser considerada matéria. Seria injusto, no entanto, dizer que na mídia brasileira nunca se abordam questões ligadas à promoção da igualdade racial. A ação levada a cabo pelos mais variados setores da sociedade brasileira tem conscientizado paulatinamente os brasileiros. E esse movimento social tem de ser veiculado pela mídia, pois ela não terá razão de existir se ignorar os eventos e problemas dominantes no seio dos grupos sociais. As linhas editoriais e os planos temáticos não poderão ignorar ou passar levemente por essa matéria. Por outro lado, também é tarefa das universidades – a fonte do saber sistematizado – estimular esse debate por meio de ações programadas, que alimentem a sociedade com novas e atualizadas análises.


Democracia em Moçambique
Moçambique hoje vive um ambiente democrático. Quando ainda era colônia, a mídia moçambicana operava de acordo com as leis emanadas por Portugal. Ou os meios de comunicação pertenciam às autoridades ou eram privados e serviam cegamente ao regime. Atualmente, o país possui muitas estações de rádio, jornais de grande circulação e canais de televisão. Cada uma das dez províncias tem seus meios de comunicação. Para atingir o quadro atual, a imprensa moçambicana experimentou vários tipos de jornalismo. Inicialmente vivemos um “jornalismo de mordaça”, que usava uma linguagem velada para contornar a censura colonial. Em seguida veio o “jornalismo sincrético”, de 25 de abril de 1974 até a tomada de posse do governo de transição, ao qual se seguiu o “jornalismo militante”, que se prolongou até a entrada da nova Constituição, em 1994. Atualmente temos um jornalismo democrático. Os ventos da democracia instalaram hoje várias tendências e interesses. O público-alvo apreende, é influenciado, deixa-se influenciar ou tem a sua opinião formada. As regras mudaram e agora há muitos elementos em jogo. Nessa nova fase, a mídia tem um papel decisivo no desenvolvimento da sociedade moçambicana. Com o golpe de Estado em Portugal, em 25 de abril de 1974, e a conseqüente queda do governo fascista, as colônias portuguesas passaram a experimentar finalmente uma sensação de liberdade. Para Moçambique, foi como se o país sentisse uma descompressão, dada a súbita desautorização do poder estrangeiro.


Estrutura da mídia e liberdade de imprensa
A Rádio Moçambique (RM) e a Televisão de Moçambique, ambas públicas, têm representação em todas as capitais provinciais. Existem em meu país dois jornais de grande tiragem e 47 jornais via fax, semanários e revistas do setor privado, além de 17 estações de televisão. O setor público de rádio e televisão recebe fundos do orçamento do Estado e da taxa de radiodifusão. Os dirigentes são nomeados pelo governo. A STV, estação privada de rádio e televisão com fortes ligações com a Rede Globo, poderá em breve ter representações em todo o país. A cobertura radiofônica da RM atinge quase 100%. O setor privado teve um salto quantitativo em 1990 com a aprovação da nova Constituição, que introduziu o sistema democrático em Moçambique. O panorama jornalístico moçambicano goza de liberdade total. Não existe interferência das autoridades no seu desempenho. Dia após dia, a mídia ganha espaço e respeito. As novas iniciativas encaram, no entanto, o problema dos custos de produção. O mercado da publicidade ainda é pouco representativo. Porém, é verdade que a economia do país está crescendo, mas o mercado ainda é pequeno e é necessário que ele ganhe autoconfiança e sinta a necessidade de fazer uso da mídia.


Relações raciais em Moçambique
De fato, após a capitulação dos fascistas em Portugal, os portugueses que aqui viviam voltaram para sua pátria. Em muitos casos, regressaram os pais e os filhos ficaram. Os filhos participaram e coloriram a euforia que seguiu ao 25 de abril. Muitos adotaram a nacionalidade moçambicana, pois aqui haviam nascido. Juntamente com os moçambicanos, organizaram as populações, fizeram sessões de esclarecimento sobre o momento político, desenvolveram muitas atividades. Foi nessa época que muitos filhos de colonos encontraram, pela primeira vez, humanidade no negro. Alguns confessaram ser o seu batismo no relacionamento inter-racial. Hoje se pode dizer que as relações são normais, mas há competição. A evolução da situação política, as medidas econômicas, a conjuntura internacional e a globalização interferem nos posicionamentos individuais aqui e acolá. Há diferenças e é necessário saber geri-las reconhecendo o outro.


Brasil, Moçambique e racismo
O moçambicano ouve falar do Brasil, lê sobre acontecimentos no Brasil, bons e maus. Ouvimos e falamos de música, futebol, carnaval. Mas me pergunto: e vocês, ouvem falar de nós? Creio que sim, talvez através das guerras, fome, golpe de Estado. Em Moçambique também se dança, se canta e se joga futebol. Quando assisto a alguns programas brasileiros percebo como o racismo acontece no Brasil. Samba, futebol, café e novelas preenchem a parte bela. Favelas, crime organizado, droga, mendicidade fazem parte do quadro menos agradável. Nesses casos, os atores são sempre negros. Essa é a imagem vendida pela mídia. Na África, o tema racismo também é uma questão melindrosa. O racismo está presente, está fresco... É preciso ter a coragem de debatê-lo, porque ele está lá e é quase tabu. E posso dizer que, no que cabe à mídia, em qualquer lugar, eu nunca, mas nunca mesmo, ouvi falar de alguma empreitada de sucesso que dissesse respeito à promoção da igualdade racial.